A monogamia é patriarcal, e isso nunca vai mudar

Por que a sociedade aceita homens que ficam com várias pessoas, mas condena mulheres que ficam com várias pessoas?

A psicologia evolutiva diz que homens têm um desejo mais forte de variedade sexual (BUSS, 2021), mas esse não é um bom argumento. A antropologia demonstra que os padrões diferenciados têm mais a ver com a cultura do que com alguma propensão biológica (RYAN, JETHÁ, JOHNSON & DAVIS, 2011). Ao longo da história humana, o patriarcado deu mais poder aos homens que às mulheres, inclusive para ter uma maior variedade sexual.

A poligamia patriarcal, que foi mais comum na antiguidade, é um exemplo nítido de como a estrutura monogâmica sempre foi sobre o controle sexual da mulher, não do homem. Quando Joseph Smith fundou a religião mórmon, ele aceitou a poligamia argumentando que Deus não teria feito as mulheres tão atraentes se quisesse que os homens só se atraíssem por uma (BUSS, 2021). Logicamente, isso não se aplicava ao desejo das mulheres.

As mulheres são mais criticadas por fazer sexo casual ou trair, mesmo nos países com maior igualdade de gênero (BUSS, 2021). As políticas de igualdade de gênero não combatem esse problema pela raiz quando deixam de criticar a monogamia, pois é a estrutura patriarcal inerente à monogamia que faz com que as mulheres condenem mais as mulheres adúlteras que os homens adúlteros, inclusive em relacionamentos entre duas mulheres. Mesmo conquistando cargos de maior status social numa sociedade capitalista, que valoriza a mulher pelo seu poder econômico, as mulheres ainda são mais propensas a sofrer abuso e violência de homens, mas menos propensas a tolerar mulheres que abusam ou agridem (BUSS, 2021).

Os departamentos de psicologia e sociologia ainda demonstram timidez para questionar a monogamia como estrutura patriarcal. Em 2008, três cientistas sociais fizeram a mesma pergunta a homens e mulheres: “O que conta como sexo?” Apenas um terço dos homens e das mulheres disseram que se elas tivessem contato oral com os órgãos genitais de outra pessoa, isso contaria como sexo. Mas dois terços dos homens e das mulheres disseram que se o parceiro ou parceira tivesse contato oral-genital, isso contaria como sexo (BUSS, 2021).

Se as pessoas têm medidas diferentes sobre o que conta como sexo para si e para os outros, elas podem achar que estão sendo “fiéis” enquanto consideram que a outra pessoa, fazendo a mesma coisa, não está. Se temos um viés que nos leva a entender nosso próprio desejo como “nada demais”, mas o desejo da outra pessoa como “traição”, isso significa um problema para a ideia de fidelidade monogâmica.

Outra série de estudos descobriu que as mulheres são um pouco mais propensas do que os homens a condenar a traição e o sexo casual, e são significativamente mais duras com outras mulheres do que os homens com outros homens. Elas também são mais propensas a espalhar fofocas sobre mulheres promíscuas. “Embora as mulheres não admirem homens adúlteros, elas expressam menos condenação moral em relação aos homens que traem do que às mulheres que fazem o mesmo”, diz o psicólogo David M. Buss (2021).

Novamente, a psicologia evolutiva tende a explicar isso como resultado da competição reprodutiva. Manchar a reputação sexual de suas rivais seria uma estratégia no jogo do sucesso reprodutivo (BUSS, 2021). Mas chegar a uma conclusão sobre a “hipocrisia monogâmica” somente a partir desses dados é extremamente problemático.

Temos que levar em consideração que a liberação e a repressão sexual não são totalmente redutíveis a aspectos psicológicos e evolutivos relacionados à reprodução, mas sim fenômenos sociais, que variam de acordo com contextos históricos, políticos e culturais (RYAN, JETHÁ, JOHNSON & DAVIS, 2011). Em outras palavras, as diferentes manifestações do patriarcado devem ser levadas em conta.

