Qual seria a relação entre a tecnologia informacional e a antiga prática de comunicar-se com os mortos?
Qualquer habitante de um grande centro urbano pode facilmente acreditar na ideia de que o ser humano precisa do avanço tecnológico e científico para sobreviver. As pessoas inseridas num modo de vida urbano certamente se encontram totalmente dependentes do progresso tecnológico. Mas essa dependência seria um destino natural da espécie humana, ou seria mais como um vício cultural?
A crença de que todas as sociedades tendem a se tornar “avançadas como a nossa” toma um padrão criado culturalmente como referência. O que isso diz sobre as sociedades que não avançaram do mesmo modo? O que seria desse avanço sem o colonialismo, o imperialismo, o extrativismo, o mercantilismo e o escravismo? Se nenhum lugar do mundo tivesse sido invadido e expropriado, se os derrotados pelas guerras não fossem obrigados a vender sua mão-de-obra pelo preço mais baixo, o que seria do avanço tecnológico e social? Haveria Aristóteles, Newton, Einstein? Haveria filosofia, iluminismo, revolução industrial? O que seria da nossa ciência e tecnologia sem essas condições históricas?
Lógico que o importante é o que podemos fazer AGORA. Não podemos voltar no tempo nem desfazer o que foi feito, então temos que trabalhar com o que temos agora. Mas é impossível pensar numa solução sem compreender o problema, e é impossível compreender o problema sem saber como ele começou, como se desenvolveu, como se tornou o que é agora. Então pensar o que podemos fazer agora é válido, mas primeiro precisamos compreender onde está o erro: no ser humano ou em algo que algumas pessoas fazem e chamam de progresso?
Nós criamos muitos argumentos para justificar a mentalidade desenvolvimentista. O principal deles é uma falácia naturalista que confunde progresso com evolução. Trata-se de uma versão secular de uma crença religiosa. O colonialismo foi justificado como mandamento divino, o neocolonialismo é justificado como imperativo científico. Ao defender que os indígenas possuíam alma, o herege desafiava um conceito teológico central: nós construímos cidades porque este era o plano de Deus para a humanidade. Toda cidade é construída em torno de um “templo”. Como a maçonaria pode atestar, o projeto urbanístico era um projeto divino. Os povos “selvagens” estavam evidentemente fora dos planos de Deus. A igreja só pôde aceitar que índios possuem almas quando se tornou concebível catequizá-los e fazê-los construir igrejas e cidades.
Hoje, ao defender que os povos nativos têm direito à autonomia, o herege desafia um conceito científico: existem formas objetivamente comprováveis de melhorar a qualidade de vida das pessoas. Defender que povos nativos não devem ser forçosamente tirados seus territórios, ou forçados a abandonar sua cultura e costumes, pode ser visto como uma defesa do relativismo moral e cultural, por exemplo. “Eles não tem o direito de impedir o progresso”, afirma o progresso, enquanto a gente se cala e aceita os benefícios do progresso.
Se aceitássemos deixá-los em paz, significaria que nossa cultura não é melhor que outras. E isso seria inconcebível na prática, ainda que o discurso seja outro. Por mais que falemos, da boca pra fora, que não somos superiores, é economicamente inviável fazer de outro modo. A afirmação dessa superioridade é uma condição para a continuação do avanço. Porque acreditamos piamente no progresso, não somos capazes de negar que as coisas melhoram porque nós, enquanto sociedade civilizada, melhoramos as coisas, por vontade própria, contra a “vontade” das “coisas”. Ao melhorar as coisas, nos tornamos melhores que antes, e deixamos pra trás o que é pior que nós. Esse é o próprio significado de avanço. O aumento da expectativa de vida e cura para doenças são os principais motivos citados em defesa desse argumento. Qualquer tentativa de negar isso implicaria, na lógica do progresso, na morte de bilhões de pessoas.
