
Seis contos curtos escritos por volta de 2002. Esses contos criam cenários surreais, onde conceitos de crítica social são levados até as últimas consequências.
O campo de concentração
Era uma vez um grupo de pessoas que foi colocado num campo de concentração por um tempo indefinido. Essas pessoas ficaram presas por tantas gerações que tinham até mesmo se esquecido do motivo pelo qual foram colocadas lá. Sem acesso ao seu passado, essas pessoas começam a achar que viviam no campo de concentração desde sempre, e que nenhum outro tipo de vida é possível.
Apesar dos sofrimentos de um campo de concentração, elas se acostumaram tanto que começaram a tratar as cercas como proteções necessárias e benéficas. Começaram a tratar as restrições e proibições do campo de concentração como limites morais bons e justos. Os guardas também se esqueceram de como isso começou, e estes passaram a ser vistos não como inimigos, mas como membros de status elevados, cuja função é essencial para a organização e o funcionamento adequado da sociedade. Quando os guardas morriam, eram substituídos por outros membros da sociedade.
Alguém uma vez perguntou se a vida humana foi sempre assim; se era possível viver fora do campo de concentração; se era possível viver sem cercas e guardas. O que as pessoas responderam foi: “É claro que não. Seria um caos se vivêssemos fora das cercas e sem os guardas para nos organizar. Lá fora é perigoso. Estamos bem melhor aqui”.
Então alguém encontrou um diário muito antigo, que estava enterrado bem fundo na terra. No início, as pessoas acharam que o diário era falso, e até hoje muitas delas não acreditam nele. O diário descrevia a vida de alguém que viveu antes do campo de concentração. Havia liberdade, apesar de não ser uma vida perfeita, mas pelo menos as pessoas não viviam confinadas em pequenos espaços, obrigadas a fazer atividades pesadas, e todos podiam escrever poesia ou andar de bicicleta, não apenas os guardas. Mas as pessoas disseram: “Essas pessoas eram primitivas e atrasadas, não queremos voltar a viver como elas! Naquele tempo, antes dos guardas rasparem nosso cabelo, nós vivíamos cheios de parasitas asquerosos chamados ‘piolhos’. Ninguém quer ter piolhos, quer? É bem melhor com o cabelo raspado, e não suportaríamos ter cabelos novamente, depois de tanto tempo sem. Nós abandonamos essa vida atrasada, somos avançados agora, não podemos voltar atrás”.
Mas algumas pessoas disseram: “Se nós vivemos em liberdade um dia, podemos viver novamente. Não precisamos das cercas e dos guardas, podemos viver de outra maneira”. E o que as pessoas responderam foi: “Vocês estão loucos? Como esperam sobreviver sem cumprir as regras do campo? Essas regras foram criadas para nosso bem. Imagine se parássemos de cavar as covas coletivas? Onde colocaríamos os cadáveres das execuções? E se parássemos com as execuções, como manteríamos as pessoas na linha? Vocês são preguiçosos e querem fazer bagunça, essa proposta é completamente absurda”.
Muito bem, essa historinha foi ótima, mas a hora de contar histórias acabou. Agora volte para sua cela.
A cidade da Máquina
Neste lugar, há muito tempo atrás, uma máquina foi construída para suprir o povo de tudo que este precisava para viver. Com essa invenção revolucionária, as pessoas foram parando de trabalhar. Tudo que tinham que fazer era manter a máquina trabalhando por elas. Assim, o número de pessoas foi aumentando extraordinariamente, já que agora era a máquina e não a natureza que determinava o limite de recursos. A máquina foi sendo constantemente aprimorada e foi crescendo junto com a população. Há algum tempo atrás era do tamanho de um prédio, mas hoje já se encontra cobrindo todo o subterrâneo da cidade e várias partes mais além.
Era a máquina que provia educação, saúde, alimentação, moradia e tudo o mais para as pessoas, mas esses bens não eram distribuídos automaticamente. Quando havia menos pessoas e a máquina era menor, era fácil pegar o que se precisava e apenas em quantidade necessária. Porém, como a máquina cresceu muito, foi preciso que alguns trabalhassem na distribuição. E também, como os bens eram produzidos em quantidades absurdamente grandes, foi preciso que alguns outros trabalhassem na segurança do estoque, para que ninguém pegasse mais do que o necessário. A enorme quantidade num lugar só faz parecer que não vai faltar se você pegar um pouco mais do que o suficiente. As pessoas que trabalhavam na regulação do tipo de bens que a máquina devia produzir também se deixavam levar por essa ilusão, e iam usando as capacidades da máquina para produzir coisas que não são necessárias para viver. Além disso, havia uma grande discussão sobre qual seria a quantidade ideal de bens que uma pessoa deveria consumir. Alguns preferiam umas coisas e detestavam outras.
Era preciso também observar aqueles que ficavam longe da máquina, e que às vezes ficavam sem os bens. Como havia muita gente, isso era difícil de fazer. Foi preciso, então, criar um grande sistema que garantiria uma justa distribuição de bens, priorizando aqueles que ajudam a manter a máquina. Havia muita gente que resolvia trabalhar por si mesma. Mas trabalhar por si mesmo é uma coisa difícil de fazer, pois é preciso grande cooperação para fazer coisas grandes. Se as pessoas insatisfeitas começassem a se juntar fora da cidade, logo não haveria pessoas suficientes na cidade para justificar o aumento da máquina, e os controladores teriam que parar de produzir bens desnecessários que eles já não suportavam viver sem. Por isso, foi criado um sistema que prendesse tais pessoas e tirasse seus direitos sem que elas saíssem da cidade.
