Introdução ao estudo do método de Marx

Este é um resumo de “Introdução ao estudo do método de Marx”, de José Paulo Netto, publicado em 2011 pela Editora Expressão Popular. Este texto levanta uma discussão sobre a questão do método de Marx, especificamente quanto à sua validade, atualidade, relevância e distorções.

Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência

Marx e Engels.

Logo no início do livro “Introdução ao estudo do método de Marx”, José Paulo Netto aponta para algumas interpretações equivocadas dos próprios marxistas sobre a concepção teórico-metodológica de Marx:

No campo marxista, as deformações tiveram por base as influências positivistas, dominantes nas elaborações dos principais pensadores (Plekhanov, Kautsky) da Segunda Internacional, organização socialista fundada em 1889 e de grande importância até 1914. Essas influências não foram superadas – antes se viram agravadas, inclusive com incidências neopositivistas – no desenvolvimento ideológico ulterior da Terceira Internacional (organização comunista que existiu entre 1919 e 1943), culminando na ideologia stalinista. Delas resultou uma representação simplista da obra marxiana: uma espécie de saber total, articulado sobre uma teoria geral do ser (o materialismo dialético) e sua especificação em face da sociedade (o materialismo histórico). Sobre esta base surgiu farta literatura manualesca, apresentando o método de Marx como resumível nos “princípios fundamentais” do materialismo dialético e do materialismo histórico, sendo a lógica dialética “aplicável” indiferentemente à natureza e à sociedade, bastando o conhecimento das suas leis (as célebres “leis da dialética”) para assegurar o bom andamento das pesquisas. Assim, o conhecimento da realidade não demandaria os sempre árduos esforços investigativos, substituídos pela simples “aplicação” do método de Marx, que haveria de “solucionar” todos os problemas: uma análise “econômica” da sociedade forneceria a “explicação” do sistema político, das formas culturais etc.

A crítica ao reducionismo, cientificismo e dogmatismo marxista foi feita por diversos teóricos. O autor cita uma dessas críticas, vindas de Sartre. Mas, segundo o autor, o próprio Engels já fazia essa crítica:

Se, num texto célebre dos anos 1960, Sartre (1979) ironizava os resultados obtidos desta maneira, já muito antes, numa carta de 5 de agosto de 1890, Engels protestava contra procedimentos deste gênero, insistindo em que “nossa [de Marx e dele] concepção da história é, sobretudo, um guia para o estudo [ … ] É necessário voltar a estudar toda a história, devem examinar-se em todos os detalhes as condições de existência das diversas formações sociais antes de procurar deduzir delas as ideias políticas, jurídicas, estéticas, filosóficas, religiosas etc. que lhes correspondem”

A ideia de “voltar a estudar toda a história” abre possibilidades de reconsideração crítica do método histórico-materialista de Marx e permite a consideração de novas perspectivas históricas sobre o capitalismo que estão ausentes em Marx. Mas, apesar de sua crítica a alguns teóricos marxistas, o autor não entra numa crítica direta a Marx e se limita a dizer que esses autores não fizeram uma “análise rigorosa e qualificada da obra marxiana”. Em outras palavras, a crítica se limita às interpretações equivocadas de Marx:

Tal concepção reducionista, que nada tem a ver com o pensamento de Marx, é compartilhada também por muitos dos adversários teóricos de Marx. Weber, por exemplo, criticou, na “concepção materialista da história”, as explicações “monocausalistas” dos processos sociais, isto é, explicações que pretendiam esclarecer tudo a partir de uma única causa (ou “fator”); a crítica é procedente se relacionada a teorias efetivamente “monocausalistas”, mas é inteiramente inepta se referida a Marx, uma vez que, como realçou um de seus mais qualificados estudiosos, “é o ponto de vista da totalidade e não a predominância das causas econômicas na explicação da história que distingue de forma decisiva o marxismo da ciência burguesa” (Lukács, 1974, p. 14).

O autor separa as críticas não-marxistas ao materialismo histórico da crítica a Marx, alegando que a ciência marxista rompe com o que ele chama de “ciência burguesa”. Em seguida, ele responde a duas críticas recorrentes a Marx: a primeira referente à falta de relevância do seu pensamento e outra ao determinismo implicado na teoria marxista. Segundo o autor, ambas as críticas podem ser refutadas pela leitura da própria obra de Marx. Especificamente sobre a crítica ao determinismo histórico, que implicaria numa teleologia dentro do pensamento de Marx, na qual a história caminha inevitavelmente para o socialismo, ele diz que:

Vários estudiosos  já mostraram sobejamente a inconsistência dessa  crítica (Mészáros, 1993, p. 198-202; Wood, 2006,  p. 129-154; Borón et alii, 2007, p. 43-47); recentemente, contudo, ela foi retomada por um teórico pós-moderno de grande influência no Brasil.

