
Livreto reunindo meus textos sobre ficção interativa: o conceito, a história, a teoria e dicas para quem quer aprender a jogar ou a criar ficções interativas.
Apresentação
Sou atraído por livros e por computadores desde antes de aprender a escrever. É uma relação que mal consigo compreender.
Descobri o mundo das ficções interativas em 1999, e antes disso tinha jogado alguns “livros-jogos”. Neste livreto vou me concentrar nas ficções interativas digitais e com parser (interpretador de comandos), que foram populares nos anos 80, mas continuam sendo produzidas.
A maioria das pessoas não sabe muito bem do que se trata e tem até certa dificuldade de imaginar o que é isso, pois as ficções interativas são consideradas como jogos, mas não possuem gráficos e por isso não tem a aparência que geralmente associamos aos jogos. São jogos de texto, que se joga lendo e entrando comandos com o teclado, geralmente na forma de frases. É comum ouvir perguntas do tipo: mas como isso funciona? O melhor modo de entender é jogando.
Eu me graduei em filosofia em 2008 e embora meu tema principal não seja ficção interativa, apresentei um trabalho sobre isso num colóquio de filosofia e ficção. Temos poucas publicações sobre o assunto no Brasil. Este livreto reúne textos que publiquei independentemente em diversos lugares.
Eu também crio jogos de texto que caem na categoria mais ampla de ficção interativa, pois não contém parser. Caso se interesse em conhecer, você pode acessá-los aqui: https://janosbiro.itch.io
O que são ficções interativas?
A ficção interativa não é um estilo literário próprio. A interatividade é um tipo de estruturação da obra literária. O que caracteriza uma obra como interativa é a possibilidade da pessoa que está lendo (a leitora) interferir significativamente na narrativa durante a leitura, de modo mais ou menos previsto pela pessoa que escreveu (a autora). Embora este conceito seja amplo, a literatura interativa abarca toda obra literária cuja narrativa seja construída para ser lida com a mediação de um “operador lógico condicional”, ou seja, um código de programação. O conceito de ficção interativa que usarei aqui é o de “obra literária com uma estrutura condicional, que pode ser lida de modo interativo graças a uma mediação computacional”.
Toda obra literária é mediada por códigos. Por exemplo, existe uma lógica simples interligando os parágrafos de um texto: Você começa pelo primeiro parágrafo, depois segue para o segundo, depois para o terceiro, e assim por diante. Nós sabemos que devemos ler os parágrafos numa determinada ordem, sem que o texto precise indicar isso explicitamente. Na literatura interativa, a ordem entre as partes é mediada por códigos mais complexos. O próximo parágrafo a ser lido depende de certas condições estabelecidas no anterior.
Num tipo mais simples de obra interativa, a pessoa que lê só pode selecionar entre as opções explicitamente dadas pela pessoa que escreveu. É possível publicar tais ficções interativas em formato impresso, com parágrafos numerados e opções que indicam o próximo parágrafo que deve ser lido: “Se quiser fazer A, vá para o parágrafo X”. Isto geralmente é chamado de livro-jogo. Mas a literatura interativa não se limita a isso.
Numa obra interativa mediada por computador, as ações possíveis não precisam estar visíveis para quem lê. Isso é possível de ser feito usando um parser (interpretador de comandos). As ações da personagem devem ser imaginadas pela pessoa que está lendo a partir de uma leitura atenciosa, e a leitora deve ser capaz de descrever corretamente a ação escolhida em comandos, palavras ou frases. Isso significa uma participação mais ativa no processo de construção interativa da narrativa. O programa no qual é executada a ficção interativa interpreta os comandos e responde de acordo com a programação da autora. Por exemplo: suponha que o parágrafo atual descreva uma cozinha, onde há uma mesa com um copo cheio de água. A leitora digita: “Pegar o copo”, e o programa responde algo como: “Você pegou o copo, mas ele escorregou da sua mão, caiu no chão e quebrou. O chão agora está molhado e cheio de cacos de vidro”. Essa possibilidade foi pensada previamente pela autora. Ela muda a situação e o resultado de outras ações. É possível criar certos desafios ou puzzles que tornam a ficção interativa num tipo de jogo ou simulação.
A estrutura de uma obra interativa não se limita a um conjunto de parágrafos interligados, mas representa um “modelo de mundo”, composto de locais, objetos e personagens que podem estar ativos na parte oculta/potencial da narrativa. Geralmente, a leitora move a personagem principal usando referências cardinais: norte, sul, leste e oeste. Ela interage com objetos com o comando “pegar (nome do objeto)”, e interage com outras personagens com o comando “falar com (nome do personagem)”. Cada um desses objetos e personagens pode ter vários níveis de interação, uma vez que a leitora pode examiná-los mais atentamente com o comando “examinar”, o que resulta numa descrição mais detalhada, e expande as possibilidades de interação. O que uma leitora supõe de cada descrição é parte da resolução de problemas dentro da obra interativa.
Eu me aprofundarei nesses conceitos na última parte, sobre a teoria das ficções interativas.
Exemplos de ficções interativas
Embora tenham sido mais populares nos anos 80, ainda há uma boa quantidade de ficções interativas sendo produzidas atualmente. Existe uma comunidade de autoras de ficção interativa que realiza anulamente um concurso para eleger as melhores obras de ficção interativa, o IFComp[1].
Infelizmente, há poucos exemplos de ficções interativas em português (originais ou traduzidas). A grande maioria delas está em inglês. Isso significa que o acesso às obras de ficção interativa é bastante restrito para quem não domina essa língua. Aqui vai uma lista das minhas ficções interativas favoritas, seguida de uma pequena resenha. Você pode jogar a maioria delas via web pelo site iFiction[2] ou num smartphone com Android usando o aplicativo Text Fiction[3].
