Um resumo do capítulo Ira, do livro Sombras do coração: a espiritualidade das emoções negativas, de James Whitehead.
A ira está associada ao ch’i chinês. Lee Yearley identifica o ch’i como a energia fisiológica e espiritual que nos estimula à auto-expressão vital. A ira é a mais frequente das nossas emoções negativas. A imagem bíblica de Jesus iradamente expulsando os cambistas do lugar santo de oração nos recorda que há valores pelos quais vale a pena lutar e ameaças às quais devemos responder. Aristóteles descreveu a ira como a energia que nos habilita a enfrentar a dificuldade. Tanto a ira demasiada quanto a ira fraca demais põe-nos em risco igualmente. O surgimento da ira pode provocar coragem. A ira é um sinal a serviço da nossa sobrevivência.
A ira tem efeitos fisiológicos e psicológicos. Um aumento hormonal moderado aguça nossa atenção, mas altos níveis de adrenalina sustentados por longo tempo levam à confusão e exaustão. Mas o sentimento da ira envolve mais que esse quadro de reações físicas; estar irado inclui juízos a respeito daquilo que essas reações significam.
A ira é uma emoção altamente interpessoal. Três contextos sociais respondem pelas nossas mais frequentes experiência de ira: relações com pessoas próximas, convivência com o público e cenários em que está em jogo a justiça.
As pessoas que amamos são as mais capazes de nos levar à fúria. Nas relações com pessoas próximas, resolver o problema da ira requer muitas vezes uma abordagem direta: reconhecer nosso mútuo incômodo, enfrentar juntos as questões que perturbam, elaborar soluções com as quais possamos viver, aprender a perdoar. Temos de nos aproximar da outra pessoa envolvida, de modo que possamos enfrentar o problema juntos e tentar chegar a alguma solução prática.
A ira pública é com frequência o barômetro das outras tensões em nossa vida. Lidar com a violência pública significa encontrar caminhos para aliviar o inevitável atrito da interação social. A solução desse mal-estar público supõe uma atenção a nós mesmos: disciplinas para vencer nossa impaciência, evitar a provocação e continuar levando nossa vida.
Enquanto demagogos e políticos mencionam a ira desenfreada como causa da violência urbana, uma dinâmica mais perigosa é o niilismo. A ira da justiça ajuda a manter a esperança frente a uma depressão coletiva na luta pela igualdade social. Grupos de apoio protegem as pessoas de serem esmagadas por sentimentos de frustração e raiva. Reunir-nos com os demais renova a convicção da justiça da nossa causa.
A ira é uma emoção de emergência. Mas nem sempre as coisas se resolvem. Nossos sentimentos de ira às vezes se dissipam logo, mas com frequência continuam a existir disfarçando-se. A emoção da emergência descamba para uma disposição crônica: sentimos que estamos irados o tempo todo. O mal-estar interiorizado corrói a calma e a ira extravasa em sarcasmo ou desprezo. A ira crônica por vezes se apresenta como ressentimento. O ressentimento é a ira com vergonha de mostrar sua cara.
A ira contém uma afirmação moral: foi feita uma injustiça que deve ser reparada. Devemos aprender a ler, a revisar, a reavaliar os julgamentos que nossa ira faz.
Com maior frequência a ofensa é feita à nossa auto-estima. A ira é uma barreira contra a humilhação. Ser diminuído ameaça reduzir-nos diante de nossos próprios olhos. Algumas vezes a ofensa se refere à nossa visão do mundo. Quando alguém desafia nossos valores, quando os fatos põem em xeque nossos pressupostos básicos, quando os outros transgridem as regras que respeitamos, a ira se acende. Essas afrontas ameaçam nosso mundo de significados, as certezas que nos ajudam a dar sentido à vida. Seja qual for a causa, a ira é provocada quando a ordem estabelecida e a segurança do nosso lugar correm risco.
A segunda avaliação é que a ira acusa. Determinar responsabilidade está no centro da ira. A ira surge quando ficamos frustrados com a recusa de algo que precisamos; impedidos de ter o que queremos; impossibilitados de atingir nossa meta.
A ira nos impele a agir. Estar irado produz a consciência de que podemos, de que convém e de que devemos responder agora. As dúvidas desaparecem diante da convicção de que nossas queixas são válidas e nossas ações justificadas. A ira exige ação vigorosa para corrigir uma situação má, e não um ataque com o fim de prejudicar ou agredir o outro. É mais provável que ocorra a violência onde a ira não pode se expressar.
Irar-se traz a convicção de que algo pode ser feito. A indiferença é pior para a reconciliação do que a ira. A ira diz não ao status quo. Quando a pessoa perde a esperança de mudança, acaba a ira. A ira é decisiva na mudança social.
Homens e mulheres seguem regras diferentes no tocante à ira? Os sociobiólogos argumentam que a evolução torna a ira mais apropriada para o macho da espécie. Mas essas pesquisas se voltam para o comportamento agressivo. Para os psicólogos que estudam a ira, há poucas diferenças entre homens e mulheres. As diferenças se fundam em diferenças de poder. Em nossa sociedade, a ira tende a aumentar a credibilidade do homem, mas comprometer a credibilidade da mulher.
