Um pequeno resumo introdutório do livro A Sociedade em Rede (1996), de Manuel Castells.
Manuel Castells enumera quatro culturas que formaram a Internet: a cultura tecnomeritocrática, a cultura hacker, a cultura comunitária virtual e a cultura empreendedora.
A cultura tecnomeritocrática é elitista, relacionada à comunidade científica e acadêmica, que valoriza a inovação tecnológica.
A cultura hacker também valoriza a inovação tecnológica, mas é baseada na liberdade e na criatividade no uso dos meios disponíveis, inclusive na distribuição do conhecimento. Busca também independência institucional, social e econômica. O hacker se aproxima do artista.
A cultura comunitária virtual utiliza e ao mesmo tempo modifica a tecnologia da Internet, que se torna “instrumento para a organização social, a ação coletiva e a construção de sentido”.
A cultura empreendedora se apropria da Internet enquanto oportunidade de lucro e tenta controlá-la para que ela não perca essa capacidade. Transforma tecnologia em mercadoria e capital, dentro de um modelo de capitalismo financeiro de alto risco.
A cultura da Internet é “uma cultura construída sobre a crença tecnocrática no progresso humano através da tecnologia, praticada por comunidades de hackers que prosperam num ambiente de criatividade tecnológica livre e aberta, assente em redes virtuais, dedicadas a reinventar a sociedade, e materializada por empreendedores capitalistas na maneira como a nova economia opera”.
A inteligência coletiva formada pelas relações em rede é um novo espaço de criação de identidade, que pode ser definida como “processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói significado”. Castells parte do processo de transformação tecnológica, no contexto social em que ele ocorre, para compreender as mudanças sociais posteriores. A tecnologia não determina a sociedade e a sociedade não determina o desenvolvimento tecnológico. Entretanto, a tecnologia não pode ser compreendida fora do contexto social, nem a sociedade pode ser compreendida sem suas tecnologias.
Para Castells, o grande salto de desenvolvimento da tecnologia da informação “pode, de certa forma, ser relacionado à cultura da liberdade, inovação individual e iniciativa empreendedora oriunda da cultura dos campi norte-americanos da década de 1960”. As redes de computadores começaram como uma estratégia de guerra, durante a Guerra Fria, para impedir que o sistema de comunicações fosse atacado a partir do centro. Elas se tornaram o que são hoje porque foram apropriadas por pessoas com outros interesses.
A relação entre inovação tecnológica e instituições sociais fica mais clara ao observarmos o exemplo chinês, citado por Castells. O Estado chinês incentivou o avanço técnico até o século XV, quando dispunha de superioridade tecnológica em relação à Europa. Mas nas dinastias posteriores as elites culturais se concentraram nas humanidades, nas artes e na ascensão burocrática. Do mesmo modo, a revolução tecnológica atual ocorreu num processo histórico de reestruturação global do capitalismo, servindo de ferramenta para este. Como resultado emergente, temos uma sociedade capitalista e informacional, ainda que isto varie de acordo com o contexto de cada país.
Em diálogo com Alain Touraine e Daniel Bell, Castells distingue entre o industrialismo e o informacionalismo, também chamado de pós-industrialismo. Este termo impõe certas dificuldades. Ao usá-lo, é preciso deixar claro que a produção industrial não deixa de ser importante para a sociedade, nem está necessariamente oposta ao capitalismo ou ao estatismo. Por produção, entende-se a ação humana sobre a natureza/matéria que visa apropriar-se de um recurso e transformá-lo num produto para consumo humano, assim como para acúmulo de excedente. A sociedade em rede é uma sociedade em que o aspecto informacional se destaca em relação ao aspecto industrial que caracterizou uma fase anterior da modernidade.
A produção se distingue da experiência humana, que é a ação que sujeitos humanos desempenham uns sobre os outros, na interação entre as identidades desses sujeitos e no contexto de seus ambientes sociais e naturais. Em resumo, a produção é uma relação entre sujeito e mundo natural. A experiência é construída na relação entre sujeitos humanos. A principal mudança trazida pelo informacionalismo não é quanto ao modo de produção, mas quanto à experiência humana.
É neste quadro que a busca pela identidade se torna uma questão prioritária. “Em um mundo de fluxos globais de riqueza, poder e imagens, a busca da identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social”. Quando a experiência é construída dentro da estrutura de redes, o significado vai sendo cada vez menos organizado em torno da produção e cada vez mais em torno da autoimagem: aquilo que cada um é ou acredita ser. Isso significa que o discurso ganha destaque na definição do Eu.
As redes globais conectam indivíduos e grupos sociais em torno de objetivos comuns, embora transitórios. Temos por um lado um instrumental universal e abstrato e, por outro, identidades particulares historicamente enraizadas. Esta exposição serve para que possamos entender o significado da seguinte afirmação-chave do livro de Castells: “Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o Ser”. A “Rede” refere-se ao instrumental, e o “Ser” refere-se às identidades. Mas uma ressalva precisa ser feita. Para evitar confusões, é preciso notar que o termo original cuja tradução aparece como “Ser” é “Self”. O sentido de “Self” seria mais bem traduzido pelo termo “Eu”, relacionado à identidade do sujeito.