Assim que se relativiza o avanço de nossa cultura, se abre caminho para o relativismo epistemológico, uma vez que esta é a cultura que fundou as bases do método científico, da lógica analítica e do que chamamos de conhecimento objetivo ou empírico. Não importa onde isso começou. Se concedermos que os fundamentos do nosso pensamento não são superiores aos fundamentos de uma “cultura rudimentar” ou “primitiva”, que antecede esses métodos, seria como dizer que não são necessariamente melhores, o que significaria que outros modos de pensamento poderiam ser aceitos no seu lugar, o que nos faria cair no buraco da pós-modernidade e da pós-verdade. Pelo menos esse é o argumento de alguns dos defensores do progresso.
Mesmo compreendendo o argumento de que a ciência e a tecnologia não são neutras, que nossa consideração acerca do mundo é sempre mediada por “narrativas” ou “discursos”, ainda assim a necessidade do avanço técnico não pode ser negada. Mesmo que seja uma crença cultural ou uma mitologia, é ela que define nossa identidade, que nos faz ser quem somos. São demarcações que antecedem qualquer distinção objetiva dos fenômenos naturais: a distinção entre humano e animal, artificial e natural, individual e social… Diferentes visões sobre o que é natureza levam a diferentes conclusões sobre o que é sociedade, humanidade e até realidade. A visão de mundo civilizada está profundamente enraizada na ideia de que humanos podem modificar e controlar a natureza. Este “podem” indica tanto uma capacidade quanto uma permissão. A capacidade e a permissão vem de deus ou da natureza, dependendo do referencial.
Nossas ferramentas analíticas se aprimoram, mas nós observamos o mundo por meio de lentes que foram construídas ao longo de um processo histórico que sofreu interferências de diversos elementos. Mesmo que possamos estabelecer fatos pontuais bem difíceis de negar, o modo como ligamos os pontos faz toda diferença. Enquanto criamos modelos de explicação cada vez mais complexos, o conhecimento objetivo e confiável perde sua força de sustentação quando a análise é mais ampla. Entramos numa zona de crescente indeterminação.
A reação a essa crise epistemológica é, por um lado, o conservadorismo. Podemos ver esse fenômeno em todos os aspectos da sociedade: na economia, na educação, no direito e na política… É como se nosso mundo estivesse rachando, se dividindo em partes incomunicáveis. Isso causa desespero e ansiedade. Há várias metáforas para esse fenômeno: a liquefação, o risco, o hiperbólico, a reflexividade… E agora queremos propor uma nova metáfora: a necromancia.

O que tem sido chamado de avanço pode ser visto como uma negação ativa da morte natural, a morte enquanto processo vital, que fecha e reinicia o ciclo da vida. A civilização estanca o processo de degeneração e regeneração da vida. Ela é a luta contra a morte, e por consequência contra a vida. O ritmo veloz das mudanças ambientais e tecnológicas é uma manifestação desse desequilíbrio. É a tentativa de evitar o inevitável, o horror narcísico de Dorian Gray diante da sua própria imagem.
A necromancia é um tipo de “divinação maldita”. Ela é maldita tanto pelos seus métodos quanto pelos seus objetivos. Ela foi usada em todas as civilizações, principalmente para “falar” com os mortos. Como a divinação, ela permite olhar para o futuro. Mas o seu objetivo não é só ouvir os mortos e ver o futuro, é controlar ambos. Para mudar o destino, ela obriga espíritos a realizar tarefas.
O conceito de “horror alienado” é o repúdio diante de uma experiência que, numa condição não alienada, passaria como comum e simples, mas que se torna assustadora, hostil e até violenta quando estamos alienados. O medo de envelhecer, por exemplo, é resultado de uma sociedade centrada na produção, que fica comprometida quando se está doente ou velho. Em culturas menos aceleradas, a velhice é experimentada com menos ansiedade. Há coisas piores que envelhecer e morrer.
O horror alienado pode ser racionalizado e mantido como mecanismo de defesa. Podemos criar teorias para explicar de modo convincente por que não podemos encarar a velhice e a morte. Isso nos afasta das questões que perfurariam a superficialidade da nossa compreensão de sociedade, estourariam nossa bolha de ilusão. Criamos crenças que funcionam como barreiras ao redor de outras crenças. Qualquer ameaça às crenças centrais é lida como uma ameaça pessoal. Se o progresso for relativizado, quem somos nós? Se nosso avanço não foi real, se ele só é válido de acordo com uma determinada perspectiva e pode ser criticado, nós perdemos nosso chão. Ficamos desorientados.
