Infoconsumismo e a perda da criticidade

FEEDBACK


Uma análise da aceleração do consumo de informações nas redes sociais, introduzindo o conceito de “infoconsumismo”. A pergunta central dessa reflexão é: A velocidade com que consumimos informações pode nos fazer perder a capacidade de argumentar criticamente?

O que acontece quando a maioria das respostas para um argumento se resumem a “concordo” e “discordo”? E o que acontece quando quem concorda, concorda entusiasticamente, mas se limita a elogiar a sensatez do argumento, enquanto quem discorda, discorda furiosamente, mas se limita a debochar ou xingar? Que fenômeno é esse, qual sua origem, e quais são suas consequências?

Numa de suas obras mais controversas, Nietzsche fez uma crítica mordaz à leitura irrefletida: “Os eruditos gastam todas as suas energias dizendo Sim e Não na crítica daquilo que outros pensaram — eles mesmos não têm mais a capacidade de pensar” (NIETZSCHE, 2009, p. 31, tradução nossa). Na internet se lê muito, mas a informação é fragmentada e passamos de um assunto ao outro numa velocidade que era impossível até algum tempo atrás. Talvez nossos cérebros ainda estejam tentando acompanhar essa mudança e se adaptar a essa nova condição possibilitada pela tecnologia.

O problema para Nietzsche era o reflexo condicionado de folhear página após página somente para concordar ou discordar com o maior número de afirmações possível. O erudito seria um viciado nesse tipo de atividade, um indivíduo que perde a capacidade de pensar por si mesmo porque se limita a reagir aos estímulos vindos da leitura. Está compulsivamente preso nesta atividade reativa. Neste sentido, minha pergunta é: estamos nos tornando como esses eruditos, “dedando” celulares e nos limitando a dizer sim ou não? Será que a facilidade das “reações” nos leva a perder a capacidade de pensar criticamente?

Nós participamos das redes sociais para manter contato com pessoas. Esse contato acontece em grande parte por meio de interações com atualizações no “feed”, por definição o feed é uma lista de coisas esperando pelo seu feedback ou resposta. E qual o conteúdo dessas atualizações? Na sua maioria, são o que podemos chamar de “memes”. O termo “meme” vem das teorias de Richard Dawkins e Daniel Dennett. Numa analogia com os genes, os memes são definidos por esses autores como unidades de ideias que se replicam em condições favoráveis, combinando-se por seleção para compor uma cultura. Esta definição faz parte de uma concepção chamada Darwinismo Universal (LEAL-TOLEDO, 2009). O que chamamos de “memes de internet” não são exatamente a mesma coisa, mas se usarmos o conceito de Dawkins, basicamente tudo que postamos nas redes são memes.

Segundo o mestre em comunicação Adriano Padilha:

“Na área da comunicação, o feedback é um dos elementos presentes no processo de comunicação, onde um emissor envia uma mensagem para um receptor, através de um determinado canal. A mensagem poderá ser alterada por algum tipo de barreira (ruído), condicionando então a sua interpretação por parte do receptor. Depois de interpretada, o receptor termina o processo de comunicação com o feedback – a resposta ou reação do receptor à mensagem enviada. (…)

Em outras áreas como Engenharia Elétrica e Eletrônica, o termo é utilizado para se referir à realimentação de um sistema, ou seja, à transferência do sinal de saída para a entrada do mesmo sistema ou circuito, resultando num aumento do nível de saída (feedback positivo) ou diminuição do nível de saída (feedback negativo).” (PADILHA, 2019)

Nas redes sociais, o sistema de feedback comunicacional cria um sistema de feedback positivo, porque permite a autopropagação de ideias por meio de um mecanismo de estímulo e resposta condicionados. Criamos uma máquina em que memes evoluem e se espalham por si sós, gerando efeitos contra os quais estamos tão indefesos quanto os eruditos que Nietzsche criticava. Estamos privados da liberdade de pensar criticamente sobre a informação que consumimos, exatamente como uma pessoa com compulsão por comprar roupas não consegue fazer bom uso de todas elas. Não dá tempo, porque o fluxo é muito intenso. Poderíamos chamar isso de infoconsumismo.

A liberdade pertence agora aos memes (unidades de informação), que estão livres para circular pela rede e competir entre si numa luta pela sobrevivência, em que o vencedor é aquele capaz de se reproduzir melhor e mais rápido, isso é, receber mais atenção e ser compartilhado por mais pessoas. Como um vírus, alguns memes hibernam, esperando um momento de imunidade baixa para viralizar novamente. As pessoas se tornaram pontos de conexão na rede para a difusão desses vírus mentais. As ideias agora se relacionam em rede por meio das pessoas, mais do que as pessoas por meio da rede.

Semelhante ao que a teoria marxista chama de alienação do trabalho (BARROS, 2011), cada um dos conteúdos compartilhados na internet é produto do tempo de alguém, mas este conteúdo se apresenta para nós como algo que existe por si só, que se expressa sem origem definida. Não é como uma mensagem que vem de um indivíduo e alcança outro indivíduo, mas como algo que se lança no mundo por meio dos indivíduos. As pessoas se tornaram os meios de comunicação, não somente remetentes ou destinatários. Um meme parece viralizar independentemente da racionalidade humana, mas ainda assim é capaz de produzir efeitos reais.