A oposição entre a Rede e o Eu é importante para descrever mudanças nas representações do Eu dentro da cibercultura, partindo do pressuposto que a estrutura das redes está influenciando de algum modo essa mudança social. Se não houvesse tal conflito, não seria necessário falar de redes, pois partiríamos de um determinismo sem espaço para o sujeito ou então de uma separação completa entre estrutura e sujeito. É claro que não podemos ignorar que usar este conceito implica em entrar na difícil discussão sobre a tensão entre ação social e estrutura, agência e sociedade.
Em resumo, as redes não dão o mesmo tipo de suporte identitário que as instituições modernas davam, e ainda assim elas são o único suporte possível num mundo informacional. Um dos desafios apontados por Castells quanto a esta separação entre processos identitários e instituições, é que, paradoxalmente, o excesso de velocidade da conexão e desconexão entre indivíduos provoca uma maior incidência de ruptura na comunicação. Esta ruptura é mais do que um conflito entre posições opostas, como ocorre na luta de classes. É uma ruptura silenciosa, na qual indivíduos buscam interagir somente com indivíduos do mesmo grupo, que partilham dos mesmos interesses. O outro se torna uma ameaça. Um fenômeno semelhante ao que hoje chamamos de bolhas virtuais ou câmaras de eco.
Isto indica a presença de um processo de fragmentação social, na qual as identidades se tornam cada vez mais específicas e difíceis de compartilhar. Há cada vez menos referências comuns. As identidades coletivas são cristalizações da comunicação simbólica entre os indivíduos e da relação destes com o meio, o que chamamos anteriormente de produção e experiência. Temos então a imagem de um modo de organização onde as relações mudam antes que possam se cristalizar.
Industrialismo e informacionalismo são modos de desenvolvimento, cada qual com um princípio de desempenho estruturalmente determinado, sobre o qual são organizados os processos tecnológicos. No industrialismo o princípio de desempenho é voltado para a maximização da produção, ou seja, o crescimento econômico. No informacionalismo o princípio de desempenho visa o acúmulo de conhecimento e elevação dos níveis de complexidade do processamento da informação, ou seja, o desenvolvimento tecnológico. O desenvolvimento tecnológico tende a resultar em aumento da produção, mas no informacionalismo a produção tecnológica tem a função básica de acumular informações, não de aumentar a produção. O que não quer dizer que a lógica de produção de capital não esteja presente na sociedade informacional.
Segundo Castells, o termo “sociedade informacional” funciona de modo semelhante ao termo “sociedade industrial”, ou seja, indica diferentes caraterísticas fundamentais em relação à organização tecnológica. Porém, as sociedades informacionais são capitalistas. Ao mesmo tempo, as sociedades informacionais possuem alto grau de diversidade cultural e institucional.
Sugere-se que o informacionalismo vem acompanhado de um capitalismo pluralista. Todas as sociedades estão sob a influência do capitalismo e do informacionalismo. Uma teoria da sociedade informacional, com todos os seus elementos, precisaria levar em conta a especificidade histórica e cultural de cada sociedade. Mas o paradigma econômico e tecnológico que rege todas elas parece partir de uma estrutura global: “As novas tecnologias da informação estão integrando o mundo em redes globais de instrumentalidade”.
As redes de computadores, mediando uma comunicação global, possibilitam a criação de diversas “comunidades virtuais”. Tais comunidades são criadas a despeito da tendência de construção da ação social e política em torno de identidades coletivas, enraizadas num contexto histórico e geográfico comum. As sociedades informacionais podem ser caracterizadas pela preeminência da identidade como princípio organizacional.
Citando Raymond Barglow, Castells reafirma a ideia de que o avanço tecnológico está desfazendo a visão de mundo que ela mesma promoveu no passado. Isto fica mais nítido a partir da seguinte análise: o conceito tradicional de sujeito estava, de certo modo, fundado na afirmação de um sujeito independente, que podia até certo ponto se opor à estrutura da sociedade. O paradigma mecanicista apoiava este conceito, uma vez que a interação mecânica é uma interação entre elementos independentes. A base tecnológica estava em consonância com a noção de autonomia, soberania ou autossuficiência. Desde os filósofos gregos, a identidade individual estava de certo modo ancorada na capacidade do sujeito de realizar certas ações usando certas ferramentas.
O paradigma informacional subverte essas noções ao fazer retornar uma visão de mundo segundo a qual estamos todos conectados. Por isso, a interação passa a ser sistêmica, de modo que certa determinação estrutural se impõe. A identidade individual está agora atrelada à capacidade de tecer redes sociais e se mover por elas.
A consequência desse desenvolvimento é uma espécie de “crise de identidade”. Por “crise de identidade”, podemos entender um processo no qual as identidades individuais ou coletivas, na ausência da segurança identitária provida por uma comunidade no sentido tradicional, tentam definir-se a partir da exclusão mútua: o ser a partir do não-ser, o eu definido a partir do que não sou. Os critérios de valor e significado são redefinidos num mundo em que parece haver pouco interesse por aqueles que não estão conectados nas mesmas redes.
Analisando o contexto social da cibercultura, que é a sociedade em rede, vemos que os processos sociais que compõem o informacionalismo, em que a experiência ganha certa precedência sobre a produção, também estão associados a uma oposição entre a Rede e o Eu, ou seja, um conflito entre sujeito e estrutura. O conceito central para compreender essa nova organização em redes é a instabilidade.
Referência:
CASTELLS, Manuel. Sociedade em Rede. Volume 1. 8ª Edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005.