Sociedade contra o estado: libertário é sinônimo de anarquista

Este zine foi criado pelo coletivo Facção Fictícia a partir do texto completo de Camila Jourdan e Acácio Augusto em resposta a um artigo publicado na Folha de S. Paulo em 4 de agosto de 2019, chamado “Quem são os libertários e anarcocapitalistas, que pregam o fim do Estado”. O zine resume a crítica anarquista ao anarcocapitalismo e demais ideologias ultraliberais.

Fábio Zanini era autor do blog “Saída Pela Direita: Conservadorismo, nacionalismo e bolsonarismo, no Brasil e no mundo”, quando assinou a reportagem que este zine responde. Na mesma época, a Folha de S. Paulo também tinha como colunista Hélio Coutinho Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil, fundador do Instituto Millenium e filho de Hélio Beltrão, que foi ministro do planejamento durante a ditadura militar, signatário do AI-5 e presidente da Petrobrás.

Camila Jourdan e Acácio Augusto, ambos professores universitários, enviaram “uma resposta dos anarquistas com o intuito de desfazer enganos e rebater desonestidades históricas quanto ao uso de palavras como ‘anarco’, ‘anarquismo’ e ‘libertário’”, que não foi publicada na íntegra. Por isso a necessidade de publicar a resposta inteira como um zine.

O primeiro ponto é que:

A anarquia emerge na história como fundamentalmente anticapitalista, como uma forma de socialismo que acreditava que a libertação total dos trabalhadores só seria possível com o fim do Estado. (…) Estado e capitalismo estão intimamente relacionados e se mantêm mutuamente na modernidade. O Estado moderno nada mais é do que a expressão política do desenvolvimento capitalista pós-revolução industrial. A política e a economia não são separáveis, pois são dois lados de uma mesma moeda.

Defender a propriedade, seja privada ou estatal, implica em aceitar alguma forma de Estado com a função de vigiar, controlar, gerir e reprimir revoltas populares. O anarquismo, apesar de socialista, não defende uma organização estatal:

A identificação entre socialismo e uma organização estatal centralizada responsável por uma economia planificada deriva de uma certa leitura de Karl Marx e da experiência da URSS, mas é absolutamente estranha a qualquer forma de anarquia. As principais experiências de organização social visando a transformação revolucionária da sociedade envolveram sistemas de autogestão ou conselhos de trabalhadores, destituindo assim qualquer gerência estatal e/ou privada, bem como qualquer poder político de tipo hierárquico. Desconsiderar isso é ignorar a história das experiências revolucionárias e das organizações sociais.

O anarcocapitalismo não prega o fim do estado e não pode ser considerado libertário. Ele é na verdade ultraliberal e defende um tipo de autoridade hierárquica que não interfere na economia, mas protege a propriedade privada. A concentração de poder econômico também concentra poder político. Os ricos cumprem o papel do Estado por causa desse poder político:

A forma-Estado é uma razão política elementar, (…) poder econômico sempre foi e sempre será poder político. Diante deste fato, não faz sentido pensar em uma sociedade mais horizontal (…); o que se tem, de fato, é um aumento do poder político de certas corporações que cumprem muito bem o papel de Estado (…). Elas podem substituir o Estado, cumprindo a mesma função que ele (…). Não é por acaso que os partidários do suposto anarcocapitalismo, que de “anarco” não tem nada, afirmam que o aparato policial e jurídico seriam os últimos a serem alterados. E aqui, ironicamente, se assemelham pelo avesso aos seus adversários estatistas, os leninistas, que acreditam que o Estado definharia gradualmente, após a correção das desigualdades por meio do planejamento econômico centralizado. O Estado ultraliberal é, como todo Estado, o Estado policial. Esta é também uma das razões pelas quais nunca houve capitalismo sem Estado, nem haverá Estado sem capitalismo. A pretensão, à direita ou à esquerda, de se abolir um sem abolir o outro sempre acabará em restauração da parte supostamente abolida.

Estado e propriedade estão ligados por um princípio de exclusão do que é comum: “é a instituição de uma diferença fundamental entre interior e exterior, e a aplicação de violência para a estabilização dessa diferença”. O Estado nasce da propriedade de terra, que destitui a comunidade de seu pertencimento comum ao território. Toda corporação é, no fundo, um microestado. Por isso é tão contraditório falar em capitalismo sem Estado quanto em capitalismo sem propriedade.

Mas não seria pensável um Estado que, pelo menos, não interviesse na economia? Isso também é falso. Se sabemos que política e economia são dois lados da mesma moeda, sempre se está intervindo também na economia mantendo-se a desigualdade econômica. Apenas por vezes esta intervenção não é evidente. Mas é importante ressaltar que é mesmo ‘apenas por vezes’, porque nas recentes grandes crises econômicas (desde 2008), quando as grandes instituições financeiras estiveram ameaçadas, a intervenção estatal precisou ser direta em socorro a estas instituições, o que sabemos se repetirá quantas vezes forem necessárias.

Por consequência, não faz sentido falar em anarquismo ou crítica ao estado sem crítica ao capitalismo. O anarquismo  se funda na equivalência entre igualdade e liberdade. A sociedade anarquista não é uma sociedade apenas sem Estado, mas contra o Estado:

Ou seja, organizada de forma a impedir que o poder político estabeleça privilégios sociais e econômicos, conforme observou o antropólogo Pierre Clastres entre muitos povos ameríndios de nosso continente. Uma sociedade horizontal, sem instituições hierárquicas, incompatível com as diferenças sociais, políticas e econômicas que constituem o capitalismo. 

O próprio pensamento e modo de vida empresarial ou empreendedor é uma forma de organização política que implica em estado, pois: 

O Estado surge com a organização hierárquica que estabelece desigualdades no acesso aos meios de produção e reprodução da vida. O que o capitalismo parece abolir é justamente a coletividade horizontal que o Estado supostamente substitui. E, neste sentido, o capitalismo é a forma-Estado por excelência. Ser anticapitalista é ser, antes de tudo, antiestatal.

A conclusão é que o anarcocapitalismo é apenas uma moda. “Não possui consistência histórica, teórica ou material”. Ao mesmo tempo, ele cumpre uma função desmobilizadora do anarquismo: “anarquista e libertário, são sinônimos. É desonestidade usar a palavra para nomear precisamente o que as lutas anarquistas combatem há mais de um século e meio”.

Este zine está disponível em dois lugares:

https://faccaoficticia.noblogs.org/post/2019/08/18/libertario-anarquista/

https://1000contra.com.br/produto/ancap/

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

Deixe um comentário