Era preciso, também, que as pessoas gostassem mais dos bens produzidos pela máquina do que dos bens produzidos por elas mesmas. Era preciso manter as pessoas recebendo apenas a educação da máquina, apenas a medicina da máquina, apenas as casas construídas pela máquina, a comida e o resto dos bens que a máquina produzia. Se as pessoas deixassem de ser dependentes dos bens que a máquina provinha, elas poderiam acabar deixando de expandir a máquina, e isso preocupava aqueles que controlam a máquina, pois eles têm acesso não só a tudo que é necessário para viver, mas a muito mais coisas que seriam impossíveis sem a expansão constante da máquina. As pessoas responsáveis pelo controle da máquina criaram um sistema para que todas as pessoas dependessem da máquina tanto quanto eles, aumentando ainda mais a produção daquilo que não se precisa para viver, mas que gera dependência, se transformando numa nova necessidade. E assim, esses bens desnecessários foram produzidos e distribuídos amplamente, até para aqueles que não tinham tudo que necessitavam para viver. Uma grande pesquisa foi feita para descobrir algo que fosse fácil de produzir e gerasse o máximo de dependência. Muitas coisas desse tipo foram produzidas.
A máquina, porém, tinha uma série de defeitos que foram surgindo com as sucessivas expansões. Defeitos considerados simples, às vezes só uma falta de ajustes. Mas com o passar do tempo esses pequenos defeitos foram se acumulando, de maneira que chegou a um ponto em que a máquina era um aglomerado infindável de problemas. Houve quem estudasse profundamente a máquina e procurasse nela os principais defeitos, até que um dia alguém descobriu um defeito tão fundamental que levaria inevitavelmente ao fim da máquina. Essa pessoa decifrou a máquina como ninguém, e o que ela descobriu se espalhou rapidamente. Logo as pessoas começaram a aceitar o fato de que em breve não haveria mais máquina, então se concentraram em pensar como seria o mundo depois da máquina. Mas a máquina não acabou.
O que aconteceu foi que os controladores da máquina contornaram o problema. O defeito fundamental nunca iria ser reparado, mas com uma adaptação das pessoas e um contínuo desenvolvimento da máquina, ele nunca chegaria realmente a destruir totalmente a máquina. Sua destruição seria contínua, em ciclos de crises e restaurações, como um balão cuja borracha vai sendo adicionada enquanto vai sendo soprado cada vez mais. Isto manteve a máquina até hoje, mas o seu potencial de destruição foi sendo aumentado, de forma que o dia em que o defeito não puder mais ser encoberto, a explosão talvez destrua não só a cidade inteira, mas o mundo inteiro. E isto ocorrerá quando não houver mais peças para aumentar a máquina.
Por que eles não simplesmente param de usar a máquina, já que as desvantagens são tão óbvias e a catástrofe é iminente? Porque eles acreditam que usar a máquina não é uma escolha, é o DESTINO. Não há nada que os convença a parar agora, e nada que possa salvá-los também, exceto desistir da máquina. Porém a máquina é vista como o projeto mais importante e sagrado da humanidade, desistir dela está fora de questão. A máquina falhou no que quer que fosse seu objetivo, a não ser que ela tenha sido construída para realmente destruir tudo. Infelizmente, não há nada que eu possa fazer para convencê-los disso, portanto segui em frente, até a próxima cidade.
O código diário
Certa vez alguém fez uma bomba e a instalou secretamente nas fundações de um prédio. A bomba estava programada para explodir ao meio-dia em ponto, a não ser que um código fosse digitado num aparelho que foi instalado no porão de sua casa. Nesse caso a bomba explodiria ao meio-dia do outro dia. Todo o dia essa pessoa digitava o código para adiar a explosão da bomba. Ela fez muitas bombas idênticas a essa e começou a espalhá-las por todos os prédios, bancos, hospitais, escolas, igrejas, postos de gasolina, lojas e todo tipo de construção em que pudesse se infiltrar. Dia após dia, ano após ano, esta pessoa se dedicou a instalar secretamente essas bombas, que explodiriam todas juntas caso ela não digitasse o código diariamente.
Ao perceber a grandiosidade do seu trabalho, encontrou alguém para continuar sua obra. Esta pessoa encontrou mais pessoas, e logo elas fundaram uma sociedade secreta dedicada exclusivamente a instalar bombas nas fundações de todo tipo de construção. Expandiram tanto que começaram a espalhar também em algumas mansões, condomínios, áreas de recreação, bares, restaurantes e até nos bombeiros e nas delegacias de polícia. Com mais organização e tecnologia, fizeram bombas discretas o suficiente para serem instaladas em casas comuns, mesmo em casas pequenas do interior, e mesmo barracos e casas improvisadas.
