Resenha de Dragon Age 1 (2009), Dragon Age 2 (2011) e Dragon Age: Inquisition (2014). Contém spoilers de Dragon Age e Mass Effect.
A trilogia Dragon Age (2009-2014) é uma série de RPG de fantasia medieval com temas maduros que em muitos aspectos trata do mesmo que Mass Effect: o antagonismo entre a vida orgânica e a vida inorgânica. Em Dragon Age a vida inorgânica não é representada pela tecnologia e pelas inteligências artificiais, mas sim pela magia e pelos espíritos. O antagonismo entre essas duas realidades começa de modo sutil, mas se torna mais óbvio no episódio final da série, Dragon Age: Inquisition.
Dragon Age começa com um mito semelhante ao da Torre de Babel: magos muito poderosos, os magisters, sacerdotes dos deuses antigos, tentaram invadir a Cidade Dourada, morada do Criador, onde mortais não poderiam pisar, o que corrompeu a cidade e a eles, fazendo com que o Criador dê as costas para os mortais. O jogo fala bastante sobre religião, apresentando um mundo dominado por uma doutrina parecida com o cristianismo, onde a figura principal é Andraste, a noiva do Criador. Livros e diálogos indicam vários paralelos entre o cristianismo e o culto a Andraste. Por exemplo, há uma discussão teológica sobre o caráter histórico de Andraste num livro chamado “A busca pela verdadeira profeta”, que parece ser inspirado no livro “A busca pelo Jesus histórico”, de Albert Schweitzer (1906).
É notável também que a maioria dos personagens jogáveis professam a fé andrastiana, especialmente em Dragon Age: Inquisition. Ao longo de toda série há diversos diálogos muito bem construídos sobre religião, em que os personagens criticam ou defendem a fé de modo bastante razoável, usando os mesmos argumentos do debate atual sobre religião.
O centro do argumento de Dragon Age (DA), presente também em Mass Effect (ME), é que os “deuses” são apenas pessoas que elevaram demais seu poder. O ensinamento básico da igreja andrastiana é: “A magia deve servir o homem”, o que indica limitações éticas no uso da magia, e logo no acúmulo de poder. Diferentes interpretações desse princípio levaram a um controle opressivo sobre os magos na maioria dos reinos, enquanto no reino de Tevinter os magos são a elite governante. A magia de DA e a tecnologia alienígena de ME são praticamente a mesma coisa.
Há três antagonistas principais durante a série. O primeiro são os darkspawn. Segundo a religião dominante, darkspawn são criaturas contaminadas pela corrupção dos magisters que tentaram entrar na Cidade Dourada. Os anões (que cultuam apenas paragons, exemplos de excelência eleitos por voto) e os cidadãos de Tevinter acreditam por outro lado que os darkspawn sempre existiram. Eles são muito semelhantes aos “husks” de Mass Effect, ou seja, são como zumbis, seres contaminados por uma infecção que os transforma em sanguinários sem vontade própria.
O segundo antagonista é o lyrium vermelho. Lyrium é na verdade uma estrutura orgânica-mineral, ou um mineral vivo, muito usada por magos para aumentar seus poderes. O lyrium vermelho seria o lyrium contaminado pela corrupção dos darkspawn, o que faz com que ele adquira poderes de controle da mente e infecção semelhante à dos darkspawn.
O terceiro antagonista é Corypheus, o próprio corruptor, o magister que foi o responsável pela invasão da Cidade Dourada. A motivação de Corypheus é simplesmente se tornar um deus, alcançar a verdadeira imortalidade. Para isso ele precisa alcançar novamente a Cidade Dourada.
Corypheus diz que quando chegou à Cidade Dourada pela primeira vez, ela já estava corrompida e o Criador não estava lá. Para Corypheus, ou o criador abandonou a criação, ou jamais existiu. Corypheus pretende se tornar poderoso o suficiente para ser o verdadeiro deus desse mundo.
Outros inimigos importantes são os demônios vindos do “fade”, a realidade metafísica do mundo, separada da realidade física pelo “veil” (véu), que as pessoas visitam quando sonham. O fade é uma realidade paralela habitada por espíritos bons e maus, que coexiste com a realidade mundana, onde as memórias e emoções das pessoas são visíveis. Os efeitos mágicos são provenientes dessa realidade metafísica manifestando-se na realidade física. A Cidade Dourada seria uma ilha flutuando no fade. Entrar fisicamente no fade é possível usando magia poderosa, embora seja pecado pela religião andrastiana.