Somos alvo de uma publicidade que surge do nada e escorre para o vazio. Mesmo as mensagens significativas são dissipadas no vácuo pela repetição que caracteriza seu “sucesso”. Que forças regulam o fluxo de ideias na rede e determinam seu sucesso? Somos capazes de pensar criticamente sobre todo conteúdo viralizando na rede? Na filosofia sabemos que avaliar criticamente uma ideia demanda tempo, não é algo simples, dá trabalho, exige esforço e habilidade para usar os métodos e ferramentas do pensamento crítico (CASTRO, 2014). Podemos ter muito acesso à informação agora, e nos gabar de ser muito mais inteligentes que nossos antepassados. Mas quanto menos tempo temos para avaliar uma informação, menor nossa capacidade de construir um bom argumento ou uma boa crítica. Ser capaz de dizer sim ou não rapidamente para uma quantidade avassaladora de informações pode nos dar a ilusão de que sabemos mais, e logo temos uma capacidade crítica maior. Afinal, como aquelas pessoas no passado podem se considerar capazes de pensamento crítico se aceitavam coisas como escravidão e proibição do voto a mulheres?

Mas as coisas não são tão simples. Cada época considerou seus pensadores contemporâneos como muito bem informados e críticos. E talvez fossem mesmo. O que os levava a defender ideias que hoje pensamos ser absurdas é que eles PENSAVAM que estavam vendo o quadro todo. Havia uma porção de coisas que estavam de fora, e que hoje podemos ver. Do mesmo modo, provavelmente há uma porção de coisas que nossos melhores pensadores atuais não estão vendo, que se tornarão bem óbvias para algumas gerações posteriores. Cada um dos paradigmas é muito bom para explicar o mundo, até ser superado.

Quando o fluxo de coisas para selecionar se torna mais intenso, precisamos de filtros mais eficientes. Ou esses filtros processam mais informações, ou eles se tornam mais “seletivos”, no sentido de excluírem mais coisas usando cada vez menos informação sobre elas. Rotular pela primeira impressão é um modo de tornar seu filtro mais eficiente. Se não somos tão intelectualmente superiores quanto imaginamos, e temos cada vez menos tempo para avaliar uma ideia, a conclusão só pode ser que nossa capacidade de avaliar criticamente fica de fato limitada. Por exemplo, numa sociedade em que apenas um novo livro é publicado a cada dois meses, um erudito tinha tempo para conhecer todas essas novas ideias. Mas se o fluxo ultrapassa sua capacidade de realmente conhecer a ideia, você infelizmente vai ter que descartar algumas ideias que poderiam ser muito interessantes, mas não chamaram a atenção logo de cara, ou pareceram ser algo que não são.

Num lugar com muitos pedintes, não dá tempo de ouvir a história de cada um e avaliar com precisão quem merece mais sua atenção. Você acaba excluindo pessoas que realmente precisavam de ajuda, e ajudando quem não estava em tanta necessidade assim. Numa sociedade com alto fluxo de informação, não há tempo para realmente avaliar tudo e separar com precisão o que vale a pena ou não. Você acaba deixando de lado questões que seriam prioritárias, e investindo tempo em questões menos importantes.

Do ponto de vista dos memes, o avanço das tecnologias da comunicação permite maior aceleração do seu vetor de propagação. Nossos cérebros estão sendo reprogramados para possibilitar uma circulação mais rápida de memes. A diminuição da capacidade crítica é um efeito gerado pela adoção de uma estratégia de propagação mais eficiente de memes, o que também beneficia certas ideologias políticas.

Tudo isso por causa de likes? Parece exagero, mas o que significa “dar um like”, “curtir” ou compartilhar uma atualização? E o que significa gostar de algo? Gostar significa sofrer uma ação, ser tocado por algo, aprovar, apertar um botão mostrando ao mundo que você gostou daquilo? Ou significa dispor-se a agir em relação a algo? Amar ou gostar implica na capacidade de criar uma nova disposição, tanto de pensar quanto de agir, com o objetivo de realizar algo no mundo. Clicar no botão “curtir” ou “compartilhar” é fazer uma declaração de intenção. O conteúdo em questão é arquivado na sua lista de “coisas que eu curto”. Definir preferências não é o mesmo que compreender o modo como cada meme que se replica na sua mente altera a maneira como você enxerga o mundo, as pessoas e a si mesmo; e como você se relaciona com a realidade, sua memória e suas expectativas.

Não há nada errado em dar um feedback e expressar seus gostos para o mundo. O problema é quando isso se encerra num sistema controlado por algoritmos que ditam qual será o assunto do dia, da semana, do mês, do ano… Quem sabe como essa tecnologia pode ser usada para manipular a sociedade? Em 2018, Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, foi chamado a depor sobre regulação, uso de dados de usuários e o escândalo da Cambridge Analytica. Esta é apenas uma das relações possíveis entre infoconsumismo e política. O conceito de infoconsumismo é novo, e pode ser melhor trabalhado. Por enquanto, eu me limito a apresentar o termo para avaliação.

Referências:

BARROS, José D’Assunção. O conceito de alienação no jovem Marx. Tempo social, v. 23, n. 1, p. 223-245, 2011.

CASTRO, Gabriela. Pensamento Crítico é Filosofia. Pensamento Crítico na Educação: Perspectivas atuais no panorama internacional, orgs. Rui Marques Vieira…[et al.]. – Aveiro: UA Editora, p. 25-28, 2014.

LEAL-TOLEDO, Gustavo. Em busca de uma fundamentação para a Memética. Trans/Form/Ação, Marília, v. 36, n. 1, p. 187-210, Abr. 2013. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732013000100011&lng=en&nrm=iso&gt;. Acesso em 21 Set. de 2020. https://doi.org/10.1590/S0101-31732013000100011.

NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: how to become what you are. Oxford University Press, 2009, p. 31.

PADILHA, Adriano. Significado de Feedback. Significados, 1 ago. 2019. Disponível em: https://www.significados.com.br/feedback/. Acesso em: 21 set. 2020.

Autor: Janos Biro

Você não existe, e eu também não.

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