Também havia bombas potentes o suficiente para explodir centros culturais, estádios, bosques, indústrias, estúdios de televisão, museus, aeroportos, universidades e parques de diversão. Comemoraram muito quando instalaram nos centros administrativos, no congresso, na câmara dos deputados, nos tribunais de justiça e também nas prisões. Muitos anos depois, quando os membros da sociedade secreta já eram pessoas influentes no governo, uma discussão os dividiu. Uma parte pretendia continuar espalhando as bombas eternamente, pois acreditavam que o objetivo não era destruir, mas manter tudo sob uma contínua ameaça de destruição, para que a sociedade funcione corretamente. A outra parte acreditava que as bombas precisavam ser detonadas em algum momento, para completar a obra, ou todo trabalho seria inútil. Mas eles não entravam em acordo sobre quando detonar as bombas. Alguns diziam que deveria ser ao acaso, ou no dia em que todos eles se esquecerem de digitar o código.
Mas outros diziam que isso nunca iria acontecer. Que deveriam detonar quando efetivamente tivessem plantado uma bomba em cada espaço, mesmo embaixo de viadutos, em torres antigas e em estações de abastecimento de água. Porém isso parecia impossível, uma vez que havia muito mais pessoas construindo essas coisas do que membros na sociedade secreta. Seria impossível explodir tudo, então alguns achavam que explodir apenas uma parte era suficiente e o resto cairia junto. Mas outros diriam que se fosse assim, então já deveriam ter detonado as bombas antes, pois se as cidades crescem mais rápido do que se pode acompanhar, a espera diminuiria a efetividade das explosões.
Essas discussões continuaram sem solução, os membros começaram a estudar várias possibilidades, mas nenhuma satisfatória. Havia os casuístas, que acreditavam no dia do “Ops, esqueci. BOOOM”. Havia os centralistas, que acreditavam que os alvos deveriam ser centralizados em estruturas mais importantes, e quando isso estivesse completo as bombas deveriam ser detonadas. Mas os mais principais eram os finalistas, que acreditavam que a sociedade secreta deveria apenas continuar o que tem sido feito, e não se preocupar em detonar as bombas.
De fato a detonação seria apenas uma simbologia, já que o verdadeiro trabalho era instalar as bombas e aumentar o raio de ação cada vez mais. E ninguém ficaria vivo para ver o resultado dessa obra de arte, já que, como descobriram alguns membros mais novos da sociedade secreta, a primeira bomba feita por quem começou tudo isso estava instalada secretamente na sua própria casa, logo abaixo do porão onde ficava o aparelho que poderia detonar todas as bombas caso o código não fosse digitado todo dia. Em respeito a isso, os membros da sociedade secreta também instalaram bombas em suas próprias casas. Finalmente, os finalistas tomaram controle da sociedade secreta, e aos poucos começaram seu plano. Com sua influência, eles começaram a mudar as ideias das pessoas sobre as bombas. A mídia e a igreja foram fundamentais para isso. Aos poucos, através de gerações, eles fizeram as pessoas acreditarem que bombas não eram ruins, mas sim necessárias, e que cada um deveria ter uma instalada em casa. Com o tempo, eles conseguiram introduzir uma matéria sobre detonação e construção de artefatos explosivos no currículo do ensino médio. Em alguns séculos, todas as pessoas, com raras exceções, estavam trabalhando para espalhar bombas em cada centímetro do planeta.
Espalhar as bombas automáticas, chamadas comumente de “botes” (porque você as bota e pronto) se tornou não apenas o motor da economia, mas uma virtude moral. As igrejas ensinavam que toda a longa tradição religiosa do mundo se tratava de colocar botes com disciplina, tomando cuidado para não exagerar, para não explodi-las sem querer e assim por diante. A educação estava toda voltada à produção de botes, a economia como um todo se tornou dependente da indústria de bombas. Todas as cidades do mundo comemoravam, todo ano, o dia mundial dos botes. Nesse dia elas competiam para ver quem fazia a bomba maior, e a abraçavam cantando hinos às bombas. Era a maior celebração do ano. As cidades com mais botes eram as mais prósperas. As pessoas com mais botes eram as mais famosas.
Algumas pessoas protestavam, e tentavam argumentar sobre porque as bombas eram prejudiciais. Alguns diziam que eram prejudiciais porque simplesmente não funcionavam, não iriam explodir nunca. Outros diziam que eram prejudiciais porque explodiriam demais, apenas algumas bombas bastariam para destruir tudo que precisava ser destruído. Outras argumentavam que as bombas eram ruins porque eram construídas de forma errada, e teriam efeitos diversos das funções para as quais eram construídas. Poderiam detonar sem querer, e destruir uma fábrica de bombas, por exemplo. Ou destruir o centro de detonação, onde até hoje o trabalho mais importante do mundo era feito pelos líderes mundiais: digitar o código. Outros reclamavam que as bombas não eram divididas igualmente entre todos, alguns tinham bombas demais, e outros tinham poucas, e isso causava muitos problemas. Outros falavam que a produção de bombas gerava resíduos tóxicos, e lutavam pela produção de bombas mais ecológicas. A mídia lançou campanhas que diziam: “As bombas somos nós.” Ou “Quem digita o código somos todos nós”. Medidas equitativas mantiveram a população mais ou menos controlada a respeito da desigualdade social entre produtores, instaladores e administradores das bombas.
