O jardim das peculiaridades

Este é um resumo de “O jardim das peculiaridades”, publicado em 2002 pelo escritor chileno Jesús Sepúlveda. A tradução foi publicada pelo coletivo Facção Fictícia em 2016. Trata-se de uma crítica à padronização da vida na civilização.

O tema central do texto é a relação entre domesticação, alienação, ideologia e padronização. Sepúlveda começa falando sobre a ideologia como falsificação da realidade: “A ideologia demoniza sua oposição como partidários de um caos suposto e construído, louvando a moderação e promovendo a resignação”. A ideologia é alienante e dogmática. Ela “opera como uma narrativa que domestica por meio de sua própria padronização sistêmica”.

A padronização se opõe à peculiaridade, que se funda no afeto: “O único fator comum a todas as peculiaridades que existem na terra é a ternura. O afeto é uma necessidade primária dos seres humanos”. A padronização, por outro lado, visa apenas a eficiência:

A eficiência é inflexível. Um coletor automático no ônibus processa apenas o troco exato para imprimir uma passagem; caso contrário, não funciona e invalida a operação. (…) Essa é a lógica da eficiência, ou a razão da inflexibilidade.

A dominação da natureza é “um círculo vicioso que mais cedo ou mais tarde se desintegrará. E qualquer colapso será um colapso total, um colapso mental e material, porque envolve necessariamente nossas formas de perceber e interagir com a natureza”. O colapso mental se refere ao fim das possibilidades de legitimar a destruição e dominação de tudo que não é civilizado: “A negação do verdadeiramente natural é a base da ordem civilizada, que se expande como um conquistador e manifesta seus caminhos sanguinários no extermínio de comunidades indígenas e culturas originárias”.

Essa legitimação é mantida pela educação institucional, que reproduz a ideologia. Este processo é colonizador e racista: “O etnocentrismo se manifestou na lógica escravista, impondo categorias eurocêntricas e supremacistas”, o que nos leva ao capitalismo moderno:

A colonização nada mais foi do que a expansão do capital e do pensamento tecnológico por meio da cultura de padronização em escala mundial. Essa prática atingiu seu ápice com a expansão europeia. A partir do início do século XX, desencadeou seu poder destrutivo com o surgimento do imperialismo: a fase oligopolística do capitalismo.

A crítica ao capitalismo de Sepúlveda inclui tanto a crítica ao capitalismo empresarial quanto ao estatal, e faz uma crítica tanto ao conceito inflexível de revolução quanto à reforma:

No panfleto “Reforma ou Revolução”, escrito no final do século XIX, Rosa Luxemburgo defendia o fim do sistema salarial, em oposição ao programa reformista de Bernstein, que estava centrado nas lutas trabalhistas por melhores salários por meio de reformas sistêmicas. A história da luta social nos últimos séculos foi dividida em dois campos com diferentes tendências totalitárias: aqueles que preferem os fins aos meios ou vice-versa. Isso levou a uma política sectária ou ingênua, que por sua vez levou, dependendo das particularidades do caso, ao fanatismo ou vacilação. O curso radical certamente é abolir o sistema salarial. Porém, diante de uma situação de subsistência ou carência material, cada centavo significa uma diferença substancial na sobrevivência diária dos despossuídos. Negar esse centavo àqueles que morrem de fome todos os dias é cair na justiça própria da vanguarda. É negar a solidariedade.

A marginalização, o trabalho precário e o desemprego ocultam o caráter escravizador e domesticador do atual modelo econômico:

A ideologia utilitarista que reduz a vida humana ao reino material e econômico é a matriz do sistema. Sua base teórica faz parte das diferentes narrativas elaboradas pela razão instrumental. A sua prática política é a domesticação, que é apoiada pelos esquadrões da repressão estatal e pelo corpo jurídico auto-justificado. Seu objetivo é a perpetuação da ordem civilizada.

Por isso Sepúlveda acredita que “um indivíduo é revolucionário apenas quando há revolução; no resto do tempo, ele resiste ou provoca a autoridade”. Com isto, ele quer dizer que a revolução não pode reproduzir o caráter padronizador e domesticador da civilização em nome da eficiência. Ela não pode ser um fim em si mesma. A solidariedade e a vida humana precisam vir primeiro. De outro modo, se reduz o humano ao econômico.