Há um horror alienado muito caro para a sociedade civilizada. Um grande tabu, difícil de discutir: a morte de bebês. É o argumento final em favor do progresso, quando todos os outros falham: pode até ser que sociedades forrageadoras tinham uma qualidade de vida melhor, mas é inegável que a taxa de mortalidade infantil era absurdamente alta em comparação com a nossa. Sim, isso é verdade. E mais surpreendente ainda: ninguém ligava pra isso. Por que a morte de bebês, que talvez seja a coisa mais horrível que somos capazes de imaginar, era considerada menos importante do que, por exemplo, representar uma caçada? Por que não encontramos nenhum vestígio de pessoas perdendo o sono por causa da morte de seus bebês? Será que as pessoas não tinham coração? Não tinham refinamento moral para compreender que um bebê é um ser humano, inocente e cuja vida tem um valor intrínseco?
Mas de onde vem essa crença nesse valor da vida de bebês, senão das religiões com valores centralizados na dicotomia entre “inocência” e “pecado”? Qual o sentido, afinal, de ficar horrorizado com o “aborto pós-natal” (simples infanticídio para os “defensores da vida”) e não com o fato de que estamos criando essas crianças para uma vida vazia, de depressão e ansiedade, escravidão assalariada, crise ecológica e humana, e, numa taxa crescente, as opções são basicamente suicídio, vícios ou fanatismo. Achar que tudo isso vale a pena para salvar a vida de bebês que acabarão desejando nem terem nascido é o maior exemplo de horror alienado.
A sociedade necromântica não está inteiramente viva e não está inteiramente morta. Ela caminha por uma determinação estranha à vida natural: o automatismo da produção, a compulsão pela eficiência, a necessidade de controlar a vida. Ela não é beneficiária do progresso, mas sim prisioneira, como um morto-vivo é prisioneiro da maldição que o mantém “funcional”. Por não estar plenamente vivo, é preciso manter o ritual necromântico para que o corpo continue se movendo. Lembrando Frankenstein, necromancia e ciência estão unidas quando criam simulações da vida.
Então não é nenhuma surpresa que a sociedade necromântica pretende simular a vida nos seus mínimos detalhes. A simulação é a conclusão lógica do progresso. Muito do avanço tecnocientífico atual, principalmente na área econômica e ecológica, só é possível por causa de simulações de computador. Criar uma simulação é colocar dados sobre coisas reais para ver como elas se comportariam em outras condições. Em outras palavras, simulação é necromancia: a arte maldita de fazer coisas não vivas se comportarem como vivas para prever e controlar o futuro. Ela obriga nosso conhecimento sobre o mundo a caber em processos computacionais, algoritmos e equações, como espíritos presos em filactérios.
O que é o progresso? Como medi-lo? Como definir o que é mais avançado? Quais são as condições de possibilidade do avanço? Quais são as consequências do avanço para aqueles que participam dele e para aqueles que não participam? Estas questões são éticas, estéticas, epistemológicas e políticas. A abordagem apresentada aqui compara o progresso com uma negação da morte. Num sentido mais concreto, a civilização é basicamente a negação do modo de vida forrageador, cujo maior custo é a morte de bebês. Esta negação só pode ser possibilitada por uma estrutura patriarcal e agrícola, na qual o equilíbrio existente entre natalidade e mortalidade pode ser alterado por meio de técnicas. “Aquele que não pode conviver com os mortos, ou morre com eles, ou os faz viver de novo”. O único meio de superar a necromancia é abraçar a morte, libertá-la do invólucro no qual ela foi presa. O progresso científico pode ser, no fundo, a luta contra a morte. Seria a crítica ao progresso, então, a luta pela renaturalização da morte?
Ou uma necromancia subversiva poderia ser usada contra a sociedade necromântica? Poderíamos criar uma simulação para demonstrar que não deveríamos estar criando simulações? Um feitiço para acabar com toda maldição?