O “teórico pós-moderno” a que ele se refere no caso é Boaventura de Souza Santos. Especificamente na sua principal obra “Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade”, na seção “Processos de determinação social”. Uma crítica no mínimo ousada, dada a influência desse autor. Para Netto, “todas essas interpretações equivocadas podem ser superadas” pela “recorrência aos próprios textos de Marx”. A análise da sociedade burguesa empreendida por Marx resulta de uma demorada investigação (15 anos de pesquisas), que permitiu determinar o “método adequado para o conhecimento veraz, verdadeiro” dessa realidade social, cumprindo o objetivo de “descobrir a sua estrutura e a sua dinâmica”.

Insistindo na crítica aos “pós-modernos”, que ele considera tão equivocados quanto os positivistas, Netto diz que que o método marxista

não  é, também, a construção de enunciados discursivos  sobre os quais a chamada comunidade científica pode ou não estabelecer consensos intersubjetivos,  verdadeiros jogos de linguagem ou exercícios e combates retóricos, como querem alguns pós-modernos.

A especificidade da teoria de Marx seria, portanto, estabelecer um conhecimento teórico como

conhecimento do objeto – de sua estrutura e dinâmica – tal como ele é em si mesmo, na sua existência  real e efetiva, independentemente dos desejos, das  aspirações e das representações do pesquisador.

O que determina a qualidade de uma teoria seria, então, a correspondência entre sujeito e objeto, ou seja, a correlação entre representação e realidade, a partir de uma distinção entre “essência” e “aparência”, na qual a essência pode ser acessada diretamente:

A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que constitui propriamente o conhecimento  teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito for ao objeto. (…) o método de pesquisa que  propicia o conhecimento teórico, partindo da aparência,  visa alcançar a essência do objeto.

Netto procura sustentar isso citando uma anotação de Marx: “o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ele interpretado”. O objeto da pesquisa de Marx seria a sociedade burguesa. Esse objeto, segundo o autor, “tem existência  objetiva; não depende do sujeito, do pesquisador, para existir”. Capturar a “estrutura e dinâmica” da sociedade burguesa significa reproduzir no pensamento a essência da sociedade burguesa. Daí o conflito entre o autor e a epistemologia da “pós-modernidade”, que “suspeita da distinção entre aparência e realidade”.

Por outro lado, Netto compreende que a relação sujeito/objeto na teoria de Marx não se dá como nas ciências naturais, pois o sujeito faz parte objeto, que é a sociedade. Por isso não pode haver “neutralidade” na teoria, mas isso não compromete a objetividade desde que a verdade da teoria possa ser verificada.

Nesse sentido, Marx teria negado a existência de “leis abstratas” da dinâmica populacional, por exemplo, porém as negou exclusivamente para seres humanos: “Uma lei  abstrata da população só existe para plantas e animais e apenas na medida em que esteja excluída a ação humana”.

Podemos então concluir que a teoria social, segundo o autor, implica na capacidade do sujeito (humano) de “apoderar-se da matéria” (natureza). Marx teria feito a “análise concreta de uma situação concreta”, e por isso o pensamento de Marx teria uma “natureza ontológica e não epistemológica”. Marx não estava preocupado com a filosofia da ciência e a questão “abstrata” do que significa conhecer, mas sim em “como conhecer um objeto real e determinado”.

A partir de Hegel, Marx concebe o mundo não como um conjunto de coisas, mas como um conjunto de processos em constante mudança. Ao pensamento humano caberia desvelar as leis internas de todos esses processos. As relações materiais formam a base das relações humanas e da história humana, incluindo a história do pensamento. Assim, as categorias econômicas, como a propriedade, são apenas “abstrações das relações sociais de produção”:

Por isto mesmo, Marx considera que a “produção em geral” é uma abstração, que denota  apenas um fenômeno comum a todas as épocas  históricas: o fenômeno de, em qualquer época, a  produção implicar sempre um mesmo sujeito (a  humanidade, a sociedade) e um mesmo objeto (a  natureza).

Uma teoria social tem que se fundamentar na análise das condições materiais da vida social. É possível encontrar outras vias de acesso ao objeto (a sociedade) e, segundo o autor, essas análises podem até chegar a “resultados interessantes”, mas “nunca permitirão articular uma teoria social que dê conta dos níveis decisivos e da dinâmica fundamental da sociedade burguesa”. Assim, Durkheim e Weber “não foram capazes de elaborar uma teoria social apta a dar conta da articulação entre relações sociais e vida econômica”:

Como bom materialista, Marx distingue claramente o que é da ordem da realidade, do objeto, do que é da ordem do pensamento (o conhecimento  operado pelo sujeito): começa-se “pelo real e pelo concreto”, que aparecem como dados; pela análise, um e outro elementos são abstraídos e, progressivamente, com o avanço da análise, chega-se a  conceitos, a abstrações que remetem a determinações as mais simples.