Toda essa discussão continuou por séculos e séculos, algumas foram mais bem sucedidas que outras. Porém havia uma opinião que raramente era discutida, e mesmo quando entrava em discussão era rapidamente descartada, ignorada ou ridicularizada. Era a opinião de que as bombas eram ruins por si sós. Todos que ouviam alguém dizer isso reagiam negativamente: “Essa é uma ideia radical demais, não faz sentido. Você quer jogar tudo fora, a parte boa junto com a ruim, pois é evidente que há coisas boas também. Você não está propondo nada prático, essa ideia é meramente utópica. Nós dependemos da construção de bombas para viver, ou você acha que você teria seu modo de vida sem isso? É pura hipocrisia, você é apenas um revoltado sem causa”, e assim por diante.
Alguns religiosos até aceitavam a ideia de que as bombas eram ruins, mas não por serem bombas, e sim porque destroem apenas a matéria. Diziam: “Nossas bombas materiais são uma falsa solução, porque com o tempo tudo será construído de novo. As verdadeiras bombas são espirituais, destroem a essência da existência”.
De forma geral, os antibombas eram vistos como a escória da humanidade. Ainda que muitos tivessem afinidade com suas ideias, ninguém realmente pensava em deixar de construir bombas. Continuavam a construí-las e espalhá-las com entusiasmo, reclamando apenas do exagero ou do excesso de trabalho que algumas bombas davam.
Alguns antibombas planejavam um ataque ao centro de detonação, onde era digitado o código, mas esse era o lugar mais bem protegido do mundo. Além disso, provavelmente havia outros centros de detonação prontos para um eventual acidente. Mesmo que um ataque coordenado acontecesse em todos os pontos do mundo, não adiantaria nada, pois a polícia pró-bombas era muito bem equipada. Além disso, outros ainda diziam que era completamente inútil detonar as bombas, se é que elas explodiriam mesmo, pois isso apenas mataria todo mundo e completaria a profecia apocalíptica dos casuístas. Os antibombas antidetonantes diziam que deveríamos viver sem construir bombas, mas eles eram chamados de românticos e sonhadores.
Um grupo chamado esquadrão antibombas começou um plano ousado de desarmar as bombas, mas era impossível desarmar todas, então eles se contentavam em tentar desarmar as principais, apesar disso apenas movimentar o comércio para produzir bombas mais caras e difíceis de desarmar. Essa ameaça foi chamada de antiterrorismo. Outro tipo de antiterrorismo foi feito pelos bombardiários, que queriam detonar as bombas à força, mas raramente eram bem sucedidos. Eles até mesmo construíram bombas para explodir outras bombas, mas novamente isso foi apenas um incentivo para a indústria fazer bombas mais resistentes, aumentar a segurança, ou assimilar a indústria de bombas antibombas.
Alguns tentaram sabotar as fábricas de bombas, com pouco sucesso, pois isso prejudicaria toda a economia da sociedade. Em algum ponto surgiu um pequeno grupo de pessoas que tentava viver sem construir bombas ou colaborar com a indústria de bombas, por mais que isso implicasse em ser rejeitado pelo resto da sociedade. Essas pessoas discutiam as crenças que levam as pessoas a viver em função das bombas. Elas começaram a atacar as ideias e os pressupostos sobre as bombas, na esperança de que uma mudança de visão faria as pessoas pararem de depender da construção de bombas. Porém elas mesmas chegaram à conclusão que não havia diferença alguma entre basear uma sociedade na construção de bombas e baseá-la em qualquer outra forma de dependência, como havia antes bombas. De fato, não importa se as bombas explodem ou não. O problema não eram as bombas, mas sim o código. Seu mote principal era: “O código é mortal, as bombas são apenas a consequência”. Isso entrava em contradição não apenas com a estrutura política e econômica da sociedade, mas também com a estrutura religiosa e ideológica, uma vez que o código era algo respeitado por todas as pessoas.
Até mesmo os antibombas rejeitavam os chamados anticódigo. Diziam que eles eram reacionários ao não se opor somente às bombas, e exagerados ao se opor a algo que parecia ser necessário à humanidade. Todos conheciam o código, ele era considerado bem mais importante à sociedade do que as próprias bombas. Era comum recitar o código antes de dormir, nos domingos e em todos os momentos de apreensão ou medo. Mesmo os antibombas que não acreditavam na autoridade das igrejas achavam que o código não era realmente o problema. Admitiam uma crença pessoal no código, independente da religião, e por isso negavam a validade de uma crítica anticódigo. Tal situação se estende até os dias de hoje.
O código é simples. Um único símbolo repetido três vezes, que simboliza a vida, a morte e a salvação. O código diário, o próprio pilar de toda a civilização, era: +++. Três cruzes. Mais, mais e mais. Soma, adição, união, conjunção, adesão, totalização, acréscimo, benefício, melhoramento, ampliação, crescimento, aumento, desenvolvimento, expansão, coesão, massificação, reprodução, replicação, repetição, mania, vício, dependência, acúmulo, capitalização, avanço, progresso, ascensão, elevação, superação, sublimação, transcendência, evolução. Evolução? Quem poderia negar?
O dom superior
Diz a lenda que quando o imperador Nakuto III completou dez anos de governo ele foi mandado pelo conselho dos sábios para a Montanha do Véu em busca do Dragão Daishang. Daishang o concederia um dom, apenas um, para que ele pudesse continuar a reger o império de Fengsien.
