Por que anarquistas votaram em 2022?

Uma curta reflexão sobre o voto anarquista no contexto atual.

“Votar é abrir mão do próprio poder.”

Elisée Reclus

Durante a eleição presidencial brasileira de 2022 houveram alguns argumentos sobre porque anarquistas deveriam votar. Em 6 de setembro, a Jacobin Brasil publicou um texto chamado “Anarquistas em defesa do voto em Lula”, assinado por “Anarquistas mascarados” que se descreveram como “um grupo anarquista autônomo formado por radicais de vários lugares”. O texto foi respondido num outro texto publicado também na Jacobin Brasil, no dia 30 do mesmo mês, desta vez assinado por pesquisadores do Instituto de Teoria e História Anarquista (ITHA). 

Em resumo, os “anarquistas mascarados” defenderam que o que impedia os anarquistas de votar era um “ideal de coerência” que precisava ser abandonado diante de uma ameaça fascista. Anarquistas brasileiros deveriam votar em 2022 por motivos semelhantes aos que fizeram os anarquistas espanhóis votarem nos anos 30. A resposta do ITHA foi uma defesa da coerência anarquista em oposição ao reformismo. Além de demonstrar que não se pode defender uma estratégia somente pelo que aconteceu no passado, os pesquisadores também argumentam que: “Se o anarquismo tivesse hoje uma força relevante a ponto de influenciar decisivamente essa eleição, a menor preocupação das classes dominantes seria com nossa ‘possibilidade’ de voto, mas sim com a ameaça real a esse sistema de dominação”.

Eu gostaria de expandir esse argumento agora que os ânimos eleitorais se acalmaram. Acredito que a abstenção eleitoral no sentido mais amplo pode ser pensada para além da questão da coerência com os princípios historicamente defendidos pelo movimento anarquista. O argumento principal a favor da não abstenção do voto foi que esta eleição não seria uma eleição normal, e sim uma eleição que definiria a sobrevivência da democracia e, por consequência, das populações periféricas. Se abster seria irresponsável.

Esse argumento parte do pressuposto de que a crítica à democracia representativa, mesmo sendo válida, precisa ser relativizada quando a própria democracia está em risco. Como se a abstenção fosse um capricho que só pode ser assumido em condições plenamente democráticas. Isso implica em pensar no voto como tendo um poder insubstituível e imprescindível. A abstenção seria uma perda de poder político, o equivalente a se isentar de uma esfera da ação política.

A crítica à democracia representativa não é exclusiva do anarquismo. Marxistas e pós-estruturalistas também a fazem. Embora seja um assunto “espinhoso”, não podemos deixar de discutir a crítica à democracia representativa, a crítica ao governo e a crítica à representação política numa sociedade de classes.

Outro argumento a favor do voto anarquista é que deixar de votar implica em desconsiderar a diferença entre a conciliação de classes e o fascismo. Novamente, esse argumento toma como pressuposto que o voto tem poder político real. Para que esse pressuposto possa ser aceito como verdadeiro, é preciso que o problema levantado pela crítica à representação política seja devidamente resolvido. Isso significa que devemos responder à problematização não apenas do voto de grupos minoritários, mas também do voto popular.

No texto “Cinco lições de história para antifascistas”, Mark Bray nos lembra que, historicamente, os fascistas chegaram ao poder pelas vias legais e que a esquerda partidária privilegia as vias legais como meio para combater o fascismo. “A essência dessa fórmula é a crença no debate racional para se contrapor às ideias fascistas, na polícia para se contrapor à violência fascista, e nas instituições republicanas para se contrapor às tentativas fascistas de tomar o poder”, diz ele.

O motivo pelo qual não é possível debater com fascistas é que eles rejeitam os termos do debate racio­nal por princípio. A principal condição tanto para a democracia quanto para um debate honesto é a igual consideração entre adversários, o que contradiz o princípio de superioridade que é fundamental para o fascismo. O poder político fascista se foca na mobilização irracional das massas, e não na reflexão crítica. A base do fascismo é o anti-intelectualismo, a teoria da conspiração, a negação da história, da ciência e do conhecimento verificável em nome de uma paixão coletiva. Embora essas características não sejam exclusivas da direita, historicamente houve uma estreita relação entre fascistas e a extrema direita, seja essa a direita conservadora ou neoliberal. Por isso o antifascismo é neces­sariamente anticapitalista. Enquanto houver sociedade de classes, diferentes formas de fascismo (ou neofascismo) permanecerão como opção em caso de levante popular contra a classe dominante.