Em seguida, Sepúlveda aborda a crítica ao patriarcado como norma da política domesticadora:

Política é uma noção proveniente do conceito de “polis”: a antiga cidade grega, que foi o germe da civilização ocidental. A sua organização configura-se definitivamente pela ideia romana de “coisa pública” (do latim “res publicus”). Na Roma antiga, os assuntos públicos – ou comuns – estavam nas mãos dos patrícios. No início, eles escreveram a lei que relegou as mulheres a outro espaço, fora do espaço público. Na Grécia, os poetas também foram expulsos deste espaço público. O projeto platônico da “República” não considerava que artistas ou poetas tivessem mérito suficiente para integrar as questões de Estado.

A inferiorização de mulheres e outras minorias sociais fundamentou uma divisão entre o público e o privado: “A distinção entre privado e público foi construída artificialmente para garantir o funcionamento repressivo do controle patriarcal. Abolir essa distinção significaria também abolir as noções de gênero que marcaram o início da civilização ocidental”.

Para Sepúlveda, a divisão de trabalho não é um problema em si: 

A divisão do trabalho não é em si a noção que produziu o pensamento tecnológico-instrumental. Era uma espécie de divisão do trabalho, organizada de forma que uns começassem a se beneficiar da força de trabalho de outros. 

O verdadeiro problema é a razão instrumental, que “gera formas sofisticadas de divisão do trabalho”. O mesmo pode ser dito da arte. A arte se torna um problema quando é institucionalizada: “Quando a arte é uma instituição ou um mero objeto – simbólico e separado da vida – converte-se em símbolo do processo de reificação”.

Sepúlveda também se esforça para distinguir a “peculiaridade” da “identidade”:

O jardim das peculiaridades se manifesta de uma forma que alguns confundem com identidade. A identidade se conforma de forma reflexiva e reativa em relação aos modelos que integram categorias identificadoras dominantes. (…) A identidade, então, reflete uma série de outras identidades que são erigidas como paradigmas, mas que na prática são impostas ao sujeito sem prévio aviso: nacionalidade, raça, classe, sexualidade, ideologia, língua, mãe, pai, etc. (…)  A noção de peculiaridade desmonta a estrutura de poder, que promove a homogeneização e o autoritarismo, por não se enquadrar na ordem hierárquica ou no mal da competição. (…) Se alguém observa atentamente a peculiaridade do outro, o sujeito não completa o processo de alterização porque se revela a compreensão de que o outro é tão peculiar quanto ele próprio, que constitui o sujeito e a totalidade. Reconhecer que o outro nada mais é do que um eu, outro ser peculiar que também existe no mundo, é libertador.

Sepúlveda afirma a necessidade de substituir “o módulo da razão instrumental por uma visão estética que desloca radicalmente a lógica utilitária e funcional do sistema” e defende o uso de drogas naturais para possibilitar essa visão estética, que são diferentes das drogas químicas. As drogas químicas são produtos alienantes. “As drogas naturais, por outro lado, libertam porque permitem ver na escuridão da alienação”:

Qualquer alteração na consciência em sociedades altamente alienadas fornece uma saída de emergência que permite aos indivíduos apreciar a natureza. Nas sociedades primitivas – nem alienadas nem alienantes – as drogas naturais são uma ratificação do fato de que a realidade não é linear, nem se manifesta em apenas um plano. (…) Quando a fuga para a valorização da natureza se torna uma força energética, os especialistas e médicos deixam seu trabalho nas mãos do exército ou da polícia. Esta é a chamada guerra às drogas.

Ao se referir à crítica anarcoprimitivista da cultura simbólica, ele faz uma distinção entre o simbólico e a cultura simbólica: 

John Zerzan argumenta que a linguagem se apropria da realidade para posteriormente substituí-la. Segundo o pensamento anarco-primitivista, a divisão do trabalho produz uma sequência reificadora que termina com a criação do simbólico. Para Zerzan, o simbólico não só representa a realidade, mas também a substitui. (…) O poder se perpetua por meio da prática da repressão e da doença da alienação. Se é verdade que a alienação é uma prática do simbólico, ainda não é necessariamente uma expressão da cultura simbólica. A distinção entre a cultura simbólica e o simbólico permite distinguir entre a representação e a substituição reificadora da realidade, e a manifestação estética do ser. Confundir civilização com cultura significa misturar duas manifestações equidistantes.