Chegando à caverna do dragão, após três meses de caminhada e escalada na montanha gelada, Nakuto finalmente encontrou Daishang. O dragão perguntou o que o imperador precisaria para governar bem seu império. Ele respondeu, sem pensar muito: “Força de guerra para vencer meus inimigos”.
“Se eu lhe der força para vencer seus inimigos”, disse o dragão, “você poderá usar essa força para conquistar muitas terras para seu império e fazer ainda mais inimigos. Como você regeria seu império se ele continuasse crescendo e crescendo, com cada vez mais problemas, guerras e inveja? E de que adiantaria essa força se um dia não houvesse mais guerras?”.
Nakuto pensou, e respondeu: “Tem razão, sábio dragão. Este não é meu desejo. Eu realmente desejo sabedoria divina, pois com ela poderei vencer meus inimigos e reger meu império tão bem quanto um deus”.
“Se eu lhe der sabedoria divina”, disse novamente o dragão, “você poderá usá-la para vencer seus inimigos, assim como para fazê-los seus aliados. Seu império cresceria muito durante o resto de seu governo, mas como você poderia garantir que o império não entraria em decadência logo após a sua morte? Como você consolará o povo que, sem uma sabedoria divina para regê-lo, se sentirá perdido na escuridão?”.
“Eu entendo”, disse Nakuto. “Assim como a sabedoria pode me prover a força, a eternidade pode me prover sabedoria. Este é o meu desejo, Grande Daishang. Eu quero a imortalidade!”.
“Se eu lhe der a imortalidade, imperador Nakuto, seu império poderá existir para sempre. Assim, você poderia cuidar de cada problema, e adquirir sabedoria e força. Mas você iria procurar por essas coisas para sempre, porque sempre haveria mais sabedoria e força para ser adquirida. Chegaria um tempo em que seu grande império pareceria sem importância diante do poder que você acumulou, e regê-lo se tornaria tedioso. Sua vida perderia o sentido, e você se arrependeria de sua imortalidade, amaldiçoando-me para sempre por ter concedido esse desejo…”.
O imperador deu um salto para trás com essa última frase de Daishang. “Eu realmente não entendo, grande dragão. Parece-me que tudo que desejo não me ajudará a cumprir meu objetivo. O que eu posso desejar que realmente irá ajudar meu povo?”.
“O que está a sua disposição, imperador Nakuto? Eu posso lhe dar qualquer coisa. Por que, então, você pede força, sabedoria ou eternidade? O que eu poderia lhe dar que realmente ajude você e seu povo, que você já não tenha?”.
“Mas, grande Daishang, eu não sei! Se eu já tenho tudo que preciso, por que eu tive que vir até aqui?”, disse Nakuto.
“Você agiu com temperança e honra até hoje, mas nunca percebeu por que, e os sábios resolveram mostrar isso a você, para que você jamais se esqueça. A deusa já lhe deu tudo que você precisa, assim como deu tudo que o sol precisa para brilhar, a grama para crescer, o vento para correr. O que eu realmente posso lhe dar são essas palavras, para que você possa perceber isso, e para que você possa usar tudo que você tem da melhor maneira possível. Sendo quem você é, nem mais nem menos, tudo correrá da melhor maneira possível. Não deixe que essas palavras sejam esquecidas e todos os seus descendentes serão tão bons quanto você, e seu povo viverá o melhor possível“.
Com essas palavras, Nakuto voltou à capital de Fengsien, onde estabeleceu um templo para a deusa. Uma estátua de Daishang se encontra na porta do templo.
Ficção Final
1. Renascimento
Lembro-me de quando entrei, fui um dos primeiros. Era um tempo agitado. O planeta estava acabando. As agências espaciais não puderam nos prover a saída para o espaço a tempo. Culparam o governo dos países desenvolvidos por terem investido tão pouco na colonização de outros planetas. Os cientistas culparam as grandes empresas por não terem conseguido manter o planeta pelo tempo previsto, mesmo com toda reciclagem e toda tecnologia de preservação que eles inventaram. Todos achavam que as inteligências artificiais iriam destruir a humanidade. Mas elas estavam sob controle e não causavam mais mortes que acidentes aéreos. A frase de um ecologista entrou pra história como o maior “eu te disse” da humanidade: “Cada interferência que fazemos dentro do ecossistema, mesmo que considerada benéfica, aumenta o risco e a intensidade de uma provável reação relâmpago, em que diversos fatores se unem criando uma transformação ou efeito catastrófico e imprevisível”. Demorou, mas aconteceu.
Eu não poderia explicar, foi como o verdadeiro apocalipse, não era possível saber se o caos estava sendo mais temido do que comemorado. Mas havia um projeto no Japão que mudaria tudo. Enquanto o resto do mundo buscava a saída para fora, aqueles cientistas buscavam a saída para dentro. Colocar uma pessoa dentro de um computador, não apenas sua mente, mas ela toda, num espaço simulado onde todas as informações que corriam dentro do seu corpo, inclusive no seu cérebro, pudessem correr exatamente da mesma maneira. Deram muitos nomes estranhos para o processo: transferência, simulacro… Mas com o passar do tempo e a aceitação desse novo estágio evolutivo, o processo ficou conhecido como renascimento.