Se levarmos em consideração o processo histórico de expansão global do patriarcado, intimamente relacionado ao processo civilizatório de colonização, podemos ver que a normalização da monogamia não implica numa propensão natural ou biológica do ser humano, mas combina com a estrutura econômica e política da sociedade de acúmulo (NÚÑEZ, 2020 e ZERZAN, 2011).

A estrutura monogâmica sempre ensinou tanto homens quanto mulheres a cobrar mais “fidelidade” das mulheres do que dos homens, porque ela foi criada com o objetivo de controlar mulheres. Seu desenvolvimento na modernidade, que ocorreu como parte do processo civilizador descrito por Norbert Elias, implicou numa internalização da coerção, ou seja, no autocontrole da mulher sobre ela mesma, possibilitando sua liberdade relativa. Em outras palavras, mulheres foram sendo consideradas como “iguais” na medida em que se mostravam capazes de dominar seus próprios “instintos” e reprimir sua própria sexualidade de um modo que nunca foi exigido dos homens. Assim como pessoas marginalizadas são consideradas cidadãs apenas quando reprimem sua revolta contra a estrutura social que as humilha, seu desejo de destruição da ordem estabelecida, e concordam em conviver pacificamente com as pessoas que as exploram, numa sociedade que ainda as trata como inferiores ou cidadãs de segunda classe.

Sendo uma questão estrutural, esta não pode ser resolvida por mudanças individuais. Não importa o quanto os homens cis se esforcem para “melhorar” ou para alcançar igualdade nos acordos. Enquanto houver monogamia, a mulher necessariamente pagará mais caro pelos seus desejos sexuais. Isso nos faz questionar porque tantas mulheres ainda defendem a monogamia.

Algumas pessoas podem pensar que a não-monogamia é muito mais vantajosa para o homem porque serve como simples desculpa para trair, enquanto aumenta a carga sobre a mulher, que terá que lidar sozinha com o estigma social e a falta de segurança de ser considerada como “vadia”. E elas não estão totalmente erradas, pois a maioria dos homens supostamente “não-monogâmicos” agem assim, principalmente por causa da heteronormatividade.

Mas outra explicação possível é que, justamente porque os rígidos padrões morais monogâmicos foram internalizados pelas mulheres, aceitar um relacionamento monogâmico é tão vantajoso para o homem quanto aceitar um relacionamento aberto com “acordos igualitários”. Homens têm sempre menos a perder, já que não serão cobrados do mesmo modo e estarão sempre justificados ao fazer cobranças de “igualdade de direitos”. Enquanto houver patriarcado, isso não irá mudar.

A não-monogamia política questiona o arranjo inerentemente desigual da monogamia. Para que todas as pessoas possam estabelecer relações não-monogâmicas saudáveis, é preciso que a segurança biopsicossocial delas não dependa de um “macho responsável”. Sendo esta uma causa necessariamente anti-patriarcal, é preciso que os homens cis, enquanto privilegiados, se coloquem como aliados das demais pessoas, ao invés de competidores se gabando de serem menos monogâmicos ou de imporem menos regras.

Eu estou ciente que a relação entre monogamia e patriarcado é uma questão discutível. Algumas pessoas defendem que a monogamia é basicamente sobre hierarquia relacional e amor romântico, algo que está além do machismo, do patriarcado e da propriedade privada (FERNANDES, 2019). Embora eu concorde que a monogamia não é um problema exclusivo de relações heterossexuais ou heteronormativas, analisar a relação entre monogamia e patriarcado depende de como definimos ambos os termos:

