
Resenha do episódio 3 The Lion’s Song (2016). Aviso de spoilers.
The Lion’s Song é um belo jogo de point & click em pixel art, com paleta em tons de sépia e ambientado em Viena, logo antes da segunda guerra mundial. É um jogo em 4 episódios que podem ser jogados separadamente, e são relativamente curtos. Os dois primeiros são sobre uma compositora e um artista tentando encontrar inspiração para criar uma obra-prima. Mas o terceiro episódio, chamado Derivation, me chamou mais a atenção. A princípio, parece ser a história de Emma Recniczek, uma jovem que está à beira de formular uma nova teoria da lógica diferencial. O que Emma quer saber é como expressar matematicamente a preservação de um estado de mudança, como uma folha que cai e ao mesmo tempo é sustentada no ar pelo vento. Porém, o episódio tem desdobramentos surpreendentes.
Emma é uma personagem fictícia sem relação direta com uma pessoa real. O pai de Emma falece vítima de tuberculose e deixa um apartamento para ela em Viena, onde ela mora sozinha. Ela trabalha na biblioteca da Universidade de Viena, onde tem a oportunidade de trabalhar escondido na sua teoria. A primeira coisa que ela estabelece é que toda mudança ocorre numa determinada faixa de tempo. Sempre que tem uma ideia nova, ela anota algumas fórmulas e desenha gráficos que expressam a mudança do estado A para o estado B. Mas Emma não sabe como concluir a preservação da mudança a partir disso, por isso busca ajuda de um grupo notório de intelectuais que se reúne nos fundos de um Café para discutir lógica e matemática. Ao se apresentar para o grupo, ela é recebida com gargalhadas pelo professor mais velho, pois “uma mulher não pode ser matemática”. Diante desse desafio, ela encontra uma solução inusitada: vestir as roupas do pai e se tornar Emil.

Como Emil, ela logo conquista o grupo de matemáticos com sua inteligência e perspicácia, resolvendo problemas matemáticos complexos com facilidade. Em especial, ela chama a atenção de um jovem professor da Universidade de Viena, que convida Emil para falar na sua aula.
Há vários momentos memoráveis do jogo: É possível notar a diferença de tratamento nos lugares que você escolhe ir como homem ou como mulher. Num dado momento, Wittgenstein aparece na biblioteca em que Emma trabalha e comenta sobre Os Princípios da Matemática de Russell e Os Fundamentos da Aritmética de Frege. Ele diz que a princípio achava que ambos se contradiziam, mas recentemente começou a notar a compatibilidade entre os dois, porém não conseguia encontrar as palavras para expressar isso. Nesse momento, quem leu Wittgenstein vai entender a referência. Você pode responder: “Se você não sabe como dizer, melhor não dizer nada”, um “toco” que sugere que Emma teria dado o “toque” que se torna a conclusão final do Tratado Lógico-Filosófico de Wittgenstein: “Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se ficar calado”.

Logo se torna evidente que essa mudança afeta Emma de forma inesperada e profunda. Ela começa a ter dúvidas se prefere ser Emil ou Emma. Nas palavras de Aurelie Sanhaji, “A identidade de Emma como não binária não é simplesmente sugerida, é um assunto central da história, é algo sempre no foco do personagem principal e aparece em muitas das conversas que Emma tem com as pessoas, algo que ela não consegue esconder ou não sente que precisa esconder.”

O que a princípio parecia ser uma história sobre o machismo do século passado, surpreendentemente se revela uma história sobre não-binaridade. Quando a personagem percebe que NÃO PRECISA ESCOLHER entre Emma e Emil, preferindo se referir a si mesmo como Em, percebe o detalhe que faltava na sua teoria: a mudança não precisa de um estado final DEFINIDO, mas implica num conjunto de estados POSSÍVEIS, que coexistem. Sua não-binaridade de gênero é uma das peças do quebra-cabeça que é incorporada na sua teoria, e isso é incrível.

Outro momento interessante é quando o professor mais jovem descobre que Emil e Emma são a mesma pessoa. Ele está visivelmente desapontado, mas diz que sabe o que é ter que se esconder, sugerindo que ele é gay. Apoiando Em, ele mantém o convite para que ela exponha sua teoria na Universidade de Viena.

Em decide ir se vestindo de modo “não-binário”. Nesse momento ela precisa encarar o professor mais velho, que sente sua reputação ameaçada por uma teoria concorrente, ainda mais vindo de uma “mulher”. Essa parte do jogo é bem difícil, pois é preciso se lembrar de todos os desenvolvimentos da teoria para conseguir se defender do professor, e ainda ter que aturar ele te interrompendo o tempo todo e distorcendo suas palavras. Você pode escolher demonstrar sua teoria ao mesmo tempo em que se assume como pessoa não-binária, ao usar a si como exemplo. Se você conseguir isso, pode escolher entre destruir a reputação do professor ou propor uma cooperação. No meu jogo, ambos se tornaram amigos.
O episódio 4 conta as consequências das escolhas dos outros episódios do ponto de vista de outras pessoas. Entre outras coisas, mostra que Em consegue pressionar a universidade a aceitar a primeira aluna mulher. A história fecha com Em tirando uma foto no mercado de Viena, ao lado de sua aluna. É um final que talvez passe longe da realidade da época, mas é bonito e inspirador.
