Quando nos tornamos humanos?

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Um ensaio sobre a origem do ser humano.

Devemos considerar a humanidade como um produto da evolução? Esta questão gerou muita discussão. Desde a teoria da evolução, temos uma explicação científica para a origem das espécies, inclusive da espécie humana. Antes dela, o ser humano era considerado o ápice da criação. A ideia reconfortante de que o próprio criador do universo ama os seres humanos acima de qualquer outra espécie justificou que exercêssemos domínio sobre o resto da vida animal e vegetal desse planeta, tratando-os como seres auxiliares à nossa própria existência. Segundo certa interpretação teológica, Deus nos deu a posição de senhores da terra. Mas para a evolução somos apenas mais um habitante deste planeta. Cada espécie é um produto único e igualmente precioso da evolução.

De acordo com a teoria da evolução, a humanidade não é indispensável à criação. O mundo passou a maior parte de sua história sem algo humano. O humano é algo relativamente recente. Mais do que isso, o ser humano é o resultado de um processo não intencional. Significa que a humanidade não é o objetivo da evolução. Ela se origina de outras espécies, e poderá deixar de existir sem afetar a evolução da vida.

Neste sentido, se torna essencial à compreensão do que é o humano considerar não apenas seu funcionamento dentro de um sistema fechado, mas também qual a sua história biológica. Quando o ser humano passa a existir como tal? É possível responder a isso com precisão? O que podemos considerar como “humano”? Torna-se indispensável que avaliemos o conceito de humano, e que saibamos o que torna este ser único, para que possamos saber desde quando existe um ser assim.

A humanidade deve ser considerada como parte de um processo. Como tal, ela está em continuidade com a natureza, e não pode ser analisada em separado ou em oposição a ela. A concepção de humano que foi fortalecida durante a idade média foi a de que havia uma escala natural que partia dos seres “menos humanos” e prosseguia para os “mais humanos” até chegar ao ser humano como ele é.

Devido ao processo de mutação e seleção natural, não existe um destino biológico para a vida na Terra. O que temos hoje é resultado de inúmeras combinações. O que existem são possibilidades. O humano seria uma dessas possibilidades.

Segundo Dobzhansky, esta concepção não-determinista da evolução é extremamente otimista, uma vez que abre a história para a possibilidade de um futuro melhor. Por outro lado, essa ideia pode ser deturpada por grupos que defendem a superioridade de pessoas com certos genes. Essa ideia é equivocada porque qualquer interferência humana para beneficiar a permanência de um ou outro gene implica em seleção artificial, e não propriamente em evolução biológica.

Na seleção natural, os genes não são individualmente selecionados. Eles são selecionados porque fazem parte de uma combinação que forma uma característica benéfica. Grande parte dos nossos genes não tem expressão e não formam característica alguma. Mas esses genes continuam sofrendo mutação, e eventualmente podem se combinar para expressar uma característica benéfica. Se considerarmos os genes sem expressão, não podemos mais ver a evolução como uma corrente de elos igualmente conectados, porque os pontos a que temos acesso são apenas as expressões dos genes, não os genes em si.

Duas ou mais características podem se expressar num período relativamente curto de tempo, o que dificultaria muito encontrar os “elos perdidos”, ou seja, os indivíduos que ficam no meio-termo entre nós e nossos antepassados não-humanos. A evolução de uma espécie não é formada por uma simples mudança contínua, mas apresenta períodos de estabilidade e instabilidade, de maneira semelhante ao que ocorre com a temperatura da água na mudança de estados. Essa teoria é chamada de modificação pontuada.

A ideia de uma “escala evolucionária” que se inicia no macaco e termina em nós é na verdade uma acepção errada da evolução humana. Todas as espécies são igualmente evoluídas. O que nos torna únicos enquanto espécie não é a soma dos genes que carregamos, mas a relação deles entre si e com o meio. Não deixamos de ser primatas para nos tornar humanos, humanos ainda guardam mais proximidade biológica com os Bonobos do que os Bonobos com outros primatas.

De forma parecida, não podemos julgar com linearidade as diferentes culturas humanas. Temos hoje algumas teorias sociais que se baseiam em apreensões simplificadas, incompletas e errôneas da teoria da evolução. O darwinismo social, por exemplo. O termo “sobrevivência do mais apto” é um exemplo disso. O termo foi apresentado para tentar resumir a teoria, mas se tornou uma fonte de grandes deturpações e interpretações errôneas.