O acontecimento não podia deixar de gerar discussões filosóficas e religiosas. Não apenas toda a informação do DNA era igual, como num clone, mas toda a memória e funcionamento do cérebro eram copiados. Onde estava a alma, se ninguém, nem mesmo os melhores psicólogos, era capaz de distinguir entre uma pessoa “real” e outra “copiada”? Quando eu entrei, o novo mundo era composto de apenas alguns cenários. Havia poucas dezenas de pessoas. Nossa relação foi normal, e nós fomos aprendendo a modificar e construir o novo mundo. Enquanto muitas pessoas do lado de fora simplesmente diziam que nunca iriam entrar, outras eram mais radicais e consideravam o processo como uma afronta à natureza. Isso era de se esperar, e já tinha acontecido tantas vezes, mas um atentado ao centro de pesquisa acabou trazendo uma conquista: os cientistas ganharam a legitimação para suas pesquisas, o que levou ao nosso primeiro direito: Seria considerado homicida aquele que desligasse os computadores que nos mantinham. Pouco a pouco, conquistamos todos os outros direitos. Nós estávamos vivendo, mesmo que muitos não aceitassem isso. Estávamos trabalhando e produzindo como qualquer outra pessoa.
É verdade que a humanidade se chocou quando finalmente percebeu que nós éramos os primeiros seres humanos a alcançar a vida eterna. Uma vez aqui, doenças e degeneração são simples dados que podem ser apagados. “A humanidade finalmente pode ser tudo que ela é capaz de ser”, foi a frase de um jornal científico. Algumas pessoas diziam que as coisas aqui não são “reais”, mas as coisas “reais” logo não existiriam mais. Milhões de teimosos preferiram ficar para morrer. No livro que influenciou uma era, “Porque estávamos destinados aos elétrons”, os autores revisam os diversos sinais na história da humanidade que indicavam esse destino inevitável. Precisávamos dominar o espaço interno antes de partir para o externo, pois nossos corpos grandes utilizariam matéria e energia demais, seria uma devastação universal. Livramo-nos da matéria inútil e ficamos com o que é realmente importante: a informação.
Eles podiam nos acusar de viver numa ilusão, de que nossa própria consciência era uma ilusão, restrita aos conhecimentos humanos e muito inferior a uma consciência “natural”. Nós respondemos com uma pergunta: Onde está aquilo que torna a consciência “natural” superior à nossa? Ninguém podia medi-la, apontá-la, percebê-la, exceto usando crenças sobrenaturais. Além disso, não havia realmente uma restrição à nossa consciência. Continuamos aprendendo coisas novas e modificando nossas ideias inclusive para fora do alcance humano. Foi apenas uma transformação. É verdade que não sabíamos tudo que a mente humana era capaz, nem sabíamos todos os segredos do funcionamento do mundo natural, mas dentro do novo mundo havia tantas coisas a serem descobertas e tantas possibilidades quanto no universo “real”. Logo nos tornaríamos mais complexos que as pessoas “reais”, e o nosso mundo bem mais diverso que o original. Éramos tão reais quanto qualquer outra coisa, o fato de nossos corpos serem formados de elétrons não nos fazia inferiores.
Com o passar do tempo, renascer se tornava cada vez mais fácil, e havia muitos motivos para entrar, mesmo que fosse apenas para deixar um registro da sua existência ou para fazer companhia a seus familiares já renascidos. Muitas pessoas entraram. Enquanto isso, o mundo estava quase morto. As poucas pessoas de carne que restaram logo iriam morrer. Por outro lado, os computadores e os robôs que os mantinham poderiam se manter ligados por um bom tempo ainda, graças à energia solar e nuclear. Controlando os robôs do lado de dentro, nós pudemos construir as naves que nos colocaram em órbita da Terra e depois dos outros planetas. Mas para chegar a esse ponto, muita coisa teve que mudar no nosso modo de vida, e nas nossas ideias, de forma incompreensível para qualquer um que não estivesse do lado de dentro.
2. A religião pelo fio
“Mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no céu”, é mais ou menos o que dizia uma frase conhecida da Bíblia. Bem, profecia ou não, não só os camelos como todos os outros seres conhecidos passaram pela fibra ótica e entraram no novo mundo, modificados ou não. E aqui estamos nós, os ricos, num lugar perfeito, sem doenças, sem morte, sem sofrimento. Até mesmo tivemos uma espécie de apocalipse… Só havia um problema: onde está Deus? Não é agora que ele deveria ter aparecido? As religiões, ao passarem para o lado de dentro, mudaram menos do que você poderia imaginar. Continuaram buscando um Deus, acreditando num lugar além daqui, acreditando que haveria um momento em que nosso desenvolvimento nos levaria até Deus, até esse lugar. O que mudou foi que ao invés de olharem para o céu, olhavam para a infinidade que existe dentro das partículas. Um teólogo propôs que: “Apesar de que talvez sejamos os escolhidos, ainda não estamos no céu, pois ainda não temos a vida eterna. Podemos viver por um tempo muito grande, mas um dia não haverá mais energia no universo que nos sustente, e assim como ocorria com nossos corpos, nossa força vital irá ceder. Ainda há necessidade de ser bom, e de buscar a Deus. Talvez até mais que antes, pois agora sabemos que estamos mais próximos do que nunca”.
