A ideologia alemã

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Um resumo do livro A ideologia alemã de Karl Marx e Friedrich Engels.

O objetivo de A ideologia alemã é criticar os jovens hegelianos. Para Marx, o sistema idealista hegeliano foi criticado por discípulos tardios de Hegel, representados por Feuerbach, Bruno Bauer e Max Stirner, mas seu postulado básico não foi negado. Isto é, eles aceitaram a crença de que o mundo real é produto do mundo ideal. Se as ideias determinam o mundo material e as relações reais dos homens, bastava livrar-se do domínio das ideias e de tudo que a história representou até então. A ideologia alemã teria reduzido a história dos homens a uma concepção falsa ou a uma mera abstração. As condições reais da dominação, porém, permaneceram intocadas.

Rejeitando a crença hegeliana, Marx procura afirmar que os homens não organizaram suas relações em função das representações que faziam. Não foram as representações de Deus, por exemplo, que alienaram o homem, como é o caso na crítica feuerbachiana da religião. O homem não foi dominado pelo seu próprio mundo imaginário, mas pelas relações reais e históricas. Por isso, revoltar-se contra o domínio do mundo das ideias e trocar as ilusões que estariam determinando a vida humana pela própria vida real e material seria uma atitude inocente e pueril, pois o domínio sempre partiu do mundo real, e são as próprias condições reais e materiais de dominação que precisam ser mudadas. Toda essa suposta revolução filosófica que os jovens hegelianos estavam promovendo ao derrubar o sistema hegeliano não seria nada senão charlatanice filosófica de cunho burguês.

Marx denuncia o comprometimento ideológico burguês desses filósofos alemães ao comparar a “revolução filosófica” dos jovens hegelianos a uma exploração industrial dos restos mortais do espírito absoluto e uma disputa comercial para vender os produtos derivados dessa indústria no mercado intelectual alemão. Ele compara a ilusão desses filósofos com a de um homem que julga poder se salvar de um afogamento livrando-se da ideia de gravidade, denunciando que as condições reais do homem só podem ser mudadas a partir delas mesmas. Para fazer isso, era preciso partir de uma perspectiva mais ampla do que a alemã. Marx coloca-se de fora da perspectiva ideológica alemã para daí poder criticá-la. Seu ponto de vista seria o da realidade francesa e mais concretamente da inglesa.

O sistema filosófico que teria dominado a consciência alemã seria um fruto do sistema hegeliano. Os jovens hegelianos teriam criticado Hegel sem deixar de depender de Hegel, ou seja, sem criticar o conjunto do sistema hegeliano por completo. Eles teriam criticado apenas aspectos isolados. Suas críticas teriam se limitado à crítica das representações religiosas, como se o cerne da mudança consistisse em livrar-se da religião, vista como raiz de todo mal justamente por ser a fonte das representações que determinavam as relações reais dos homens. Tudo que foi compreendido pelos velhos hegelianos foi pelo mesmo motivo criticado pelos jovens hegelianos, que aceitaram assim a autonomia dessas representações ideais, e ao mesmo tempo consideraram-se libertadores da humanidade por combatê-las. Tratava-se de uma mudança de consciência: a consciência religiosa deveria ser substituída pela consciência humana, a consciência crítica ou a consciência individual.

Ao dizer que o homem estava sob o domínio de uma ideologia, os jovens hegelianos não fizeram nada senão combaterem unicamente no reino ideológico ao invés de combater no mundo real. Para Marx, nenhum deles se perguntou sobre a relação entre a sua crítica e o seu meio material. Marx define suas bases como sendo as condições materiais de existência, e não os dogmas. Essas bases são engendradas pela própria ação dos indivíduos reais, e por isso são verificáveis empiricamente. O homem se distingue dos animais exatamente por produzir seus próprios meios de existência. O que os homens são coincide com a sua produção, tanto com o que é produzido quanto com o modo de produção. Nosso atual modo vida só se tornou possível porque em primeiro lugar houve uma condição material: o aumento da população. Esta provocou o surgimento de novas necessidades: a intensificação das trocas comerciais, a divisão do trabalho e a separação entre cidade e campo.