Haveria, em Marx, um método cientificamente preciso para conhecer concretamente a realidade, mas ele só é obtido depois de muito esforço. Citando Marx: “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como o processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda  que seja o ponto de partida efetivo”:

Marx não hesita em qualificar este método como aquele “que consiste em elevar-se do  abstrato ao concreto”, “único modo” pelo qual “o cérebro pensante” “se apropria do mundo”.

O pensamento deve se apropriar e reproduzir o real do modo mais fiel possível. A sociedade burguesa seria a mais desenvolvida e complexa das formas de organização da produção. Além disso, compreender a sociedade burguesa permite compreender as sociedades do passado. Nas palavras de Marx:

A anatomia do homem é a chave para a anatomia do macaco. O que nas espécies animais  inferiores indica uma forma superior não pode ser compreendido […] senão quando se conhece a forma superior. A economia burguesa fornece a chave da economia da  antiguidade etc.

Para Netto, essa ideia inverte o pensamento positivista de que “o mais simples explica o mais complexo”. É a forma  mais complexa (o presente) que permite compreender a forma mais simples (o passado).

Na seção final, chamada “O método de Marx”, o autor reafirma que Marx descobriu a estrutura e a dinâmica reais (com ênfase em “reais”) do capital. Não é uma lógica atribuída ou uma interpretação possível, mas o movimento real do capital, em sua lógica imanente. Marx, como sujeito examinando o objeto, que é o capital, foi “fiel ao objeto”, extraindo suas múltiplas determinações. Mesmo que a teoria de Marx não seja suficiente para explicar o capitalismo contemporâneo, ela é necessária. Não se chega à crítica social do capitalismo senão por Marx. É o seu método que possibilita “o tratamento crítico-analítico da contemporaneidade”.

O autor diz que há, em Marx, uma “indissociável conexão” entre elaboração teórica e formulação metodológica. Ao mesmo tempo, essa conexão pede uma abordagem que “autonomize o método em face da teoria”. Nela se articulam três categorias: totalidade, contradição e mediação.

A sociedade burguesa é uma totalidade concreta, de máxima complexidade, constituída por totalidades de menor complexidade, ou seja um complexo constituído por complexos. É uma totalidade estruturada, articulada e dinâmica. Sua dinâmica se dá pelas suas contradições. As relações entre seus processos são mediadas pela estrutura de cada totalidade. O sistema de mediações articula as totalidades.

A sociedade burguesa é uma totalidade concreta, de máxima complexidade, constituída por totalidades de menor complexidade, ou seja um complexo constituído por complexos, como uma máquina feita de outras máquinas. É uma totalidade estruturada, articulada e dinâmica. Sua dinâmica ou seu movimento se dá pelas suas contradições. As relações entre suas partes são mediadas pela estrutura de cada totalidade. O sistema de mediações articula as totalidades. Apesar do livro ser introdutório, eu tive que recorrer a outras fontes para compreender alguns conceitos, especialmente o conceito de totalidade concreta. O autor providencia uma citação de Lukács para explicar melhor esse conceito:

A verdadeira totalidade, a totalidade do materialismo dialético, [ … ] é uma unidade concreta de forças opostas em uma luta recíproca; isto significa que, sem causalidade, nenhuma totalidade viva é possível e que, ademais, cada totalidade é relativa; significa que, quer em face de um nível mais alto, quer em face de um nível mais baixo, ela resulta de totalidades subordinadas e, por seu turno, é função de uma totalidade e de uma ordem superiores; segue-se, pois, que esta função é igualmente relativa. Enfim, cada totalidade é relativa e mutável mesmo historicamente: ela pode esgotar-se e destruir-se – seu caráter de totalidade subsiste apenas no marco de circunstâncias históricas determinadas e concretas.

Citando também Mészáros, José Paulo Netto afirma que essa concepção de totalidade evita dois extremos: por um lado, uma totalidade imutável e imediata, que ele associa ao fascismo; e por outro, a simples negação da totalidade, “que leva à fragmentação e à psicologização da vida social”. Em outras palavras, não se pode entender tudo, mas “a fidelidade ao método de Marx é o que caracteriza o marxismo ortodoxo”. Logo, podemos concluir que o questionamento de alguns dos princípios dos método de Marx caracteriza o marxismo heterodoxo.

Se Netto está correto nessa afirmação, eu posso dizer que, como anarquista, me identifico mais com o marxismo heterodoxo, pois parto de uma base teórica e metodológica que questiona alguns dos pressupostos epistemológicos do método apresentado, como por exemplo a pretensão a um alto grau de objetividade e acesso à “realidade concreta”.

Referência:

NETTO, José Paulo. Introdução ao método da teoria social. Editora Expressão Popular, 2011.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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