Muitos benefícios apreciados na sociedade são menos acessíveis às mulheres. Isso seria razão para ira. A força física pode ser usada para reprimir a rebeldia, porém mais eficiente é fazer os próprios subordinados se reprimirem. Como problema pessoal, a ira deve ser mantida fora de consideração. As considerações culturais da feminilidade reforçam o sentimento de que a ira é ilegítima para as mulheres. A mulher “ideal” ira-se somente quando as necessidades de outras pessoas estão em jogo. As mulheres submissas a essa proibição cultural identificam sua ira como patológica. Evitam a ira por medo do abandono. Fisicamente, o desabafo liberta um pouco a frustração armazenada. Com frequência, um sentimento de vingança eleva sua auto-estima.
A maior parte dos homens aprende cedo a identificar ira com comportamento agressivo. Os pais querem preparar seus filhos para ter sucesso numa sociedade brutalmente competitiva, por isso muitos pais adotam a estratégia de irritar seus filhos, para canalizar essa excitação para o comportamento agressivo. Os rapazes aprendem a usar sua ira para competir, concorrer, vencer os outros, superar o rival. Em segundo lugar, o menino aprende a responder o sentimento de vulnerabilidade com agressividade. Os analistas sociais sugerem que os laços culturalmente arraigados entre vulnerabilidade e agressão ajudam a explicar a epidemia de violência contra mulheres em nossa sociedade.
Quando o pensamento ou o comportamento se desvia daquilo que se espera, a pessoa sente-se culpada. Muitas mulheres assumem o núcleo tradicional não como um compromisso diante de valores pessoais, mas como uma extenuante série de regras para evitar uma culpa social.
São cada vez mais numerosas as mulheres que chegam a uma nova tomada de consciência de si mesmas, superando as rígidas definições de sexo que antes aceitavam. É possível que ela sinta que foi enganada ou traída. Não sendo mais dócil diante das exigências da cultura, começa a não acreditar mais no discurso convencional.
Depois de um tempo, a ira se torna mais temperada, mais aberta à decisão e ao controle. A ira é incorporada dentro da consciência da pessoa responsável.
As respostas erradas à ira são: negação, culpa, auto-condenação e acusação. Como favorecemos nossa ira? Primeiro, a honramos, depois a avaliamos, enfim extraímos dela energia para nos ajudar a agir positivamente em prol da mudança.
Honrar significa ao mesmo tempo reconhecer e respeitar. Honramos a ira prestando atenção nela. Prestar atenção dá início a um significativo processo de discernimento, e nos ajuda a ler a ira corretamente e a usar de modo produtivo a sua força.
“Minha ira quer dizer alguma coisa”. Registre suas experiências de ira. Logo vão emergir modelos. Avaliar esses modelos nos ajuda a decidir o que queremos fazer de diferente. Estar irado pode revelar os valores pelos quais achamos que vale a pena lutar. Rastrear nossa ira até sua fonte pode também revelar uma ruptura entre nossos valores professados e o modo como realmente vivíamos. Ou a ira pode tentar nos dizer alguma coisa sobre nosso mundo.
A determinação do modo como agir com nossa ira começa focalizando nosso objetivo: comunicação, mudança ou seguir em frente. Ver o comportamento irado como erupção espontânea fora do nosso controle é engano, porque a ação irada sempre inclui uma escolha. É preciso aprender a interromper sua ira, encontrar alternativas à reação explosiva, e encontrar apoio para novos modos de agir.
Expressar a ira ajuda as outras pessoas a ver as coisas de modo diferente. A ira também nos expõe, revelando onde nos sentimos vulneráveis. A ira desaparece quando a injustiça é reparada, quando o sentimento de controle pessoal é restabelecido, quando a auto-estima é recuperada.
Quando nosso objetivo é a mudança, o desafio é canalizar a ira para uma ação efetiva. A ira permanece como energia subjacente da transformação social, alimentando o empenhamento pessoal e sustentando a determinação social.
A emoção que se procura nos líderes não é a ira violenta ou ressentimento hostil, mas a “ira fina”, um impulso disciplinado, profundamente arraigado na experiência pessoal. A mudança social acontece quando as injustiças que sofremos pessoalmente se tornam ponte ligando-nos com o sofrimento dos outros.
Quando estamos irados, fazer um ato de generosidade em favor de alguém quase sempre modifica nossa disposição. A reavaliação é outra estratégia útil para diminuir a força da ira. O riso também ajuda a afastar a ira.
O perdão reinterpreta a ira. O perdão sabe que a ofensa foi suportada. Mas no perdão respondemos à outra pessoa não nos termos do mal que nos infligiu, mas nos termos da pessoa que ela é para além dessa ofensa. Perdoar envolve uma decisão. O perdão é um processo que gradualmente permite que a ferida sare à medida que a confiança se restabelece. Às vezes fazer-nos passar por vítima inocente parece mais seguro do que correr o risco do autoconhecimento que o perdão exige. O perdão genuíno cura nossa ferida; não podemos mais conservá-la para uso posterior contra a pessoa a censurar. Ao perdoar começamos de novo, talvez humilhados, mas também com esperança. Aceitar o perdão é confessar nossa culpa, não apenas a outrem, mas também a nós mesmos.
Referência:
WHITEHEAD, James D. Sombras do coração: a espiritualidade das emoções negativas. São Paulo: Paulus, 1997, p. 65-124.