Queer nos trópicos

Queer nos trópicos é um zine feito a partir de um artigo de Pedro Paulo Gomes Pereira publicado em 2012 na revista Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. Este  texto  busca  problematizar  tanto  a  potência  da  teoria  queer  como  seus possíveis limites quando aplicada para compreensão da realidade de países como o Brasil. 

Queer nos trópicos – Pedro Paulo Gomes Pereira (2012) – Resumo

Pedro começa dizendo que a primeira teórica a utilizar o termo “queer” também foi uma das primeiras críticas: “A teoria queer havia se transformado numa criatura conceitualmente vazia da indústria cultural” (De Lauretis, 1991). As indagações sobre o queer nos trópicos começam pelo risco de estarmos repetindo o que já está ultrapassado no Norte Global. Deveríamos traduzir o termo “queer”? Usar o termo em inglês já não implica em aceitar um conhecimento formulado por outros? 

O conceito de queer representa a transformação de um adjetivo negativo numa diferença que não pode não pode ser assimilada, com um caráter eminentemente transgressor. “O queer suplanta o ato identitário assumido e seus efeitos reificados em identidades”. Assim, além de adjetivo ou substantivo, queer seria um verbo:

Um  verbo  que  desenha  ações  e  deslocamentos  arriscados,  delineando  trajetórias  múltiplas  de  corpos  instáveis,  provisórios  e  cindidos.  O  ato  performático  muda; o que incomoda e abala é a mudança, não só porque altera os sujeitos que enunciam, mas porque insere a probabilidade de transformação. A multiplicidade  de  corpos  drags,  trans  e  gays  assinala  a  possibilidade  do transformar-se.

Em vez de uma identidade queer, fala-se em corpos queer que “se rebelam contra a própria construção de corpos normais e  anormais,  subvertendo  normas  de  subjetivação  vigentes”. O queer, porém, não pode ser confundido como uma simples política da diferença.

A partir da discussão entre Judith Butler e Paul Preciado, ele aponta para os limites da ideia de gênero como performance e adiciona a questão das tecnologias de incorporação (como hormônios) que permitem diferentes inscrições performativas. O gênero deve ser pensado, portanto, “no  marco  de  produção  de  um  aglomerado  de  materiais  sintéticos,  como  a  pílula  anticoncepcional,  o  silicone,  o  vestido, a arquitetura e os códigos de publicidade, a pornografia, os espaços sociais e suas divisões, a divisão dos corpos em órgãos sexuais e funcionais.”

Para Butler, as práticas políticas subversivas dependem de repetição que se torna norma, e para Preciado, a agência se dá pela dissidência das normas: “Se para Butler os agentes contemporâneos se definiriam por atos, gestos corporais e discursos, para Preciado o que os caracterizariam seria a mediação entre corpo e biotecnologias”.

Preciado busca complementar a teoria do biopoder de Foucault, que “descreve a modernidade numa indissociabilidade da vida biológica e da vida política”. Nesta sociedade disciplinar, as tecnologias operam de fora do corpo, para controlá-lo. Na sociedade farmacopornográfica de Preciado “as tecnologias formam parte do corpo e nele se diluem – as tecnologias se convertem em corpo, não havendo espaço entre tecnologia e corpo”.

A realidade brasileira, porém, está longe do contexto analisado por Foucault. Ao mesmo tempo, “a entrada da vida na história no ocidente [o biopoder] dá-se sob, e tem como condição, a própria ação colonial”. A qualidade de vida no ocidente depende da precariedade da vida nos trópicos. Foucault e Preciado não parecem se aprofundar nas relações entre biopoder e práticas coloniais. Os conceitos de biopoder e farmacopornopoder “não obstante as pretensões universais, teorias ancoradas em histórias particulares”. Precisamos então compreender como se articula o poder e a dissidência queer nos espaços periféricos.

Para realizar tal análise, Pedro Paulo recorre à relação entre os corpos “estranhos” e as religiões afro-brasileiras. Ele fala de travestis que frequentam casas de santo em Santa Maria, no Rio Grande do Sul: “Ao som do batuque, entram em transe, incorporando Pombajira – o espírito de uma mulher (e não orixá) que em vida teria sido uma prostituta, mulher capaz de dominar os homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro e dos prazeres”.

Para Pedro, o simbólico presente nas religiões ou nas espiritualidade é usado subversivamente de modo parecido a como a tecnologia seria usada em outros contextos. Há redefinição de papéis de gênero e de sexualidade por meio da religião, escapando de categorias essenciais ou identidades rígidas. Não que isso ocorre sem nenhum conflito: “as  travestis  buscam  o  acolhimento  de  suas  sexualidades  dissidentes  no  interior  de uma nova gramática, procurando na religião opções performáticas, morais e de  conhecimento  que  justifiquem  suas  escolhas,  que  lhes  acolham,  e  nas  quais  possam se expressar”.

Há uma adequação da linguagem mítica ao desejo de transformação corporal. Essa nova linguagem permite que travestis se vejam para além do olhar patologizante e criminalizante. Ela também representa uma contraposição à moralidade cristã que geralmente acompanha sua opressão: “As travestis se definiriam por atos, gestos corporais e discursos; por próteses cibernéticas e substâncias químicas, mas também, e sobretudo, por santos e entidades”. 

As mediações com entidades e deuses implicam pensar em outros corpos, outras formas de agência, que não são redutíveis às teorias com pretensões universalistas vindas do ocidente colonial:

A potência da teoria queer e seu não congelamento em teorias prévias e sem conexões com as histórias locais dependerá de sua capacidade de absorver essas experiências  outras  e,  nesse  processo,  alterar-se.  As  reticências  sobre  o  termo  queer que, como se sabe, não possui tradução fácil, poderiam então se arrefecer.  Como  dizia,  alguns  autores  comentaram  que  o  termo  queer  por  si  assinalaria  certa  assimetria,  pois  sempre  evoca  um  contexto  inglês  e  ocidental  para  o mundo. No entanto, se a teoria queer puder, ao contrário, se abrir para essas outras experiências e saberes – como as narradas neste texto, nas quais se assinala a diferença de corpos, formas de agência, mediadores, subjetividades –, deixando-se afetar, nesse caso, há a possibilidade de, em vez de o termo em inglês assinalar um processo de assimetria consubstanciado num eurocentrismo avassalador, a expressão designar a resistência a traduções fáceis.

Queer poderia ser traduzido como “estranho”. Houveram propostas de substituir o conceito de “teoria queer” por “estudos transviados”, por exemplo. Pedro Paulo conclui dizendo:

Proponho aqui que mais importante que procurar equivalentes diretos para o termo queer numa ou noutra língua seria a necessidade de “conduzir a um outro lugar”, seria o “encontro” e a “invenção” (…) Se  os  estudos  queer  estão  paralisados,  como  salientam  alguns,  talvez  seja  porque petrificados em teorias universais do Norte Global que são exportadas para os trópicos para serem simplesmente aplicadas. E provavelmente qualquer promessa de rejuvenescimento esteja vinculada às possibilidades de se escapar dessas armadilhas, em processos de distorção e deslocamento que as experiências outras podem provocar.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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