Estado técnico e estado policial

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Uma citação de A técnica e o desafio do século (1954) de Jacques Ellul, com um pequeno comentário.

O sociólogo francês Jacques Ellul sugeriu, ainda nos anos 50, que não se pode ter um estado técnico (onde o progresso técnico é caracterizado pelo automatismo), sem inevitavelmente criar um estado policial. Segue abaixo uma longa citação, com grifos meus:

“A polícia aperfeiçoa de modo espantoso seus métodos técnicos, quer se trate de método de pesquisa ou de ação – e com isso só podemos nos rejubilar, pois representa uma proteção cada vez mais eficaz contra os criminosos. Deixemos de lado a corrupção policial, para pensar apenas no aparelho técnico que se torna extremamente preciso. Esse aparelho, porém, será aplicado apenas aos criminosos? Sabemos perfeitamente que não, e, a esse propósito, somos tentados a reagir, dizendo que é o Estado que aplica esse aparelho técnico a torto e a direito; o instrumento não é responsável por coisa alguma. Erro de ótica.

O instrumento tende a aplicar-se sempre que pode ser aplicado; funciona porque existe sem discriminação.

As técnicas policiais, que se desenvolvem em ritmo extremamente rápido, tem por fim necessário a transformação da nação inteira em campo de concentração. Não se trata de uma decisão perversa de determinado partido, de determinado governo; mas, para estar seguro de agarrar criminosos, é preciso que todos sejam vigiados, que se saiba exatamente o que faz cada cidadão, suas relações, seus hábitos, suas distrações… E cada vez há mais condição para saber tudo isso.

Isso não quer dizer que o terror impere, nem que as pessoas sejam presas arbitrariamente: a melhor técnica é a que menos se faz sentir, a que pesa menos. Mas isso quer dizer que cada um deve ser rigorosamente conhecido e vigiado, com discrição. Tal consequência decorre unicamente do aperfeiçoamento dos métodos.

A polícia só pode alcançar a plenitude técnica quando se torna um controle total. E, como observa Bramstedt, esse controle total tem um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo; subjetivamente pode satisfazer o espírito de poder, tendências sádicas, mas não é essa a tendência dominante. Não é a expressão do terror futuro o aspecto mais importante.

Na realidade, o aspecto objetivo domina cada vez mais, quer dizer, a pura técnica, criando um meio, uma atmosfera, um envolvimento, e mesmo um modelo de comportamento nas relações sociais. É certo que a polícia deve tender à ação preventiva: é preciso chegar ao ponto em que será inútil intervir, o que se consegue de dois modos – inicialmente por uma vigilância constante (conhecem-se, com antecedência, as intenções nocivas; a polícia agirá, portanto, antes que o mal premeditado seja feito), em seguida pelo clima conformista de que falávamos.

Semelhante objetivo supõe a vigilância paternal de todos, mas também a estrita conexão com todas as técnicas administrativas, psicológicas e de organização. Essa técnica só tem valor quando a polícia está em relação com os sindicatos, com as escolas, com os ambientes de trabalho e de formação profissional, muito mais do que com o célebre “meio”.

Em particular, essa polícia está ligada à propaganda. Seja qual for o aspecto pelo qual se observe o fenômeno, encontra-se essa conexão. A propaganda só pode ser eficaz quando põe em funcionamento toda a organização estatal, e especialmente a polícia. Inversamente, esta só é realmente técnica quando é duplicada pela propaganda, que desempenha inicialmente um papel importante no envolvimento psicológico necessário à plenitude da polícia. Além disso, a propaganda deve fazer conhecer o que é, o que pode a polícia, e fazer que seja aceita, justificar sua ação, dando-lhe estrutura psicossociológica na massa.

Isto não é válido apenas para um regime ditatorial em que a polícia e a propaganda estão centralizadas no terror, mas também para regimes democráticos nos quais os filmes mostram os bons ofícios da polícia, conquistando a simpatia dos cidadãos. E o círculo vicioso assinalado por Bramstedt (o terror futuro) é igualmente verdade em um regime democrático, com a condição de substituir-se “terror” por “eficácia”.

(…)

Enfim, essa concepção técnica da polícia supõe também o campo de concentração, não, é claro, em seu aspecto dramático, mas administrativo. O uso que os nazistas fizeram dos campos de concentração falseia as perspectivas. O campo é baseado em duas ideias que decorrem diretamente da concepção técnica da polícia: a prisão preventiva, que inclui a prevenção e a reeducação. Não é porque o uso desses termos não correspondeu à realidade positiva que devemos nos recusar a considera-los uma forma muito avançada de sistema.

