Contra a tecnologia

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Um pequeno manifesto de crítica à tecnologia.

Que tipo de problemas podem ser resolvidos pela tecnologia? Ela pode, exemplo, nos ajudar a produzir muito mais comida do que seria possível sem ela. Mas por que precisaríamos de mais comida? Porque temos mais pessoas, você diria. Mas por que temos mais pessoas? Foi o controle sobre a comida e a reprodução humana que gerou o crescimento populacional, não o contrário. Povos sem agricultura tinham uma população estável. Os primeiros povos agrícolas tiveram uma significativa queda na expectativa de vida, diversos problemas de saúde, e deram início a diversos de nossos problemas sociais: o patriarcado, a opressão de classes, a escravidão, etc…

Mas não há como retornar para um modo de vida sem agricultura. A maioria das pessoas não sabe como produzir sua própria comida. Ou talvez você pense que a vida antes das sociedades agrícolas era miserável e a melhor coisa que fizemos foi dominar a terra, torná-la “produtiva”. Afinal, nossa comida hoje vem basicamente de agroindústrias movidas por tratores, pesticidas e caminhões.

Por que nossa cultura passou a ter uma relação de dominação com a natureza? Ela é considerada ao mesmo tempo bela e algo a ser controlado. Fonte de vida, porém que nos condena à morte, doença, dor e sofrimento. Lugar de descanso, mas também perigosa, imprevisível, injusta, impiedosa. Deveríamos preservá-la, amá-la e respeitá-la, e ao mesmo tempo ela é indiferente ou hostil em relação a nós. Estamos cada vez mais afastados dela, e ela de nós. Em culturas ancestrais, nossa relação com ela era totalmente diferente. A natureza não era simples “fonte de recursos”, ela tinha “alma”, e nossas ações sobre ela dependiam de um “entendimento mútuo”. Havia uma relação intersubjetiva, dois sujeitos interagindo, e não apenas o agente racional (o homem) agindo sobre o objeto (seres e forças não humanas). Quando e por que isso mudou?

Essa mudança está relacionada à origem do patriarcado, uma forma de organização social centralizada no homem, macho, provedor. Dele eram todas características virtuosas. Rebaixando a mulher a um ser inferior, os homens puderam criar um controle técnico sobre a reprodução. O domínio do homem sobre o homem começa com o domínio do homem sobre a terra e a mulher. O masculino foi considerado a parte racional, enquanto o feminino é emocional, selvagem, descontrolado. Não faz sentido esperar consentimento ou entendimento mútuo daquilo que precisa ser domesticado. O forte nasce pra mandar, o fraco pra obedecer. Esta crença deu origem à racionalidade instrumental, condição de possibilidade da tecnociência. Apesar de se tornar dominante na filosofia do iluminismo, ela já estava presente de modo incipiente desde a domesticação de plantas e animais.

Agora que o homem estabeleceu poder, ele não pode desistir dele. A religião justificou este poder até certo ponto, e depois a ciência assumiu esse papel. Não questionamos essas autoridades. Acreditávamos que o homem era a criação especial de Deus, e agora acreditamos que temos uma capacidade superior que vem de nosso incrível cérebro. São formas diferentes de expressar a mesma mitologia. Nós criamos um mundo imaginário onde somos dominadores, e realizamos esse mundo por meio do sacrifício de tudo que se coloca no caminho. Sem escravidão, guerras e destruição ambiental, nada do que temos hoje teria sido possível.

A mitologia do progresso está profundamente enraizada em nossa cultura, e iremos nos agarrar firmemente a ela até não termos mais nenhuma opção. Criamos nossas teorias do conhecimento em torno desse mito. Ele é reafirmado constantemente, na própria linguagem e na base de nosso sistema simbólico. Quando você entende que é um mito, você o vê em todos os lugares. Ele é repetido à exaustão. E, logicamente, ele precisa ser repetido para se tornar verdade. Nesta ideologia, a natureza é demonizada, tratada como vilã, culpada por todos os males. A razão é o herói destinado a vencer essa coisa má, que nos reduz a animais. Quanto mais racionais, mais valor temos. E, lógico, nós pensamos que mais tecnologia tem tudo a ver com racionalidade. Religião é irracional, ciência é racional. Esta é uma falsa oposição. O dogma tecnocientífico é apenas a radicalização do dogma religioso: o excepcionalismo humano.