  1. Se definirmos a monogamia como “forma de relacionamento em que um indivíduo tem apenas um parceiro por vez” e o patriarcado como “sistema social em que os homens detêm o poder político, autoridade moral, privilégio social e controle da propriedade”, então podemos dizer que a monogamia é anterior ao patriarcado, e não depende dele para existir, já que antecede as sociedades regidas por homens.
  2. Se definirmos a monogamia como “estrutura hierárquica de relacionamento” e patriarcado “estrutura hierárquica de gênero”, podemos concluir que a origem de uma coincide com a outra. O patriarcado é a primeira estrutura hierárquica da história humana. Ele se origina na hierarquia entre humano e não-humano, ou ainda, no domínio do “homem” (como sinônimo de “ser humano”) sobre a terra (que era considerada “mãe”) para produção de excedentes, ou seja, na criação de uma relação de dominação humana sobre a natureza (ZERZAN, 2011).

A monogamia como estrutura hierárquica, e não simples “exclusividade sexual”, depende da quebra da estrutura matrilinear, na qual os laços sociais eram definidos pela relação com a mãe, não com o “pai” (que não era objetivamente definido). A estrutura patrilinear teria surgido mais ou menos ao mesmo tempo em que o modo de vida caçador-coletor foi substituído pelo modo de vida baseado em agricultura e domesticação de animais (ZERZAN, 2011). Por isso, a poligamia patriarcal de culturas tradicionais ainda pode ser considerada como uma estrutura hierárquica, e, logo, monogâmica.

Segundo Geni Nuñez (2020), “não é possível combater machismo e defender monogamia ao mesmo tempo, porque ela é a base fundamental da estrutura misógina”. Uma relação em que não há controle sobre o corpo da outra pessoa não pode ser chamada de monogâmica. Então, a não ser que afirmemos que o controle sobre corpos humanos antecede o controle do homem sobre o corpo da mulher (ou seja, era igualitária em termos de gênero), não há monogamia que não seja patriarcal. Embora a monogamia atual seja baseada no ideal de amor romântico, esse ideal também pode ser visto como um produto do patriarcado.

Isso coloca em questão o protagonismo masculino no movimento político contra a monogamia. Talvez esse protagonismo precise ser repensado, tendo em vista o peso diferencial do patriarcado sobre homens cis e demais pessoas. É comum que homens cis em relacionamentos “não-monogâmicos” acusem as mulheres de serem injustas, cobrarem demais ou exigirem privilégios: “Não temos direitos iguais? Por que você pode fazer algo e eu não posso fazer o mesmo? Isso não é hipocrisia?”. Porém, considerando que a estrutura patriarcal dá privilégios aos homens, independente da vontade individual deles, essa cobrança pode ser injusta. Já que o patriarcado é uma estrutura social, ele não pode ser superado por ações individuais, mesmo que se trate de uma relação entre mulheres.

A sociedade aceita muito melhor a sexualidade dos homens cis. Ainda há mais obstáculos sexuais para as outras pessoas. Se os homens cis não estiverem dispostos a equilibrar um pouco as coisas, cooperando ao invés de competir, e deixando de se focar somente na própria liberdade sexual, a não-monogamia não irá se desenvolver enquanto movimento, pois será sempre um anexo do patriarcado. Isso significa não idealizar mulheres não-monogâmicas, não reproduzir estigmas sobre elas, e não apoiar a sexualidade delas somente quando elas querem transar com você, mas em todas as situações.

A liberdade e segurança das mulheres e pessoas trans é um critério ainda mais preciso para julgar o quanto avançamos na criação de espaços não-monogâmicos na sociedade.