(…)

Encontramos a justificação desse desenvolvimento: não podemos afirmar que, se a polícia se aperfeiçoa, isso é devido a uma vontade maquiavélica do Estado ou a uma influência passageira. A estrutura total de nossa sociedade implica nisso, necessariamente. Quanto mais se mobilizam forças naturais, mais é preciso mobilizar homens e mais se precisa de ordem. O valor da ordem é atualmente fundamental, ninguém poderia negá-la sem negar toda a marcha do tempo. Pois a ordem não é espontânea: é a aquisição paciente de mil pormenores técnicos. E cada um de nós experimenta um sentimento de segurança e formula uma aprovação diante de cada um dos progressos que tornam a ordem mais eficaz e nosso dia seguinte mais garantido. O valor da ordem recebe nossa adesão e mesmo que sejamos hostis à polícia somos, no entanto, por uma curiosa contradição, partidários da ordem. No desenvolvimento das descobertas modernas e de nosso poder, uma vertigem nos assalta que nos faz experimentar de modo extremamente intenso essa necessidade. Ora, é a polícia que, do ponto de vista externo, está encarregada de assegurar essa ordem, que recobre a organização e a ordem moral. Como recusar-lhe o indispensável progresso de seus métodos?” – (ELULL, Jacques. A técnica e o desafio do século, 1954)

Em outras palavras, o avanço automático da técnica, guiado apenas pela eficiência técnica, conduz a um estado policial e ao campo de concentração, ainda que o regime político não seja necessariamente ditatorial. Ellul previu a construção de “campos de concentração democráticos”, onde todos estão detidos, vigiados e obrigados a trabalhar. Este trabalho domesticador da polícia é possibilitado pela propaganda e justificado pela mídia policialesca. É o próprio desenvolvimento técnico da sociedade que leva a um controle policial total.

Este argumento combina com o argumento central de Ellul, sobre como o estado técnico tende ao que poderíamos chamar de totalitarismo. É importante notar que ele fez essa observação nos anos 50 do século XX, ou seja, ainda antes do sistema de vigilância eletrônica e reconhecimento facial. Conjuntamente com Foucault, Debord e Deleuze, seu argumento ainda merece ser considerado.

O primeiro ponto é que o aperfeiçoamento técnico também resulta no aperfeiçoamento dos métodos de vigilância, e estes tendem a ser colocados em uso não por uma questão política somente, mas por uma questão de eficiência.

O campo de concentração de Ellul é apenas uma sociedade alcançou a técnica do controle social total. Não é preciso oprimir se o comportamento pode ser previsto e controlado. A polícia despreparada e brutal pode ser substituída por uma política técnica e científica, que atua com “técnicas administrativas, psicológicas e de organização”. A polícia se mescla com a sociedade técnica a ponto de se tornar indistinguível dela.

Mais interessante ainda é a relação que Ellul faz entre polícia e propaganda. Por propaganda, ele compreende os métodos que geram envolvimento psicológicos dos indivíduos com determinada organização social. O uso policial da propaganda significa transformar as pessoas em policiais de si mesmos, por meio da engenharia social.

O campo de concentração tecnocrático é administrativo, não tem paredes, mas prende as pessoas por um processo de condicionamento e reeducação permanente. A necessidade de ordem, numa sociedade complexa, é a causa desse totalitarismo. Essa conclusão, um tanto quanto determinista, toca numa ferida aberta recentemente, com o ressurgimento do fascismo. “O fascismo é a verdadeira face do capitalismo”, teria dito Bertolt Brecht. Seria o caso de considerar que, além disso, o fascismo é também a verdadeira face do desenvolvimentismo técnico numa sociedade de massas?

Ellul, um autor simpatizante do anarquismo, pretendeu com isso fazer crítica ao totalitarismo tecnocrático, e não defender o estado policial. Sua principal crítica é quanto ao automatismo do desenvolvimento técnico. O avanço técnico como fim em si mesmo mobiliza tantas forças naturais que nos envolve numa vertigem, uma compulsão pela manutenção da ordem das forças caóticas da natureza, incluindo a natureza humana. O avanço técnico exige um avanço moral equivalente, por assim dizer, e este não pode ser alcançado tão rapidamente. A solução técnica para possibilitar a ordem social necessária ao avanço técnico acaba sendo, portanto, o avanço das técnicas de engenharia e controle social, o que acaba sendo um beco sem saída para a liberdade humana.

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Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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