A civilização é unidimensional, enquanto a cultura é “múltipla, peculiar e multifacetada”. Assim, é possível compreender como a luta dos povos originários por sua cultura é, ao mesmo tempo, uma luta contra a civilização:

Quando Marcuse propõe que a história nega a natureza, ele se refere à cultura civilizadora – padronização – e não à cultura humana como a expressão do ser. (…) A civilização, portanto, coloniza e domestica a cultura, reduzindo-a a uma categoria padrão – a cultura oficial. (…) Os genocídios e ecocídios dos continentes da América do Norte e do Sul se moveram em uma direção principal: negar a cultura indígena. A cultura, de fato, é contra a civilização. Não são sinônimos, mas territórios distintos. Civilização implica padronização; cultura, peculiaridade.

A linguagem, como parte da cultura, pode padronizar ou libertar: “A conversa desaliena e congrega, desmontando a política sistêmica que tende ao isolamento individual. A padronização, ao contrário, cretiniza”. A verbalização pode ser vista, assim como a arte, como expressão da peculiaridade:

Com efeito, a peculiaridade de falar é caracterizada pelo biorritmo de inspiração e expiração em cada corpo humano. Falar é tão adequado e único quanto o sotaque que cada um de nós tem em sua língua. (…) A linguagem é, portanto, uma ferramenta de doutrinação, mas também uma arma de libertação. Nas atuais condições de domesticação humana, animal e ecológica, a separação alienante do sujeito da totalidade pode ser vista como um processo irreversível. Retornar a um estado primitivo anterior à linguagem articulada implica desaprender línguas (isso é praticamente impossível sem eliminar os seres humanos da face do planeta). Abolir a noção de linguagem, mesmo sem um genocídio exaustivo de toda a humanidade, é um projeto irrealizável e sinistro. (…) Esperar, assim, uma construção utópica e sintética de uma ordem comunista primitiva baseada na caça e na coleta, que por extensão garanta a sobrevivência apenas dos mais fortes e substitua a linguagem pela telepatia, também parece improvável. A vida perdeu seu valor por meio do controle simbólico da razão instrumental. Nas sociedades alienadas e alienantes, só a arte e a poesia podem devolver o valor original da vida, visto que a esfera estética foi separada do âmbito do vital. (…) Orientar as atividades humanas para a razão estética pode corrigir o curso da vida em todo o planeta e salvar muitas criaturas – e a nós mesmos – da extinção total.

Esta correção do curso da vida implica na rejeição da ideologia da superioridade humana, que justifica o controle humano sobre a natureza. A conclusão desse controle é a produção de “ciborgues”:

Ciborgues são seres robotizados que ficam conectados durante grande parte do dia a diferentes tipos de máquinas (computadores, televisores, telefones celulares, secretárias eletrônicas, carros, fones de ouvido, escadas rolantes, marcapassos, relógios, alarmes etc.). (…) Sua alimentação é baseada na pura ciência que fabrica organismos geneticamente manipulados e modificados, ocultando o que realmente são com sua aparência: leguminosas falsas, vegetais que não são mais vegetais, alimentos de plástico, frutas enlatadas e assim por diante. (…) Na mesma linha, o ciborgue é incapaz de discernir o efeito destrutivo e violento de suas ações. Em vez disso, ele o nega. Da mesma forma que a dieta carnívora e a religião foram intervenções culturais naturalizadas – intervenções que simbolicamente representam uma forma de repressão causada por uma ação civilizadora cujo fim é nada menos que a construção da identidade humana – assim também as ciências e as máquinas modernas são intervenções culturais naturalizadas que representam a repressão da noção de humanidade e cujo fim é nada menos que a construção de um mundo de ciborgues.

A padronização se apropria da peculiaridade e a transforma em arquétipos e estereótipos, reduzindo ao exótico ou demonizando: “O exótico é uma categoria construída pela ordem dominante para infantilizar o outro e se apropriar dele. A demonização fornece uma autojustificação para a agressão contra o outro”. Evitar a padronização exige contato cotidiano com a natureza.