Como questionar esse dogma hoje, em que um projeto político que alia fundamentalismo religioso, moralismo, pseudociência, anti-intelectualismo e racismo está no poder? Não seria um risco fazer uma crítica à ciência e à tecnologia nesse contexto? Será que isso não beneficiaria o terraplanismo ou a teocracia neoliberal de um governo intelectualmente despreparado, que odeia a educação superior? Eu penso que não, e vou explicar porque eu acho que é justamente o contrário.

A ideologia política dominante é, em muitos sentidos, fundada nos mesmos ideais da tecnocracia, o governo da superioridade técnica. Não apenas porque ela valoriza uma formação técnica, puramente voltada ao trabalho e que despreza a educação dos sentidos e o pensamento crítico, político e filosófico, mas porque ela se funda nos mesmos mitos sobre a natureza e a humanidade que fundaram a cultura tecnocientífica.

Governos autoritários podem ter se refugiado em metáforas sobre “o homem natural”, um ser puro, virtuoso, inocente. Mas isso não significa que a ideologia tecnológica de luta contra a natureza seja emancipadora. A visão de natureza dos conservadores é tão distorcida quanto dos progressistas tecnocentrados. Do mesmo modo, não podemos enfrentar regimes autoritários sem tecnologia. Mas isso não significa aderir à ideologia do progresso tecnológico.

O desenvolvimento do nosso sistema tecnológico também não tem nada a ver com um processo evolutivo do ser humano. A evolução humana não leva ao progresso tecnológico; o progresso tecnológico não faz parte da evolução humana; nem é uma compensação pela fragilidade física. Essas crenças são comuns até entre professores de biologia, porém elas não têm nenhum fundamento científico, segundo Stephen Jay Gould, um dos mais importantes biólogos do século XX. Progresso é a grande mentira da humanidade. Evolução é sobre mudança constante e não dirigida, não sobre progresso.

A ideia de progresso como superação dos limites impostos pela natureza é uma das crenças mais básicas da nossa cultura. Mas não é possível superar a natureza. O que é possível é deixar de reconhecer nossa relação com ela.

Nosso conceito de história está impregnado de culto ao progresso. É comum achar que criticar o progresso é tão absurdo quanto querer voltar no tempo. É impossível voltar no tempo, mas o progresso não acontece com a simples passagem do tempo. Se fosse assim, as culturas mais antigas do mundo deveriam ser as mais “avançadas” em termos tecnológicos. Geralmente ocorre o contrário. E a não ser que você pense que tecnologia não tem nada a ver com aprimoramento constante das técnicas e automação do trabalho, então é meio incoerente dizer que são tecnológicos. Eu entendo isso mais como uma tentativa de fazer um elogio, de relativizar a superioridade técnica. Mas acaba caindo no mesmo tipo de preconceito: por que tudo que funciona é tecnológico? É o mesmo que ocorre quando dizem que são “civilizados”, no sentido de terem o mínimo de organização social ou sofisticação cultural. Percebe como isso é usar os nossos conceitos como padrão para validar o outro? Ter uma “tecnologia avançada” não é o mesmo que ter conhecimento técnico adequado para a reprodução social.

Os teóricos do século XIX estavam completamente convictos do mito do progresso, que está intimamente ligado ao mito hobbesiano. Hobbes propagou a ideia de que o estado natural da humanidade é um estado miserável, onde as pessoas vivem dominadas pelo medo e pela guerra, competindo umas contras as outras por escassos recursos. Hobbes apenas descreveu um mito muito mais antigo, e o usou para legitimar o contrato social e a criação do Estado moderno. Esse mito é uma das crenças mais fundamentais das culturas agrícolas: as pessoas viviam num estado de “anarquia” original, o que era péssimo. Elas precisam ceder uma parte da liberdade natural para criar algo grandioso: um “deus artificial”, um monumento gigantesco, algo maior que a soma das pessoas, com monopólio do uso da força, para colocar ordem na bagunça. Esta ficção autoritária é a origem do mito do progresso tecnológico.

