
Um ensaio sobre a relação entre controle social e relacionamentos abusivos.
Analisar a psicopatologia da economia global pode nos dar um novo ponto de vista para criticar problemas sociais. A opressão sistêmica e estrutural também recorre a técnicas de abuso psicológico. A violência emocional difere da violência física, mas pode causar muito mais danos. Vítimas de violência doméstica podem permanecer em negação, até mesmo defendendo seus agressores de acusações. Algumas das técnicas usadas no discurso político se assemelham às usadas por abusadores para controlar, manipular, humilhar e reprimir suas vítimas. Portanto, compreender essas formas de abuso pode ser útil para ativistas.
Como reconhecer um relacionamento abusivo?
As vítimas de um relacionamento abusivo em geral sentem que perderam o controle de suas vidas e de suas escolhas, vivem em função do abusador, que nunca pode ser contrariado, e faz suas vítimas acreditarem que são as culpadas por tudo que há de errado em seu próprio comportamento. As vítimas podem demorar para entender que estão sofrendo esse tipo de abuso, e enfrentam uma série de dificuldades para contar isso para outra pessoa, o que permite ao agressor aprofundar a dependência, tornando-se ainda mais difícil para a vítima se livrar dele. É comum o abusador usar o “gaslighting”, uma forma gradual de manipulação que faz a vítima questionar sua própria sanidade e se culpar pelo abuso que sofre.
Analisando discussões sobre política nas redes sociais, podemos perceber técnicas muito parecidas sendo usadas. Nas relações públicas, as técnicas de “bait-and-switch” e “firehousing” também demonstram semelhanças com esse tipo de abuso. A primeira diz respeito a soltar um boato e depois desmenti-lo, para fazer parecer que a oposição faz acusações desonestas. A segunda se trata de criar mentiras mais rápido do que a verificação de fatos pode desmenti-las, colocando em descrédito a própria ideia de verdade e focando-se ao invés disso no poder da narrativa.
Quando o governo ou as pessoas que o defendem tentam minar a oposição com técnicas como essas, reduzindo automaticamente qualquer oposição a uma doença, insanidade, ignorância, desonestidade, doutrinação ou um pensamento sem validade lógica, a questão política começa a se aproximar de uma questão de abuso psicológico. Pois como qualquer abusador, o sistema se foca em diminuir a autoestima de suas vítimas e elevar a própria, e por fim estimular mais pessoas a reproduzir o abuso. Embora essa comparação seja limitada, o ponto é sobre como as pessoas podem estar fazendo uso de técnicas de abuso psicológico para fins políticos.
Um ponto importante é que o abuso emocional não atinge apenas pessoas “de mente fraca” ou “que não estudaram”. Abusos emocionais independem do quanto a pessoa é inteligente, ou mesmo o quanto ela sabe sobre formas de abuso. Porque seu fundo é emocional e não racional, por maior que seja a capacidade racional da pessoa, ela pode usar essa capacidade para criar dispositivos racionais que justificam o abuso ao invés de questioná-lo. Este tipo de negação é chamada de racionalização, muito comum entre dependentes de drogas. Inteligência e grau de escolaridade não é garantia de maior resiliência às técnicas de abuso.
Como sair de um relacionamento abusivo?
Identificar os sinais de abuso é apenas o primeiro passo. É preciso compreender que os relacionamentos abusivos normalmente seguem um ciclo. Após entrevistar 1500 vítimas de violência doméstica, a psicóloga Lenore Walker criou, em 1979, a teoria do ciclo do abuso, identificando 4 estágios distintos:
- Acúmulo de tensão: Conflitos cotidianos que não são resolvidos vão formando um estresse cumulativo. A parte abusiva da relação sente que está sendo ignorada, ameaçada, incomodada ou injustiçada. A cultura conservadora diz que seus valores estão sendo esquecidos ou destruídos, por exemplo. Cada novo “descaso” em relação às expectativas do abusador vai alimentando uma irritação crescente. Para evitar a violência, a outra parte pode procurar reduzir a tensão, fazer concessões e tentar agradar mesmo fazendo coisas que não queria, tornando-se mais submissa e dando mais atenção às necessidades da parte abusiva. Mas isso é como encher um balão que uma hora vai estourar. É insustentável.
- Explosão de violência: A tensão acumulada é liberada de modo repentino e violento, seja na forma de violência verbal, física ou chantagem emocional. A parte abusiva se sente no direito de controlar a outra parte, a acusa de passar dos limites, e pode enxergar sua atitude como uma medida necessária diante de uma situação emergencial. A liberação da energia reduz a tensão e o agressor pode sentir ou expressar que a vítima teve o que mereceu.
- Reconciliação: O abusador pode começar a sentir remorso, sentimentos de culpa ou temer que seu parceiro reaja de algum modo que o prejudique, ou peça ajuda a outra pessoa, expondo-o à vergonha pública. A vítima sente dor, medo, humilhação, desrespeito, confusão e pode sentir-se culpada ou responsável por isso. A parte abusiva pede desculpas, oferece algum conforto ou consolação, ou promete que isso nunca mais irá acontecer, que irá mudar e melhorar. Os agressores podem sentir ou alegar sentir remorso e tristeza, apelando para a compaixão e a importância do perdão. Pode também se auto-punir de modo desproporcional e fazer ameaças de suicídio. Nessa fase, as pessoas inseguras, dependentes ou com medo de perder podem aceitar dar “mais uma chance” repetidas vezes, mesmo quando o abuso é nítido, convencendo-se de que “o amor fala mais alto”.
