Foda-se o Google

Foda-se o Google é um zine adaptado de um dos capítulos do livro “Aos Nossos Amigos” do Comitê Invisível (2014), e analisa as relações entre as novas tecnologias, as novas formas de revolta e as novas formas de poder governamental.

O primeiro ponto do zine é que não existem revoluções em redes sociais. As ações políticas que se pautaram na “utopia da cidadania conectada” criaram as bases para um novo tipo de organização política. A ideia de que uma sociedade conectada permitiria uma democracia mais participativa e transparente foi chamada de “anarquista” por pessoas como Eric Schmidt, que foi CEO da Google entre 2001 e 2011. Enquanto isso, Beth Noveck, que presidiu a Iniciativa de “Governo Aberto” do presidente Obama afirmava que “as mesmas tecnologias que nos permitem trabalhar juntos à distância criam a esperança de que poderemos nos governar melhor”.

A ideia de “Governo Aberto” (open government) foi criada por entusiastas da ideia de “código aberto” (open source). “Elas invocavam a ambição dos pais fundadores dos Estados Unidos: que ‘cada cidadão tome parte na governança’”, porém acreditavam que um governo pode funcionar como uma rede social. Eric Schmidt afirma diretamente em seu livro, The New Digital Age: “Os governos podem ser derrubados e as guerras podem destruir as infraestruturas físicas, mas as instituições virtuais sobreviverão”. A ideia é proteger o Estado, fazer um “backup” que não pode ser derrubado pelo conceito convencional de revolução.

“Ninguém mapeia um território sem intenções de dominá-lo”.

O zine cita a cooperação entre os fundadores da cibernética, como Nobert Wiener, Claude Shannon, Gregory Bateson e John von Neumann, com o exército norte-americano como a base fundante dessa nova ciência de governar, que com o tempo tende a substituir a economia política:

“Nós não vivemos uma monumental ‘crise de confiança’ mas o fim da confiança, pois ela se tornou dispensável para os governos. Onde o controle e a transparência reinam, onde o comportamento dos sujeitos é antecipado em tempo real pelo tratamento algorítmico da massa de informações disponíveis sobre eles, não há mais necessidade de confiar neles nem de que eles tenham confiança: basta que sejam suficientemente vigiados.”

A finalidade da governança cibernética é eliminar o caos e assegurar a autorregulação dos sistemas pela circulação transparente e controlável de informação. O conceito de sujeito cibernético é de um ser sem interioridade, um ser constituído inteiramente pelas suas relações. A economia produziu um homo economicus. A cibernética cria a cidade inteligente, uma integração entre objeto e humano que torna possível governar o que até então era ingovernável. A totalidade da ação humana se torna alimento para o algoritmo governamental. A cibernética se torna uma nova forma de totalitarismo.

O próprio conceito de tecnologia é usado para nos manter inofensivos sejamos contra ou a favor dela: “Tecnofilia e tecnofobia formam um par diabólico unido por esta mentira central: que uma coisa como a técnica existiria”. Definindo que tudo é técnica, mas nem tudo é tecnologia, o zine propõe o uso de técnicas contra a tecnologia: “o pesadelo desta época não está no fato de ela ser ‘a era da técnica’, mas sim em ser a era da tecnologia. A tecnologia não é o arremate final das técnicas; trata-se, pelo contrário, da expropriação aos humanos de suas diferentes técnicas constitutivas”.

“Não podemos reduzir as técnicas a um conjunto de instrumentos equivalentes de que o Homem, esse ser genérico, se serviria de forma indiferenciada. Cada utensílio configura e incorpora uma determinada relação com o mundo e afeta aquele que o emprega. Os mundos assim forjados não são equivalentes, não mais do que os homens que os povoam. E não sendo equivalentes, também não são hierarquizáveis. Não há nada que permita estabelecer uns como mais ‘avançados’ do que outros. Eles são simplesmente distintos, tendo cada um seu próprio devir e sua própria história. Para hierarquizar os mundos, é necessário introduzir neles um critério, um critério implícito que permita classificar as diferentes técnicas. Tal critério, no caso do progresso, é apenas a produtividade quantificável de técnicas, tomada independentemente de tudo o que eticamente carrega cada técnica, independentemente do que ela engendra como mundo sensível. É por isso que não há progresso senão o progresso capitalista, e é por isso que o capitalismo é a destruição continuada dos mundos”. 

A questão é a natureza ética de cada técnica. A técnica como problema ético leva não apenas ao questionamento da técnica usada para o avanço de um determinado projeto político, mas do avanço da técnica enquanto ideologia: 

“A tecnologia é a sistematização das técnicas mais eficazes e o consequente achatamento dos mundos e das relações com o mundo que cada uma delas movimenta. (…) Nesse sentido, o capitalismo é essencialmente tecnológico: é a organização rentável, num sistema, das técnicas mais produtivas. Sua figura cardinal não é o economista, mas sim o engenheiro. (…) Foram engenheiros que elaboraram a maior parte dos modelos da economia neoclássica, assim como os programas informáticos de trading contemporâneos. (…) Compreender como funciona qualquer um dos aparelhos que nos rodeia significa um aumento de poder imediato, um poder que nos dá controle sobre aquilo que a partir de então já não surge mais como o ambiente que nos cerca, mas como um mundo disposto de certa maneira e sobre o qual podemos intervir. É este o ponto de vista hacker sobre o mundo.”

Porém, o texto critica a crença de que a liberdade da informação e a liberdade do indivíduo se opõem necessariamente ao controle social: “É um grave equívoco. A liberdade e a vigilância provêm do mesmo paradigma de governo. A extensão infinita dos processos de controle é, historicamente, o corolário de uma forma de poder que se realiza através da liberdade dos indivíduos”. 

“Apenas sujeitos livres, tomados em massa, são governados. A liberdade individual não é algo que possamos empunhar contra o governo, visto que ela constitui, de fato, o mecanismo sobre o qual ele se apoia, aquele que ele regula o mais delicadamente possível com o intuito de obter, no conjunto de todas essas liberdades, o efeito de massa esperado. Ordo ab chao. O governo é essa ordem à qual obedecemos ‘da mesma forma que comemos quando temos fome, ou que nos cobrimos quando temos frio’, é essa servidão que eu coproduzo no exato momento em que procuro minha felicidade, em que exerço minha ‘liberdade de expressão’. ‘A liberdade do mercado necessita de uma política ativa e extremamente vigilante’, especificava um dos fundadores do neoliberalismo.”

Assim, a cibernética nos força a reconsiderar o conceito de liberdade: “Para o indivíduo, só há liberdade se ela for vigiada”. Os anarcocapitalistas não compreenderam isso.

“Se os hackers de fato querem combater o governo, eles devem renunciar a esse fetiche [o individualismo liberal]. A causa da liberdade individual é o que ainda os impede de constituir grupos suficientemente fortes para desencadear, a partir daí, uma série de ataques, uma verdadeira estratégia; e é também o que gera a inaptidão deles em formar laços com outra coisa que não si próprios, a incapacidade deles de se tornar uma força histórica”.

Para voltarem a ser perigosos e ao mesmo tempo realmente éticos, os hackers precisam criticar a governança cibernética e os discursos politicamente frouxos sobre liberdade de expressão, liberdade da informação e liberdade individual.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

Deixe um comentário