A ideia de proteger a democracia por meio de um instrumento democrático parece contraditória. Se os inimigos da democracia não têm o poder de rejeitar uma decisão democrática, como poderiam ter o poder de colocar a democracia em risco? Se eles têm esse poder, então como o resultado de uma eleição poderia derrubá-los? O anarquismo historicamente argumentou que as pessoas comuns podem se organizar sem governos, e que isto não depende de condições especiais criadas pelo estado. Pode acontecer aqui e agora, e as dificuldades para isso não poderiam ser muito maiores do que as dificuldades de organizar uma campanha para eleger um candidato “do povo” em meio a uma onda fascista.

Desde sempre, os anarquistas criticaram o governo e privilegiaram outras formas de organização política, como a organização comunitária, apoio mútuo, autogestão e ação direta. Entre essas pessoas estão Michael Bakunin, Peter Kropotkin, Lucy Parsons, Emma Goldman, Élisée Reclus, Errico Malatesta e Voltairine De Cleyre.

O ponto central é que se o voto tivesse algum poder real enquanto ação política, então ele não seria permitido numa sociedade com estado. O estado só pode aceitar o voto da classe trabalhadora na medida em que a mantém sob controle, seja pelo monopólio do uso da violência ou pela ideologia dominante. A práxis da abstenção se baseia na revolta contra o voto enquanto mecanismo de controle do poder popular. O poder político numa democracia representativa não é de fato concedido a uma maioria, nem sequer no campo restrito das eleições. Ele permanece sendo de uma minoria capaz de influenciar a maioria ou reprimi-la caso não aceite sua decisão. A eleição, nesse sentido, não dá poder ao povo. Ela apenas justifica a perda de poder político ou perda de autonomia que é inerente ao governo. Anarquistas em geral enxergam as eleições como um espetáculo criado para fazer o povo crer que tem um poder que na realidade não tem, e assim conceder seu poder a representantes que não o representam.

Logo, para argumentar não apenas a favor do voto anarquista, mas do sentido político do voto em si, seria preciso mais do que demonstrar as diferenças entre dois projetos políticos. Se o fascismo pode de fato ser derrubado pelo voto, então temos apenas duas opções:

  1. A crítica à política representativa está fundamentalmente errada. Isso significa que a abstenção nunca fez sentido. De Bakunin a Voltairine, todo mundo que criticou o voto estava ERRADO, dado que estavam se abstendo de um poder político real.
  2. Que certas condições específicas não permitem aplicar as mesmas estratégias defendidas historicamente pela crítica à representação política, e nessas condições não resta nenhuma outra saída viável senão a eleição de outro governante.

A primeira opção exige uma validação definitiva da política representativa, o que implica numa reconsideração completa da crítica a essa teoria política.

A segunda opção não compromete a teoria como um todo, mas exige a demonstração de um fato. Que condições justificam o voto como ação antifascista? Se a crítica à representação precisa ser deixada de lado em condições específicas, então o voto só tem poder real nessas condições específicas? Se isso fosse verdade, então não apenas anarquistas deveriam votar, como antifascistas também deveriam se candidatar e debater com candidatos fascistas, como exigem os valores democráticos. Afinal, se o voto anarquista faz sentido num certo contexto, a candidatura anarquista também faria. Essa opção exigiria uma reconsideração completa das práticas anarquistas e antifascistas.

A análise comum da própria esquerda partidária é que a democracia se encontra em crise. Mas se o voto anarquista não era tão necessário quando a democracia estava mais forte, porque seria agora que a democracia se enfraquece? O contrário pareceria mais provável: o voto teria ainda menos poder quanto maior for a crise das instituições democráticas.

A afirmação de que o voto é mais importante nas atuais condições precisa ser demonstrada com evidências. Se for demonstrada a importância estratégica concreta de uma candidatura de resistência, então o debate se encerra: não faria sentido abster-se da política eleitoral nessa situação só por ser anarquista, e não faria sentido para antifascistas deixarem de se candidatar só porque isso exige que eles debatam com fascistas. Isso não é algo pequeno: um argumento contundente a favor do voto não poderia ser ignorado, e uma candidatura anarquista, assim como o debate com fascistas, se tornaria coerente nessas condições.