As formas de propriedade são determinadas pelas técnicas de produção em cada estágio do desenvolvimento da civilização. Assim, quando passamos da caça e coleta para o pastoreio e a agricultura, por exemplo, outra estrutura social se forma a partir dessas novas relações de produção. É o aumento da população e das necessidades que desenvolve o terreno para a escravidão, para o comércio e para a guerra. A forma de propriedade deixa de ser tribal e passa a ser comunal, devido à reunião de várias tribos em uma única cidade. Neste ponto, Marx questiona se a força motriz da história foi o contrato social ou a conquista violenta. Mas o mais importante é que a estrutura social e o Estado surgem de um processo material, e não de representações. As condições e limites dessas coisas são determinados pela materialidade e não pela vontade. Podemos entender o conceito de “real” em Marx como aquilo que independe de nossa vontade, e por isso se distingue do que é ideal.

Para Marx, as ideias seriam as expressões da atividade material dos homens. “O ser dos homens é o seu processo de vida real”, e se a ideologia inverteu isso, dizendo que o processo de vida real foi regido pela “essência”, essa inversão da realidade é também resultado de um processo histórico. É só na atividade real que se examina a ideologia. Logo, a moral, a religião e a metafísica não possuem autonomia e nem sequer história. Elas não se desenvolvem por si mesmas, mas são apenas produtos do desenvolvimento material do homem. Para Marx, este modo de considerar as coisas parte de premissas reais, que são os homens em sua atividade empiricamente visível. “É aí que termina a especulação, é na vida real que começa portanto a ciência real, positiva, a análise da atividade prática. Do processo, do desenvolvimento prático dos homens”. Percebe-se aí que o conceito fundamental para a crítica de Marx é o de “realidade”. Ele julga ter acesso direto a essa realidade ao analisá-la na sua dinamicidade, no seu movimento, na ação empírica e histórica dos homens, o que está indicado nos termos “atividade prática”, “processo” e “desenvolvimento prático”. Está implícita aí a concepção de progresso cumulativo de eventos históricos, ainda que dialético. Para questionar Marx, é preciso reavaliar suas premissas centrais: o acesso imediato à realidade concreta.

Para Marx, não é possível conceber que as mudanças nas concepções filosóficas de uma época possam determinar por conta própria uma mudança nas condições “reais” da sociedade, justamente porque a realidade é aquilo que independe da filosofia, mas da qual a filosofia depende. A história real é a única realmente autônoma, já que o que se pensa sobre ela é produto de seu próprio desenvolvimento material. O primeiro fato histórico é a produção dos meios de subsistência, pois a base da vida humana é o que se come e bebe. Nesse ponto, Marx ainda concorda com Feuerbach. A diferença é que Marx toma isso como um fato histórico, enquanto acusa Feuerbach de não ter uma base material para a história. A história dos ideólogos é abstrata, e suas bases não se encontram na história, mas em conceitos tais como o de “pré-história”, sobre o qual se pode especular sem limites. Para Marx, o escopo da história humana é o da história material, ou seja, a história das civilizações, pois sobre o que não há muitos vestígios materiais nós só podemos especular.

O homem produz sua própria vida pelo trabalho e a dos outros pela procriação. Até mesmo a primeira relação social nasce também de uma condição material: a família. A produção de uma teoria que entra em contradição com as relações sociais existentes só se torna possível porque essas relações entraram em contradição com a força produtiva existente, na divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual. A divisão do trabalho implica em todas as contradições, separando a sociedade em famílias desiguais. A mulher e os filhos são as primeiras formas de propriedade do homem, numa espécie de escravidão familiar. A divisão de trabalho implica também na divisão entre o interesse individual e coletivo. É a divisão de interesses que torna a ação do homem em força estranha a ele mesmo, à qual ele se opõe. A classe que alcança o poder político apresenta seu próprio interesse como interesse geral. Essa universalidade é apenas uma forma ilusória da coletividade. Este seria um indicativo da “alienação”, termo que Marx trabalhou melhor em obras posteriores.