Mas o que são os demônios? Segundo Solas, eles são apenas espíritos impedidos de realizar sua função. Ao longo da série temos personagens que carregam espíritos dentro de si, espíritos que animam corpos, e Cole, que é um espírito que assumiu forma física e tem a opção de se tornar cada vez mais humano. O correlato de Cole em ME é EDI, uma inteligência artificial que também tem a opção de se tornar cada vez mais humana. Talvez os espíritos sejam análogos às inteligências artificiais, criações dos “deuses”? Se isso estiver correto, o correlato do Fade em ME é a realidade virtual dentro da mente dos Geth, no qual o personagem principal também é um dos poucos a entrar, e onde também se pode ver “imagens do passado”.
No mundo de DA os elfos são considerados uma raça inferior, são escravizados, vivem em subúrbios, e perderam contato com sua cultura, que é muito mais antiga que a dos humanos. A maioria dos elfos não acredita em Andraste e sim em deuses élficos antigos, que a religião Andrastiana considera como falsos.
O final do jogo (a DLC Trespassers) dá a entender que todo o conhecimento que acumulamos sobre Andraste ao longo do jogo estava errado. A conversa com Fen’Harel, uma deidade élfica, muda toda interpretação sobre a religião andrastiana e sobre a élfica também. Fen’Harel significa “Lobo Terrível” em élfico, é considerado uma entidade maligna, que destruiu a sociedade élfica original e transformou os elfos em mortais.
Segundo Fen’Harel, a civilização élfica era realmente muito poderosa, e os magos mais poderosos eram considerados deuses, tendo conquistado o poder da verdadeira imortalidade . Nesta época a realidade mundana não estava separada da realidade mágica, por isso a magia era muito mais poderosa e os elfos não morriam de morte natural, embora pudessem ser mortos de outros modos. Os magos que queriam o segredo da imortalidade mataram Mythal, considerada deusa protetora dos elfos, o que enfureceu um dos deuses, chamado Solas.
Para evitar algo pior, Solas criou o Fade, separou a realidade física da metafísica para isolar os “deuses” dos “mortais”, o que por sua vez condenou os elfos à morte e tirou boa parte de seus poderes. Foi por isso chamado de Fen’Harel, o “Lobo Terrível” e considerado como uma ameaça. Depois de ver tudo que os elfos estavam sofrendo eras depois dessa separação, Fen’Harel decidiu desfazer o Fade, ou seja, reunir a criação no seu estado original, o que recriaria o império dos elfos, mas destruiria o mundo em seu estado atual.
Como em ME, a grande questão se dá pela influência de uma força muito superior, que ameaça assimilar ou destruir toda a vida. Os deuses de DA são como os Reapers de ME. Eles criam ciclos de destruição e reconstrução do mundo “para a preservação das espécies”. A verdadeira ameaça é uma limitação “natural” da vida orgânica. Pois em DA a vida tende ao controle mais avançado da magia, e essa magia coloca a vida em contato com o elemento corruptor da vida. Há algo de semelhante entre os Geth de ME e os Darkspawn de DA. Ambos estão sendo usados por “deuses antigos” para conquistar a vida orgânica. A entrada na Cidade Dourada seria um erro análogo à criação dos Geths: são ambos resultado da arrogância, seja na manipulação da magia ou da tecnologia. Esse erro acaba por determinar o fim inevitável da vida.
Em Dragon Age, a “blood magic” é um tipo uma magia muito mais poderosa que a normal, mas que exige sacrifício de sangue para funcionar, e que é relativamente aceita em Tevinter. Haveria um correlato da blood magic em Mass Effect? Considerando que alguns magos fazem inclusive mudança de sexo usando blood magic, eu diria que o correlato é a biotecnologia. Lembrando que foi exatamente com blood magic que os magisters invadiram a Cidade Dourada, e a biotecnologia, a fusão entre orgânico e máquina, é a principal característica dos vilões de ME. As vítimas de experimentos de blood magic lembram bastante as vítimas de biotecnologia em ME. Nos dois casos pessoas com um tipo de autismo são usadas como armas: Sandal Feddic em DA e David Archer em ME.
Há também os Golens, que foram criados com sacrifício de anões e se assemelham a robôs. Se os espíritos do Fade são seres artificiais, talvez os próprios deuses antigos sejam seres artificiais muito antigos, criados por uma raça muito mais poderosa, como os Reapers. Seu poder de dominação da mente certamente se parece com a doutrinação dos Reapers. O conflito entre deuses e mortais então se reflete como o antagonismo entre orgânico e inorgânico, e parece tão insuperável quanto em ME, sendo que as opções também parecem as mesmas: assimilação ou destruição.