- Calmaria: Logo após a reconciliação, há um período de aparente normalidade, onde momentos de intimidade e paixão são construídos ou revividos. Mas com o passar do tempo, a fachada de arrependimento vai desvanecendo, e o ciclo recomeça.
Alguns fatores que dificultam o fim de um relacionamento abusivo são:
- O modo como a sociedade normatiza o comportamento abusivo.
- O abuso emocional destrói a autoestima e a vontade de melhorar.
- Geralmente existe dependência financeira ou emocional entre as partes.
- Pode ser perigoso ou custoso abandonar a relação.
- A pressão social ou o medo de como as pessoas vão reagir ao saber.
- A pessoa se “esquece” de como era a vida antes desse relacionamento.
Como quebrar esse ciclo? Eu não sei como responder essa pergunta, mas meu objetivo aqui é indicar como reconhecer o abuso psicológico pode ajudar na crítica à sociedade capitalista. Ou seja, como o ciclo do abuso se relaciona com o ciclo da dominação capitalista:
Primeiro, o processo de acumulação de capital produz crises econômicas e acumula tensão entre as classes, ou ainda, tensão política contra minorias, estrangeiros ou qualquer grupo social que possa ser acusado de afundar a economia do país. O acúmulo dessa tensão leva à ascensão de regimes autoritários, intolerância e moralismo. Nessa fase vemos a idolatria a figuras populistas, “salvadores da pátria”, que irão fazer o que for necessário para corrigir a situação: Estado de exceção, perda de direitos, censura, guerra civil, campos de concentração… Então, temos a reconciliação. A eleição de um novo representante como verdadeiro “salvador da pátria”, que promete fortalecer a democracia e criar políticas sociais de redistribuição de renda. Enfim, um governo de conciliação de classes. Este momento, porém, dura pouco. As elites reagem, a bolha de crescimento econômico estoura, a crise retorna, e com ela o ciclo recomeça. O capitalismo é insustentável, mesmo que se reinvente constantemente.
Por que não conseguimos sair disso? Um dos motivos é que nos falta a confiança de que podemos fazer as coisas por conta própria, ou seja, viver sem depender de um sistema de governo representativo, sem depender de senhores e proprietários. Neste ponto, a crítica social tem defendido da organização da classe trabalhadora em partidos políticos à ação direta, estimulando momentos ou espaços de liberdade que elevam o desejo de permanecer livre. Construindo espaços em que corpos e mentes possam se expressar autenticamente, se fortalecer e elevar sua autoestima, sua confiança de que não só podem como devem se livrar dos abusadores, e não apenas negociar com eles.
O discurso do liberalismo de mercado mantém as pessoas na crença de que se cooperarem com o capitalismo não serão abusadas, que a sociedade capitalista pode ser ajustada de modo que se torne sustentável. Trata o capitalismo como um resultado natural do desenvolvimento humano, aceitando a alienação em relação à natureza e as condições econômicas do trabalho assalariado.
Tal modo de organização destrói a autoestima das pessoas exploradas, fazendo-as crer que a culpa é delas por falharem. O individualismo liberal justifica a colonização e a exploração do trabalho, ainda que sob a fachada de uma democracia ou de uma ética da propriedade. Nos torna dependentes de um sistema econômico totalitário, cujas regras supostamente emergem dos interesses individuais, naturalizando a propriedade privada e tomando-a como único caminho para a prosperidade. Neste tipo de economia, o acúmulo se torna um fim em si mesmo. Oculta os custos, as externalizações de prejuízos e fatores sociais da produção em larga escala. Estimula a crença de que a ciência e a tecnologia podem resolver tudo, basta investirmos o suficiente nelas. Nos faz sentir vergonha se não participamos do esquema, se não cooperamos com o sistema. E por último, apaga o passado, nos fazendo esquecer como era a vida humana antes da sociedade industrial, nos fazendo desprezar este período que abrange a maior parte do tempo de existência de seres humanos neste planeta.
Alguns consideram que a violência doméstica é uma questão secundária ou de menor abrangência política, mas entender essa dinâmica pode trazer uma nova luz à análise dos sistemas contemporâneos de exploração do trabalho. Ao invés de diminuir o papel da luta contra a violência em relacionamentos abusivos, a amplitude desta questão reconecta a violência cotidiana à violência histórica da sociedade. Questiona as bases sociais da economia e se volta para os aspectos relacionais mais amplos: as formas de controle e manipulação do discurso e de construção de narrativas atraentes para falsificar a realidade.
O abuso emocional como ferramenta política implica na justificação de uma relação de exploração, que permanece oculta sob a aparência de cooperação, ou seja, é uma das formas ideológicas criadas a partir das condições materiais e sociais da exploração do trabalho.