Foram condições práticas, e não ideias, que colocaram os homens na história universal. Os homens se encontram por isso em circunstâncias que podem ser mudadas pela própria prática. O fim da propriedade privada dos meios de produção, por exemplo, determinaria o fim do estranhamento do homem em relação ao seu próprio produto. O modo de produção comunista não seria um ideal pelo qual a realidade deveria se guiar, mas um movimento real que supera o estado atual das coisas. A sociedade civil foi o verdadeiro palco da história. Ela “compreende o conjunto das relações materiais dos indivíduos dentro de um estágio determinado de desenvolvimento das forças produtivas”. Por isso, é somente a partir de si mesma que uma dada condição social pode ser superada. Para Marx, não há saída da civilização, nós podemos no máximo revolucionar seu atual estágio para um estágio posterior.

O que se chamava de Espírito universal se revela no mercado mundial. Na perspectiva comunista, a libertação individual se realizará na transformação da história em história universal da produção da consciência. A cooperação dos indivíduos em escala histórico-mundial será consciente e não imposta ou estranha. Será dominada pela ação recíproca dos homens entre si. Pois os indivíduos criam uns aos outros, no sentido físico e moral, mas não no sentido do “self made man”. Os idealismos se derrubam com o fim das relações sociais concretas que os sustentam. O homem é produto e produtor do meio. A revolução não será apenas contra condições particulares da sociedade existente, mas também contra o conjunto da atividade que constitui sua própria base.

Os ideólogos recusavam a história dos outros povos e afirmavam a hegemonia da Alemanha proclamando a hegemonia da teoria. Quando falam do homem, falam na verdade do alemão. Marx fala dos homens históricos reais, e nesse sentido pretende falar de todos. O mundo sensível é um produto histórico cumulativo em função das mudanças nas necessidades. Não há separação entre homem e natureza. O homem sempre fez parte da natureza e a história sempre foi natural. Mesmo as ciências da natureza nada seriam sem o comércio e a indústria. Não há natureza fora da história do homem. O homem não é um mero objeto sensível, é uma atividade sensível. O mundo sensível é a soma da atividade sensível dos indivíduos. Para Feuerbach, a história e o materialismo estavam separados. Marx introduz a noção de materialismo histórico: a história é a sucessão de gerações que exploram os materiais, os capitais e as forças produtivas transmitidas pelas gerações anteriores, o que lembra a teoria darwinista. Há uma continuidade entre estágios, ainda que as circunstâncias se modifiquem. A ideologia, porém, dá à história passada a finalidade única de gerar a história presente.

“Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes”. Eis aí um esboço da ideia de que a superestrutura (poder espiritual dominante) é determinada pela infra-estrutura (poder materialmente dominante). Dentro da classe dominante pode haver divisão entre trabalho intelectual e trabalho material, que pode até gerar conflito quanto à teoria, mas não quanto à prática. A existência de ideias revolucionárias pressupõe a existência de uma classe revolucionária. Em cada época, se acreditou no que essa mesma época disse de si mesma. Agora, diria Marx, trata-se de revolucionar as condições existentes, e não as ideias. Enfim, não são as ideias revolucionárias que mudam as condições sociais, mas as práticas das quais essas ideias são apenas as expressões.

A epistemologia marxista é materialista, histórica e dialética. Sua ciência parte do concreto e não visa uma produção teórica de conceitos, mas um conhecimento prático. Ele encerra a história das ciências naturais e humanas dentro da ciência da história. O método histórico-dialético seria o mais correto porque a realidade é dialética.

As questões que poderíamos fazer são: O abstrato, em última instância, é produto do concreto? Devemos tomar o que é chamado de “concreto” como base do conhecimento? A distinção entre abstrato e concreto, seja ela dicotômica ou dialética, não é, em si, conceitual? A realidade é dialética, ou seria a dialética somente um modo de organizar nossa percepção da história? Enfim, temos um acesso direto à realidade concreta? Se não temos, como podemos afirmar que o método histórico-dialético é o mais correto? Essas seriam minhas questões básicas sobre a perspectiva marxista.

Referência:

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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