Usando a distinção entre autoridade e poder, Sepúlveda afirma que a autoridade “carece de poder, mas utiliza força. O poder, por outro lado, pode ser autoritário ou libertador”. A sociedade libertária evita o exercício da autoridade, mas afirma o poder da comunidade:

Qualquer punição ou sentença que culmina em prisão e privação de liberdade de um indivíduo tende a construir novamente aquela cerca autoritária que o sistema padronizador aperfeiçoou por meio de suas técnicas repressivas ultrassofisticadas e da qual se originou a sociedade panóptica de controle atual. (…) A decisão de expulsar por um período ou permanentemente – no caso de conflitos insolúveis – um membro da comunidade é muito mais saudável e menos ameaçadora para a práxis vital do que qualquer outro tipo de punição. Há um contraste óbvio entre ostracismo e a aberração das execuções – uma prática institucional horrível de extermínio, genocídio e repressão. (…) Da mesma forma, pensar no sistema como algo poderoso é ridículo. A capacidade de depor está em nosso espírito. E nem mesmo todo o seu aparato técnico de intimidação, controle e morte pode impedir a avalanche de força energizante quando ela irrompe. Este é o verdadeiro poder humano.

Pular fora da padronização significa deixar de civilizar a si mesmo. E nisso não importa se a linguagem é inata ou não. O que importa é o que está sendo construído com a linguagem. Há uma oposição entre selvageria e tecnologia:

A “selvageria” é, entre outras coisas, a única riqueza possível, porque transborda de paz, é abundante no tempo e tem vida e espontaneidade de sobra. A selvageria enriquece o espírito. (…) A tecnologia aliena. A tecnologia consome e media a vida humana. Mas a tecnologia também é uma forma de aproximação da realidade filtrada por um módulo mental funcional que surge na ideologia. Essa é a razão tecnológica. (…) A razão tecnológica fez com que a consciência começasse a se padronizar, padronizando tudo simultaneamente. Para se auto-peculiarizar – e também peculiarizar tudo – e para criar uma melhor compreensão da totalidade e do self, é necessário direcionar a consciência para a razão estética.

Sepúlveda também distingue entre dois tipos de alienação: “Uma é material e reduz a vida à sobrevivência econômica. A outra é ideológica e gera desumanização e robotização do sujeito”. No pensamento anarcoprimitivista, a alienação material produziu a alienação ideológica: 

a divisão do trabalho produziu uma sequência reificadora que levou à construção do simbólico com todas as suas ramificações: numeração, arte, tecnologia, agricultura, linguagem, cultura etc. Portanto, o símbolo é a linha divisória entre a vida pré-histórica, cheia de vitalidade sensual, e a vida histórica atual, mediada pela reificação e delirando com a alienação. (…) Foi aquele momento em que nós, seres humanos, começamos a nos distinguir da natureza: o ponto em que consciência, identidade e linguagem formaram o triângulo que simultaneamente nos separou do mundo natural e criou a noção de humanidade. (…) O lucro e a alienação modernos são formas de domesticação social em grande escala por meio da expansão da linha de produção.

Em contraste com a agricultura, a horticultura produziu muito mais riqueza de conhecimento e diversidade: 

No século XV, os europeus conheciam apenas dezessete variedades de vegetais comestíveis, enquanto no século IV, os Hohokam – habitantes da região agora abrangida pelo Novo México, cultivavam cerca de duzentas variedades de vegetais. (…) Isso prova que a horticultura nada tem a ver com o impulso padronizador da civilização. Em vez de tentar fazer com que todos os ambientes estejam em conformidade com um padrão, a horticultura busca se adaptar às características peculiares do solo e do microclima, mantendo intactos o ecossistema e a biodiversidade.

A conclusão é que o jardim das peculiaridades é um projeto de humanidade que supere a padronização da civilização e cultive, organicamente, a autonomia de todos os seres: 

O jardim das peculiaridades é uma aposta feita pela preservação do meio ambiente e pela sobrevivência da humanidade. Nesse caso, a intuição deve iluminar o caminho. Não ser desviado depende de nós. Existe apenas um caminho que leva ao coração da vida.

Referência:

SEPÚLVEDA Jesús. O jardim das peculiaridades. Biblioteca Anarquista, 2022. https://bibliotecaanarquista.org/library/jesus-sepulveda-o-jardim-das-peculiaridades

Onde encontrar o zine:

https://monstrodosmares.com.br/produto/jardim-das-peculiaridades/

https://1000contra.com.br/produto/o-jardim-das-peculiaridades-jesus-sepulveda/

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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