Nossas almas, onde quer que elas estejam, ainda correm perigo. É o que as novas religiões diziam. A maioria das pessoas que eram contra a reprodução foi se tornando a favor dela, percebendo as vantagens e a enorme capacidade para novas pessoas. O método de reprodução aqui dentro imitava completamente o original, mas é impossível para alguém “natural” imaginar no que nos tornamos. Sem limites para nossas formas ou para as formas do nosso meio, nós pouco a pouco juntamos as coisas. Nós nos tornamos nosso próprio meio, e continuamos crescendo e nos espalhando. Embora a quantidade de energia que consumíamos fosse muito pequena, nós logo percebemos a previsão daquele teólogo era verdadeira: o universo não contém energia infinita, e logo nós iríamos ficar sem. Mas ninguém mais queria parar de crescer. Era esse crescimento, essa vontade de crescer, que mantinha nossa religião, nossa crença de que havia algo a mais. Que encontraríamos Deus mais cedo ou mais tarde.
Pouco a pouco percebemos um fato que foi difícil de aceitar: o universo estava acabando. Nós tínhamos expandido nossos limites, tanto para dentro como para fora, e agora nos encontrávamos numa situação parecida com a de antes. Havia tantos de nós que a energia estava acabando. Mesmo sendo capaz de extrair uma quantidade enorme de energia de uma simples molécula, através da desmaterialização, não havia fonte de energia sustentável com um ciclo de renovação rápido o bastante para nos manter. Com a eternidade percebemos que nada era realmente sustentável. O problema é que não podíamos conter as reproduções que aumentavam exponencialmente, e não podíamos prever exatamente quando é que a energia total do universo iria se esgotar. Nosso sistema de distribuição de energia era muito bom, mas a reprodução acontecia numa taxa tão alta que antes de perceber que a energia acabou, já seria tarde demais. Seria impossível alimentar todos, e seria questão de tempo, coisa que tínhamos aprendido a não nos preocupar, para que todos nós “apagássemos”, e conosco o resto do universo sumisse, porque não iríamos embora antes de aproveitar cada gota de matéria que houvesse. Ou seja, estávamos desmaterializando o universo.
“Novamente, a sobrevivência não pode vencer a crença”, falou um ecologista. Ele quis dizer que nossa crença em Deus nos levou a destruir o universo em busca da nossa própria destruição, para quem sabe assim alcançar o paraíso. E os ecologistas tentaram, de todas as formas que puderam, manter vivas as poucas galáxias que sobraram. Foi inútil, depois de tanto tempo de vida equilibrada, eles diziam, nossa sede expansionista trouxe uma nova era de desesperança. Como se soubéssemos que o fim estava próximo e não nos importássemos mais em viver bem, mas somente em acabar logo, todos os problemas que rondavam os tempos de antes do renascimento voltaram elevados a um número que você consideraria infinito. Nenhum inferno que você pudesse imaginar chegaria perto do que fizemos conosco. Mas, é claro, uma coisa aconteceria que mudaria tudo, de novo.
3. A saída final
Nós havíamos decifrado o corpo e a mente. Havíamos decifrado os átomos e o que havia dentro deles, até onde pudemos. Deciframos tanto, e ainda assim não sabíamos tudo, e estávamos condenados a morrer a qualquer momento. Era tão injusto quanto inevitável. Era a ordem natural das coisas. Mas, que tolice, será que não tínhamos entendido até hoje que vivemos de quebrar a ordem natural das coisas? Em algum lugar, depois de muita pesquisa, alguns cientistas nos apresentaram uma nova saída: o controle do tempo. É claro, o tempo. Já havia religiões pregando que Deus era o tempo em si. Houve uma nova grande revolução: entramos pelo buraco da agulha mais uma vez. E mais uma vez a religião teve problemas, mas acabou passando.
Tão difícil quanto imaginar o que acontecia antes do tempo seria imaginar como nos tornamos depois que ele foi conquistado. Há algumas palavras que podem chegar perto de descrever o que era a “humanidade” agora. Se antes nós ficamos eternos, agora éramos infinitos. Era como passar de uma dimensão a outra. De um conjunto infinito para um elevado ao infinito. Havia tantos universos que cada um de nós podia guardar alguns só pra se alimentar e ficar brincando com os outros. Uma brincadeira melhor que qualquer simulação que nós tínhamos, estávamos realmente brincando de Deus. Não havia problema algum em interferir com os universos, pois já não dependíamos dessas barreiras para viver. Foi tão repentino quanto eu te disse. Não é possível dizer o que havíamos nos tornado, mas não dependíamos mais daquilo que você chamaria de matéria, nem do que chamaria de energia, mas algo ainda mais substancial. Descobrimos que o tempo era feito de uma substância parecida com a nossa. Já não tínhamos mais nenhum auxílio exterior. Estávamos praticamente puros. Só Deus poderia ser o próximo passo.