Mas, na realidade, nem tudo pode ser resumido em avançar ou retroceder numa concepção linear de história. Mesmo quando o progresso começa a ser questionado, principalmente após as grandes guerras, a crença de que havia um destino paradisíaco no final do processo permaneceu. Os sinais de que o progresso não estava funcionando foram tradados como “dores do parto”, continue firme que tudo vai se resolver. Esta crença não é nada senão religiosa. Não é racional. Quanto mais se analisa, mais evidências das consequências prejudiciais da corrida desenvolvimentista. Mas estamos tão mergulhados nela que ignoramos as evidências.

A tecnologia é um tabu. Ninguém pode macular sua imagem santa, porque depois da secularização, as esperanças da humanidade foram transferidas da religião para tecnociência. O culto à tecnologia é um fenômeno social, nós não o percebemos porque ele foi normalizado, está em todo lugar. Somos educados assim. O orgulho tecnológico é como um orgulho nacionalista. É uma construção social que não pode ser facilmente desconstruída. Exige confrontação com questões tão grandes que mal podem ser vistas. Só de vislumbrá-las de relance, nós já sentimos um incômodo insuportável.

Então, voltamos à questão inicial: Que tipo de problemas realmente podem ser resolvidos com tecnologia? Ela pode ser refeita assim: Como a tecnologia pode resolver um problema que ela mesma não tenha criado? Se o controle da natureza é um problema em si, e a crença no progresso é falsa, a ideia de que a tecnologia pode resolver um problema “natural” ou “que sempre existiu” se torna questionável. O ser humano não  é realmente capaz de decidir como a natureza deve ser. A autonomia do resto da natureza também precisa ser respeitada. Ela não é propriedade da humanidade, por mais que a cultura dominante defenda essa visão antropocêntrica (o homem como centro do universo).

Devemos rejeitar a crença na supremacia humana e na licença para dominar a natureza. Esta crença estrutura o modo de pensamento tecnológico e científico da nossa sociedade. Nós não somos versões aprimoradas de um neandertal. Não somos um projeto técnico. No mínimo, mínimo mesmo, deveríamos ter o controle sobre nossas técnicas, ao invés de sermos coagidos pelos imperativos do avanço. A tecnociência é uma construção social, baseada nos valores da sociedade de classes, em guerra contra a natureza.

Leituras recomendadas sobre crítica à tecnologia:

ARENDT, Hannah. A condição humana. Forense Universitária, 2007.

BUNGE, Mario. Technology as applied science. In: Contributions to a Philosophy of Technology. Springer, Dordrecht, 1966. p. 19-39.

ELLUL, Jacques. A técnica e o desafio do século. Paz e Terra, 1968.

FEENBERG, Andrew. O que é a filosofia da tecnologia. Andrew Feenberg: racionalização democrática, poder e tecnologia, v. 3, p. 39-51, 2003.

HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência enquanto ideologia. Os pensadores, v. 2, 1983.

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. Scientiæ studia, v. 5, n. 3, p. 375-398, 2007.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Contraponto, 2006.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. 1982.

MUMFORD, Lewis. Technics and civilization. University of Chicago Press, 2010.


Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

5 comentários em “Contra a tecnologia”

  1. Doido, me pareceu bem Nietzschiano em algum ponto, sobre a critica do progressismo e a imagem santa da ciência e tecnologia. Venho aqui lhe questionar então sobre os povos ancestrais, não tinham eles suas tecnologias? Você acredita que existe uma possibilidade sobre retroagir com relação a tecnologia? Como isso aconteceria?
    Acredito também que partir do ponto de vista de resolução de problemas é um direcionamento interessante e inegável na história da santificação da tecnologia, porém não descarto a possibilidade de encarar enquanto ferramenta, não que soluciona, mas que constrói então talvez o perspectiva sobre ela e o que decidimos construir a partir disso seja um pouco menos heróica… Ou não, né. Somos tão egocentricos.

