Teoria Queer: Uma política pós-identitária para a educação

Este zine foi hackeado da internet a partir de um artigo de Guacira Lopes Louro publicado em 2001 na Revista estudos feministas e está disponível na Editora Monstro dos Mares. O texto fala sobre o conflito entre teoria queer e grupos conservadores no contexto da educação e sobre a política pós-identitária para evitar assimilação do sistema contra o qual pretendemos nos insurgir.

Teoria Queer: Uma política pós-identitária para a educação –  Guacira Lopes Louro (2001) – Resumo

Guacira começa o texto falando sobre o desafio da educação diante de “novas” práticas e “novos” sujeitos que surgem no debate mais recentemente e contestam os modelos estabelecidos. “A vocação normalizadora da Educação vê-se ameaçada. O anseio pelo cânone e pelas metas confiáveis é abalado”. É preciso compreender os novos movimentos e teorias sexuais e de gênero para que a prática educacional permaneça inclusiva.

A construção das políticas de identidade produzem uma representação da homossexualidade, por exemplo, mas ao mesmo tempo exercem um efeito regulador e disciplinador. Isso é: a homossexualidade não é apenas um fenômeno reconhecido pela afirmação da identidade, mas de certo modo construído por discursos sobre o sujeito homossexual. Citando Tamsin Spargo:

Este modelo fazia, efetivamente, com que os bissexuais parecessem ter uma identidade menos segura ou menos desenvolvida (assim como os modelos essencialistas de gênero fazem dos trans-sexuais sujeitos incompletos), e excluía grupos que definiam sua sexualidade através de atividades e prazeres mais do que através das preferências de gênero, tais como os/as sadomasoquistas.

A política de identidade assumiu um caráter “unificador e assimilacionista, buscando a aceitação e a integração dos/das homossexuais no sistema social”. Isto fez com que as identidades que já não perturbam o status quo como antes entrassem em conflito com outras identidades:

Para muitos (especialmente para os grupos negros, latinos e jovens), as campanhas políticas estavam marcadas pelos valores brancos e de classe média e adotavam, sem questionar, ideais convencionais, como o relacionamento comprometido e monogâmico; para algumas lésbicas, o movimento repetia o privilegiamento masculino evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com que suas reivindicações e experiências continuassem secundárias face às dos homens gays; para bissexuais, sadomasoquistas e trans-sexuais essa política de identidade era excludente e mantinha sua condição marginalizada.

Não que homens cis homossexuais tenham alcançado direitos iguais aos homens cis héteros. Gays “permanecem lutando por reconhecimento e por legitimação”. Mas outros grupos buscam “desafiar as fronteiras tradicionais de gênero e sexuais, pondo em xeque as dicotomias masculino/feminino, homem/mulher, heterossexual/homossexual; e ainda outros não se contentam em atravessar as divisões mas decidem viver a ambigüidade da própria fronteira”. Assim, “a política de identidade homossexual estava em crise e revelava suas fraturas e insuficiências”. Citando Debbie Epstein e Richard Johnson:

A agenda teórica moveu-se da análise das desigualdades e das relações de poder entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e mulheres, gays e heterossexuais) para o questionamento das próprias categorias; sua fixidez, separação ou limites; e para ver o jogo do poder ao redor delas como menos binário e menos unidirecional.

A política queer, por outro lado, representa explicitamente “a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada”, mas sim se manter transgressiva e perturbadora:

As condições que possibilitam a emergência do movimento queer ultrapassam, pois, questões pontuais da política e da teorização gay e lésbica e precisam ser compreendidas dentro do quadro mais amplo do pós-estruturalismo. Efetivamente, a teoria queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência, de identificação.

Uma dessas referências viria da psicanálise freudiana:

Lacan perturba qualquer certeza sobre o processo de identificação e de agência, ao afirmar que o sujeito nasce e cresce sob o olhar do outro, que ele só pode saber de si através do outro, ou melhor, que ele sempre se percebe e se constitui nos termos do outro.

Foucault também se mostra relevante para a formulação da teoria queer, problematizando a binaridade das oposições discursivas. Foucault diz que:

assistimos a uma explosão visível das sexualidades heréticas, mas sobretudo; e é esse o ponto importante; a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a multiplicação de sexualidades disparatadas.

Judith Butler também “produz novas concepções a respeito de sexo, sexualidade, gênero”:

Butler afirma que as sociedades constroem normas que regulam e materializam o sexo dos sujeitos e que essas “normas regulatórias” precisam ser constantemente repetidas e reiteradas para que tal materialização se concretize. Contudo, ela acentua que “os corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta”, daí que essas normas precisam ser constantemente citadas, reconhecidas em sua autoridade, para que possam exercer seus efeitos. As normas regulatórias do sexo têm, portanto, um caráter performativo, isto é, têm um poder continuado e repetido de produzir aquilo que nomeiam e, sendo assim, elas repetem e reiteram, constantemente, as normas dos gêneros na ótica heterossexual.