Mas onde, exatamente, estão essas evidências? Deixemos de lado a questão da coerência teórica levantada pelo ITHA por um momento. Apenas me mostre evidências de que o voto, normalmente sem poder real, adquire poder real quando fascistas se candidatam. “Tirar o fascista do poder” não é possível por meio do voto a não ser que o voto efetivamente seja capaz de eleger alguém que não apenas não é fascista, como tem poder para governar APESAR da ameaça fascista. O que temos são evidências de que o fascismo permanecerá no poder independente do resultado das eleições, principalmente se o governo eleito permanecer negociando com ele.

Outro argumento bastante usado para defender o voto anarquista é o de que precisamos “escolher nossos oponentes”. Obviamente, esse argumento também parte do pressuposto de que o voto é um instrumento do povo para mudança política, mais do que das classes dominantes. Este argumento recai nos mesmos problemas apontados no argumento anterior.

É possível argumentar pelo poder simbólico do voto. Mas aí não se pode negar também o poder simbólico da abstenção. Além disso, o pressuposto de que a política representativa é válida, desde sempre ou numa determinada condição, precisa demonstrar que a abstenção é uma perda de poder, e não uma outra forma de poder. Partindo do pressuposto de que o poder representativo nem sempre existiu, é quem acredita no voto que precisa demonstrar que ele tem poder real. Exigir que a pessoa que não vota demonstre que ela exerce outras formas de poder é uma inversão do ônus.

Pedir que anarquistas votem é como pedir que ateus orem. Ateus podem participar de uma oração sem necessariamente acreditar em Deus. Anarquistas podem votar sem necessariamente acreditar no poder real do voto. Podem votar por conveniência, por exemplo, ou apenas para não serem excluídos de um grupo social. O voto anarquista não pode combater o fascismo se a política representativa em si é um problema. A abstenção não perde o sentido quando o fascismo avança, pelo contrário, ela se torna ainda mais poderosa como afirmação de que o fascismo não vem de uma pessoa ou de um governo específico, mas de uma estrutura política dominante. São as ações antifascistas que realmente combatem o fascismo.

Ao invés de uma bifurcação entre democracia representativa e fascismo, temos uma complementaridade. A oposição ao fascismo não necessariamente exclui a crítica radical à democracia representativa.

Se for demonstrado que o voto anarquista é, excepcionalmente ou não, uma ação significativa para combater o fascismo, não há motivo nenhum para anarquistas deixarem de votar. Mas se isso não for demonstrado, não faz sentido nenhum votar, sendo você anarquista ou não. Os argumentos que eu conheço, sem exceção, partem do pressuposto que o voto tem poder. Eles nunca demonstram que esse poder é real, porque isso sequer é colocado em questão para a maioria das pessoas.

Por exemplo, a afirmação de que a abstenção é um privilégio de quem não está diretamente ameaçado pelo regime fascista pressupõe o que deveria ser demonstrado: que as vias legais são eficazes para nos proteger contra o fascismo. Não faz sentido votar em nome da “esperança” de um futuro melhor se essa esperança não tem conexão com a realidade. Se ela é somente uma crença num fato não verificável, não faz sentido tentar convencer outra pessoa a crer. E se há um fato verificável, basta apresentar o fato.

A validade da abstenção como estratégia política é real até que se prove o contrário, pois o ônus da prova cabe a quem afirma a validade da política representativa em relação à que prevaleceu desde sempre: uma política sem representação, de relações diretas e autônomas. A crítica à política representativa precisa ser respondida com argumentos válidos, ou então o que se pede não é apoio político contra o fascismo e sim uma crença dogmática na política representativa. Sem uma demonstração de equívoco ou limitação da crítica à representação política, também não é possível invalidar a tese de que a participação em ações diretas antifascistas é mais relevante do que a participação em processos eleitorais, e que a escolha de não votar não representa necessariamente uma perda de poder político, mas uma escolha por outras formas de exercer poder político.

Leitura recomendada:

Da Democracia à Liberdade: A Diferença entre Governo e Autodeterminação. Crimethinc, 2019.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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