Referências:

BUSS, David M. ‘Cheating’s OK for me, but not for thee’ — inside the messy psychology of sexual double standards. The Conversation, 29 de junho de 2021. Disponível em: https://theconversation.com/cheatings-ok-for-me-but-not-for-thee-inside-the-messy-psychology-of-sexual-double-standards-161642

FERNANDES, Ana Paula. ‘Monogamia não é só sobre machismo, patriarcado e propriedade privada’. Comentário feito em ‘Monogamia e não-monogamia em relacionamentos lésbicos’ em 28 de junho de 2019. Disponível em: https://medium.com/@pigmeialice/monogamia-n%C3%A3o-%C3%A9-s%C3%B3-sobre-machismo-patriarcado-e-propriedade-privada-7fc9066dd9e3

NÚÑEZ, Geni. Machismo e monogamia: uma cumplicidade colonial. Cidadão Cultura, 27 de julho de 2020. Disponível em: https://www.cidadaocultura.com.br/machismo-e-monogamia-uma-cumplicidade-colonial/

RYAN, C., JETHÁ, C., JOHNSON, A., & DAVIS, J. Sex at dawn: How we mate, why we stray, and what it means for modern relationships. New York: Harper Perennial, 2011.

ZERZAN, John. Patriarcado, civilização e as origens do gênero. Gênero & Direito v. 1, n. 2, 2011. Disponível em: https://contraciv.noblogs.org/patriarcado-civilizacao-e-as-origens-do-genero/


Originalmente publicado em https://medium.com/afetos-insurgentes/a-monogamia-%C3%A9-patriarcal-e-isso-nunca-vai-mudar-12f4bface6a8 em 14 de outubro de 2021.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

2 comentários em “A monogamia é patriarcal, e isso nunca vai mudar”

  1. Janos, também sou contra a monogamia, mas você não acha que a religião/estado está envolvida nisso ?

    Diferente das religiões abraâmicas, as antigas religiões não tinham essa relação descrita por você tão forte.
    Na própria epopeia de gilgamesh, semíramis que depois da morte do marido, casou-se com seu filho, tinha vários amantes e era considerado normal seus amantes. Muitas coisas eram bizarramente diferentes como a “prostituta do templo” ser um alto cargo de respeito

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    1. Acho que entendi seu argumento. Você está sugerindo que a religião judaico-cristã, que é monoteísta e messiânica, tem um papel maior na instituição da monogamia do que o patriarcado em si, certo? Isso faz sentido se pensarmos que a monogamia atualmente está relacionada com o ideal de virgindade como virtude e adultério como pecado que vem dessa visão religiosa.

      Por outro lado, há semelhanças entre essas sociedades que podem nos levar a enxergar continuidade de um mesmo processo, citando um trecho de um texto sobre isso: “a antiga Mesopotâmia funcionou como uma espécie de laboratório experimental da civilização, testando, amiúde até destruí-las, muitas formas de religião, desde as personificações primitivas de forças naturais até o sacerdócio completo nos templos, e mesmo os primeiros movimentos do monoteísmo; uma ampla variedade de sistemas econômicos e de produção, desde (sua própria versão de) planejamento estatal e direção centralizada até (seu próprio estilo de) privatização neoliberal; e ainda um sortimento de sistemas de governo, desde a democracia primitiva e a monarquia consultiva até a tirania implacável e expansionista. Quase cada um desses aspectos pode encontrar paralelos em traços similares observados em nossa história mais recente. Às vezes, é como se toda a história antiga tivesse servido de exercício simulado, de ensaio geral para a civilização que veio depois (…)” (https://contraciv.noblogs.org/gilgamesh-e-os-primordios-da-ideologia-civilizatoria/).

      A mulher ter vários amantes, assim como a prostituição ser considerada “sagrada”, pode parecer menos patriarcal, mas pode significar apenas estágio inicial do controle sobre os corpos. A sexualidade da mulher foi instrumentalizada por uns homens para dominar outros homens. Nisso, se estabelecem padrões, como a heteronormatividade e a binaridade de gênero. O próprio Abraão, quando fingiu que Sara não era sua mulher, estava negociando o corpo dela com homens que tinham interesse sexual nela. Os vikings às vezes são considerados menos patriarcais por terem mulheres mais velhas como conselheiras ou não valorizarem tanto a virgindade da mulher, mas com certeza foram também patriarcais e impuseram, ao seu próprio modo, modelos de relacionamento monogâmico no sentido político, como descrito no texto.

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