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    1. A referência não é bem Nietzsche mas tem algo a ver. Tem outro que responde melhor essa pergunta (ver a seção “Técnica e tecnologia” do texto Automação e emancipação). Se a gente adota esse conceito mais amplo de tecnologia, como falar de avanço tecnológico? A tecnologia de povos atuais que não usam fogo, por exemplo, é tão avançada quanto a nossa? Se sim, então criticar a sociedade industrial não é “retroagir”, mas apenas outro tipo de avanço. Mas o uso mais comum do termo considera o avanço tecnológico num sentido mais específico, por isso o que chamamos de tecnologia é consequência de um valor cultural, então criticar a tecnologia não é querer voltar no tempo, mas querer outros valores. E isso poderia acontecer do mesmo modo que a superação do capitalismo.

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  2. Muito legal esse texto, Janos, não tinha lido ainda. Deixe-me ver se entendi uma coisa… você localiza a ‘tecnologia’ então, como algo distinto da ‘técnica’, a partir da racionalidade instrumental e da expansão do modo de vida patriarcal?
    Abraços, henrique

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    1. Obrigado pelo comentário. Sim, eu faço a distinção entre técnica e tecnologia, embora eu a faça de um modo um pouco diferente do que o normal. Normalmente você vai encontrar textos didáticos ensinando que a tecnologia é algo como a “ciência da técnica”, ou seja, quando o pensamento científico passa a reger a produção técnica ao invés de outras formas de conhecimento (como arte, filosofia, religião, tradição…). Essa ideia porém é criticada de diferentes modos por cada crítico da tecnologia. Para Ellul, por exemplo, é o pensamento técnico que domina sobre a sociedade, incluindo sobre o pensamento científico. O que chamamos de revolução científica para ele é a aplicação do imperativo técnico sobre a ciência (enquanto produção de conhecimento). Para ele, o problema não é a técnica em si, mas a prevalência da técnica sobre as demais esferas sociais, assim como outros autores criticam a prevalência do pensamento econômico sobre as demais esferas sociais. Cada autor tem uma crítica diferente. Para uns é preciso negar a tecnologia e o pensamento técnico por completo, para outros é possível escolher um novo caminho tecnológico ou uma organização mais ética das técnicas, e para outros a tecnologia depende de exploração e deve ser superada num retorno às técnicas que permitem autonomia, usando tecnologias subversivas como meio.

      É difícil demarcar um ponto exato da ruptura, mas eu acho que expliquei melhor essa distinção num outro texto, Automação e emancipação (https://contrafatual.com/2020/02/02/automacao-e-emancipacao/), na seção Técnica e tecnologia, e um resumo seria: “O uso de ferramentas simples foi suficiente para a vida humana por centenas de milhares de anos e praticamente não mudou por todo esse tempo. Diferente do uso de ferramentas, a tecnologia pressupõe “aprimoramento constante” dos dispositivos técnicos. Ferramentas simples não são exatamente “tecnologia” porque elas estão misturadas com a atividade humana”. Aqui eu fiz uma relação sutil com a diferença entre trabalho morto e trabalho vivo em Marx, ou ainda, a diferença entre trabalho como atividade que nos torna humanos, e trabalho como atividade alienada. As técnicas nos tornam humanos, a tecnologia nos torna civilizados. Então é possível pensar em basicamente dois tipos de crítica à tecnologia dentro da crítica à civilização: A primeira pensa que a superação ou destruição da civilização implica no fim da tecnologia, mesmo que ela aconteça por meios tecnológicos ou pela tomada desses meios de produção. A segunda pensa que o fim da civilização decorre da insustentabilidade da tecnologia e seu imperativo de controle expansionista, logo quanto menos dependentes de tecnologia, mais preparadas estaremos para o iminente fim da civilização. Dentro da crítica à civilização é possível ainda identificar outra posição que não questiona necessariamente a tecnologia, mas apenas seu uso civilizatório. Com o fim da civilização, as pessoas estariam livres para criar qualquer tecnologia que quiserem, contanto que isso não implique em uma organização civilizatória dos meios de produção ou sistemas de opressão.

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