Queers, enquanto “corpos que não se ajustam”, são constituídos como sujeitos fora da norma, mas também como limite da norma. São socialmente indispensáveis pois “materializam a norma” para os corpos que efetivamente “importam”. Seja integrando ou separando, considerando a sexualidade como natural ou socialmente construída, “esses discursos não escapam da referência à heterossexualidade como norma”. Por isso, para a teoria queer, é necessário realizar:

uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação, a dominação e a exclusão. Uma abordagem desconstrutiva permitiria compreender a heterossexualidade e a homossexualidade como interdependentes, como mutuamente necessárias e como integrantes de um mesmo quadro de referências. A afirmação da identidade implica sempre a demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua diferença. Esse ‘outro’ permanece, contudo, indispensável. A identidade negada é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e, ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade. Numa ótica desconstrutiva, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que isso, passou a ser concebida como ‘natural’.

A teoria queer, ao criticar a política de identidade, propõe uma política pós-identitária:

O alvo dessa política e dessa teoria não seriam propriamente as vidas ou os destinos de homens e mulheres homossexuais, mas sim a crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações entre os sujeitos.

Assim, Guacira pergunta: “Como traduzir a teoria queer para a prática pedagógica?”. Para ela, é preciso considerar não apenas a oposição ao binário homossexualidade/heterossexualidade, mas também as estratégias de oposição:

A teoria queer permite pensar a ambigüidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero mas, além disso, também sugere novas formas de pensar a cultura, o conhecimento, o poder e a educação.

Uma pedagogia queer se estende para apenas da sexualidade e do gênero, questionando todas as formas “bem-comportadas” de conhecimento e de identidade. É uma epistemologia subversiva, que trabalha “com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades”. Ao invés de defender apenas um ideal de igualdade e pluralidade, o queer foca-se nos conflitos constitutivos das posições que os sujeitos ocupam.

Seria preciso “desconstruir o processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros marginalizados”, “tornar evidente a heteronormatividade, demonstrando o quanto é necessária a constante reiteração das normas sociais regulatórias a fim de garantir a identidade sexual legitimada” e “analisar as estratégias; públicas e privadas, dramáticas ou discretas; que são mobilizadas, coletiva e individualmente, para vencer o medo e a atração das identidades desviantes e para recuperar uma suposta estabilidade no interior da identidade-padrão”. Por fim, é preciso também problematizar “estratégias normalizadoras que, no quadro de outras identidades sexuais (e também no contexto de outros grupos identitários, como os de raça, nacionalidade ou classe) pretendem ditar e restringir as formas de viver e de ser”.

Deste modo, o pensamento queer coloca em xeque também o binarismo que opõe o conhecimento à ignorância:

Admitir que a ignorância pode ser compreendida como sendo produzida por um tipo particular de conhecimento ou produzida por um modo de conhecer. Assim, a ignorância da homossexualidade poderia ser lida como sendo constitutiva de um modo particular de conhecer a sexualidade.

Citando Deborah Britzman, Guacira reitera que o conhecimento contém suas ignorâncias, como resíduos do conhecimento. A teoria queer provoca uma reviravolta epistemológica, que:

não pode ser reconhecida como uma pedagogia do oprimido, como libertadora ou libertária. Ela escapa de enquadramentos. (…) Antes de pretender ter a resposta apaziguadora ou a solução que encerra os conflitos, quer discutir (e desmantelar) a lógica que construiu esse regime, a lógica que justifica a dissimulação, que mantém e fixa as posições de legitimidade e ilegitimidade.

Nos termos de Suzanne Luhmann, a pedagogia queer vê o conhecimento problema ao invés de solução:

Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da existência. A dúvida deixa de ser desconfortável e nociva para se tornar estimulante e produtiva. As questões insolúveis não cessam as discussões, mas, em vez disso, sugerem a busca de outras perspectivas, incitam a formulação de outras perguntas, provocam o posicionamento a partir de outro lugar. (…) Efetivamente, os contornos de uma pedagogia ou de um currículo queer não são os usuais: faltam-lhes as proposições e os objetivos definidos, as indicações precisas do modo de agir, as sugestões sobre as formas adequadas para ‘conduzir’ os/as estudantes, a determinação do que ‘transmitir’. A teoria que lhes serve de referência é desconcertante e provocativa. Tal como os sujeitos de que fala, a teoria queer é, ao mesmo tempo, perturbadora, estranha e fascinante. Por tudo isso, ela parece arriscada. E talvez seja mesmo… mas, seguramente, ela também faz pensar.

Referência:

LOURO, Guacira Lopes. “Teoria queer: uma política pós-identitária para a educação.” Revista estudos feministas 9 (2001): 541-553. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ref/a/64NPxWpgVkT9BXvLXvTvHMr/?lang=pt

Zine disponível em: https://monstrodosmares.com.br/produto/teoria-queer/

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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