Alguns autores acreditam que o mundo natural é uma arena de competição acirrada e violenta, onde é preciso eliminar seus inimigos implacavelmente para sobreviver. Isso representa uma visão de mundo. Uma dessas deturpações foi criada por um parente e adepto de Darwin, Francis Galton. Trata-se da eugenia, a ideia de que a superação humana pode ser feita conscientemente, favorecendo a procriação de “homens superiores” e desfavorecendo a de “homens inferiores”:

“Durante o século XIX e o início do século XX, poderosas nações empenharam-se em constituir seus impérios coloniais. Enquanto os canhões e metralhadoras destruíam ou escravizavam os selvagens armados de arcos e flechas, era confortador pensar que se estava assistindo simplesmente a substituição de raças biologicamente inferiores por outras superiores” (DOBZHANSKY, 2010).

A eugenia ignora que as pessoas mais adaptadas a uma cultura não são necessariamente as mais adaptadas ao meio. O que o meio exige de nós não pode ser medido por meio de uma luta constante pela sobrevivência. A sobrevivência de uma população sobre outras não significa uma melhor adaptação biológica desta, uma vez que mesmo as piores adaptações podem parecer boas em contextos restritos. Seres domesticados, vivendo em confinamento, podem ter sua sobrevivência aumentada simplesmente por agradar o senso estético humano, por exemplo, comprometendo outras funções biológicas relevantes. A auto-seleção humana implica no mesmo tipo de equívoco.

Esta visão determinista acabou servindo de justificação científica para a desigualdade, a conquista e a exploração. Justificava-se a pirâmide de riqueza com a “ordem natural das coisas”: os superiores no topo e os inferiores na base. Mas se a “lei da natureza” fosse realmente da competição eliminatória, então a evolução não promoveria o aumento da diversidade, e sim o afunilamento em direção a um ser perfeito.

Isso seria claramente impossível, uma vez que a vida surge de uma unidade mínima, e não de uma diversidade de seres. Ela prossegue criando diversidade porque os seres se tornam interdependentes, ou seja, dependem muito mais da sobrevivência de seus parceiros que da morte de seus rivais. Mesmo as relações predatórias fazem parte de um contexto mais amplo de simbiose. Predador e presa não são inimigos. Qualquer interferência em um dos lados pode prejudicar ambos. Os ecossistemas têm um equilíbrio que só pode ser gerado por seus próprios elementos.

Seres humanos podem compartilhar experiências complexas por meio da comunicação. A desvantagem é que isso pode ser usado contra ele mesmo. Sua capacidade permite difundir rapidamente comportamentos benéficos ou maléficos, além de permitir a alienação: quando se decide priorizar o universo simbólico em detrimento da realidade que originou o símbolo.

Como a evolução humana não tem relação alguma com o progresso, não se pode dizer que haja estágios necessários para o cumprimento do destino humano. O que vamos nos tornar não pode ser determinado somente por nossas escolhas conscientes, mas também não pode ser determinado somente pelo passado ou por fatores exógenos. De maneira alguma podemos prever a seleção natural. Isso depende de uma complexa a rede de relações.

Não se pode dizer com certeza a quanto tempo existe o que podemos considerar como seres humanos. Tudo que se sabe é que a espécie humana sofreu uma série de adaptações e mutações. Vários tipos de hominídeos conviveram entre si, com períodos de duração muito variados. Não se pode definir com clareza em que estágio da história evolutiva dos hominídeos surge a humanidade como tal, porque essa história não pode ser dividida em estágios bem definidos. Não há estágios sucessivos, as espécies se entrecruzam no tempo e também influenciam umas às outras. Nossa espécie existe há cerca de um milhão de anos, o que é tanto um tempo curto de surgimento quanto um tempo curto de existência total para a média do tempo de duração de outros hominídeos.

Se mudarmos nosso conceito do que é essencialmente humano, a história da evolução humana precisará ser reinterpretada, e a idade relativa da humanidade poderá mudar. Se considerarmos como central a capacidade de criar cultura, fica ainda mais difícil descobrir a idade precisa da humanidade, uma vez que essa característica não é claramente visível nos vestígios arqueológicos.

Como saber a primeira vez que as pessoas se uniram em grupos sociais? Só podemos rastrear grupos grandes e que foram bem sucedidos por um longo tempo. É provável que os primeiros grupos tenham falhado até que se atingisse um grau de sucesso que permitisse deixar vestígios visíveis. Em resumo, a pergunta “quando nos tornamos humanos?” fica sem resposta exata, mas nos leva a pensar sobre nossa singularidade, nosso conceito de ser humano e o papel que temos nos dado até então.

Referências:

DUNN, L. C. (Leslie Clarence); DOBZHANSKY, Theodosius. Herança, raça e sociedadeSão Paulo: Pioneira, 1962.

FOLEY, Robert. Os Humanos Antes da Humanidade: uma perspectiva evolucionista. São Paulo: Ed.UNESP, 2001.

GOULD, Stephen Jay. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.


Autor: Janos Biro

Filosofista, anarquista, bicicleteiro, tradutor, zineiro e joguista.

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