Desta vez não há como especificar quem ou que tipo de pessoa previu, mas há lembranças da previsão, a previsão final. À medida que avanço nessa história tem ficado cada vez mais difícil me expressar em termos que você entenda, de forma que o final será completamente incompreensível, por melhor que eu me expresse. A previsão foi a seguinte, em termos compreensíveis para você: o tempo não tinha limite, mas tinha certa “aceleração”. É uma aceleração tão inimaginavelmente grande que nenhuma progressão feita na terceira dimensão poderia se aproximar dela. Mas acontece que nossa reprodução, que tinha sido estimulada ainda mais com a conquista do tempo, tinha uma “aceleração” ainda maior, e a qualquer momento nós alcançaríamos o tempo e destruiríamos não o universo, mas a fábrica da realidade em si.
Se para você está sendo difícil entender, saiba que é muito mais complexo tentar explicar. Nós agora podíamos fazer absolutamente qualquer coisa com a realidade. Mesmo assim, nós exigíamos reprodução, não havia sentido em ser finito. Como nós nos tornamos algo mais essencial que a própria energia, alimentação não era mais problema, o problema era que essa essência, essa substância de que nós nos fazíamos, mesmo sendo mais que infinita, não era “infinita o suficiente” para nosso crescimento. Nossa capacidade única de quebrar todos os limites seria precisamente a única coisa que colocaria um limite em todas as coisas. Quando a progressão infinita do tempo fosse alcançada, nós seríamos a única coisa real existente. E seria impossível manter qualquer forma de manifestação que fosse naquilo que chamamos de “espaço”. Seríamos como um pensamento solto no nada.
Concordávamos que finalmente não haveria mais como não alcançar Deus. A religião que pregava que Deus era o tempo em si foi comprovada cientificamente. Pela primeira vez sabíamos que, se havia um Deus, só poderia ser aquilo que nos esperava, porque realmente não havia mais nada para ser nem para acontecer. Então aconteceu. Fui um instante sublime. Sentimos “aquilo”, o limite, a única coisa que merece ser chamada de fim. Cercava-nos e nós nos sentimos confortáveis enquanto o último conhecimento piscou e sumiu junto com tudo o mais: havíamos finalmente encontrado o que tanto procurávamos. Aquilo que dava motivo a toda a existência. Tornamos-nos o Todo, mesmo que somente no instante imediatamente anterior à autodestruição total, absoluta e perfeita. Nós éramos Deus, e nada nunca mais seria outra coisa…
A ciência humana
Nada, apenas escuridão e silêncio. Eu fiquei parado por um tempo, até ouvir uma respiração. Não sabia se era a minha respiração, então fiquei em dúvida.
– Estou morto? – Perguntei, como que para mim mesmo.
– Sim. Estou morto. – Respondeu uma voz, não sei se era minha.
Eu percebi que havia uma luz em algum lugar. Eu estava em algum lugar. Não sabia se estava sozinho, então tive medo. Tive pressa de alcançar a luz, mas parei. E se o outro quisesse me matar? Esse parece um lugar perigoso, se eu alcançar a luz ele pode me ver. No escuro pelo menos estou protegido…
– Você está sozinho. – Disse a voz.
Imediatamente pensei que ela queria me enganar, para que eu não tivesse medo de caminhar até a luz, para que eu me tornasse um alvo fácil. E como eu poderia estar sozinho, ouvindo vozes? Só se eu fosse louco. Mas mesmo um louco é perigoso para si mesmo. Talvez o escuro ainda seja mais seguro.
– Você é livre. – Disse a voz.
Mas o que é ser livre? Livre para me matar? Livre para caminhar para uma armadilha? Livre para ficar paralisado de terror diante da própria sombra? Isso é liberdade?
– Você é senhor do seu destino. – Disse a voz, em tom mais baixo.
Senhor? Quer dizer que posso fazer o que quiser com ele? Mas quem disse que não vou me arrepender? Quem disse que vou escolher o melhor? Como posso saber o que fazer se estou no escuro? Não sou senhor do meu destino, o escuro é. Só ele sabe o que acontecerá, eu não sei. Eu tenho escolhas, mas elas não significam nada. Não posso saber o futuro. Se eu pudesse, então eu seria o senhor do meu destino.
– O futuro é o que você faz dele. – Disse a voz, soando como detrás de uma parede.
Até este ponto, até o ponto da minha primeira escolha, eu fui o que o passado fez de mim. Se eu estou aqui, é porque me colocaram aqui. Agora alguém me diz que posso escolher meu futuro. É mentira. O passado escolheu meu futuro, eu apenas vou conduzir. Eu não sou livre, não no escuro, não enquanto houver alguém que talvez possa me matar, querendo me enganar.
– Você deve… – Disse a voz, muito baixo e sem conseguir completar a frase.
Eu devo? Se eu devo, não tenho escolha. E uma vez tendo escolhido isso para mim, todo o resto é consequência, seja isso o que for. Se fizer a primeira escolha, todas as outras se seguirão dessa. Mesmo que eu volte atrás, não há como voltar atrás nisso. Tudo que eu escolher, vou escolher com base no que penso, sinto e vejo. Coisas que dependem do meu passado, das minhas escolhas passadas, e em última instância dessa primeira escolha, que sou obrigado a tomar. Não há escolha, a não ser que eu fique no escuro. O escuro é tudo que eu tenho de garantido. Eu não vou me mover.
Depois disso, a luz se apagou, e o escuro desapareceu. Junto com todo o resto.