Photopia[4] (Adam Cadre, 1998). “Ler uma história pra você? Que graça isso teria? Eu tenho uma ideia melhor: vamos contar uma história juntas”. Assim começa a ficção interativa de Adam Cadre, vencedor da IFComp 98. É uma mistura criativa entre fantasia e realidade, atravessando o universo lúdico das cores com elementos da psicologia. Uma das obras mais influentes do meio. Eu a considero uma verdadeira obra-prima sobre a arte de contar histórias. A leitora vive o papel de uma criança ouvindo uma história de sua babá, e interagindo nesta história. Ao mesmo tempo, essa narrativa fantástica é entrecortada com cenas da memória da contadora de história, que explicam de onde vieram os elementos que compõem a primeira narrativa. Photopia é dividido em vários estágios, cada um deles relacionado a uma cor primária, e a narrativa gira ao redor do mistério e do significado das cores.
Kaged[5] (Ian Finley, 2000). Essa obra venceu a IFComp de 2000 com muito merecimento. É uma história sobre insanidade e traição num mundo dominado pela burocracia, onde pessoas estão morrendo misteriosamente, bem no clima surrealista de Kafka. A leitora é colocada na pele de um funcionário que acaba de ser promovido, mas sua cidade está ameaçada por uma misteriosa onda de suicídios. A narrativa surpreende por oferecer escolhas significativas num cenário em que, como num romance de Kafka, o personagem principal parece não ter opção. É fácil se deixar envolver pela trama e pela expectativa de liberdade. O texto, muito bem escrito, colabora para criar um ar de suspense e tensão a cada momento.
For a Change[6] (Dan Schmidt, 1999). Ficou em segundo lugar na IFComp de 99. É uma história cheia de simbolismos e incrivelmente bem escrita sobre superar um muro gigantesco e voltar a ver o Sol. Não há muito que eu possa dizer sobre essa obra, exceto que ela possui muita poesia misturada com complexos desafios, em que a leitora se verá obrigado a seguir a lógica peculiar de um mundo imaginárioe surreal.
All Roads[7] (Jon Ingold, 2001). Uma ficção interativa com puzzles simples, que conduz a leitora por um incontrolável vai e vem temporal na Veneza renascentista. Confuso, mas agradável, como um bom filme de suspense e espionagem. O personagem principal é um condenado à morte que aparentemente tem a habilidade de viajar no tempo, mas não pode controlar isso, nem saber exatamente para qual direção no fluxo temporal ele está se movendo. A narrativa deixa em aberto a questão sobre o caráter do personagem, mesmo que permita alguma liberdade sobre as decisões possíveis. A mensagem do autor talvez seja que o destino não pode ser alterado. Para quem gosta da ideia por trás de filmes como “Efeito borboleta”, esta ficção interativa pode ser mais sofisticada que o roteiro do filme. Jon Ingold é um dos maiores autores de ficção interativa da atualidade.
Aisle[8] (Sam Barlow, 1999). Uma peça de um ato só, porém riquíssima em detalhes. Você tem uma só chance de tornar seu dia algo mais que ordinário. Uma ótima experiência em interatividade. O jogo parece ter uma resposta para quase tudo que você pode imaginar. Diferente da maioria das ficções interativas, nesse aqui o espaço de tempo da narrativa compreende uma única escolha da personagem, a partir da qual virão as mais imprevisíveis consequências. A leitora pode definir o futuro da personagem, uma pessoa num corredor de supermercado, com um único comando. Mas para chegar ao complexo comando que gera o melhor resultado será preciso muitas tentativas e muita capacidade de abstração.
Galatea[9] (Emily Short, 2000). Uma obra focada na conversação, escrita pela autora mais respeitada desse meio: Emily Short. Você tem a oportunidade de interagir com Galatéia, a estátua que criou vida no mito grego. Muito diferente de uma aventura convencional, é uma exploração mais intimista. Preso num museu, o personagem tem a oportunidade de interagir de diversas maneiras com a personalidade mitológica. O assunto pode ir se desenvolvendo de modo que Galatéia se agrade ou se chateie. É preciso escolher os tópicos certos, e saber o momento apropriado de se fazer certas perguntas. A autora trabalha com inteligência artificial e é professora de mitologia grega.
Metamorphoses[10] (Emily Short, 2000). Esta belíssima obra prima de Emily Short é uma história onde a realidade se divide em dois planos: o literal e o figurativo. Cheio de desafios simbólicos e psicológicos, que falam da natureza humana. Com múltiplos finais, é para mim o exemplo máximo de literatura interativa, embora não tenha ainda sido plenamente apreciada como merece. A leitora deve ter uma boa capacidade de interpretação e de associação entre ideias e objetos. Deve também ser capaz de perceber sutilezas nas descrições dos cenários e dos objetos. Os objetos podem se transformar, adquirindo diferentes propriedades, que serão úteis para chegar ao final.
Zero Sum Game[11] (Cody Sandifer, 1997): Uma hilariante anti-aventura. Você começa no fim de uma aventura em que coletou vários “tesouros mágicos”, mas sua mãe manda você devolver tudo. Uma sátira cheia de piadas com os clichês dos jogos de RPG.
Como jogar ficções interativas
Um bom lugar para começar a procurar por ficções interativas é o Interactive Fiction Database[12]. Você pode procurar por categorias como estilo, dificuldade, tamanho, ano de lançamento, etc…
Algumas ficções interativas não estão disponíveis para jogar direto no navegador. Elas dependem de um programa interpretador para rodar. A linguagem mais usada é o z-code. Os interpretadores são pequenos, gratuitos e em geral fáceis de instalar.
Você pode ver dicas para iniciantes no site brasslantern.org[13] ou baixar uma lista dos comandos mais comuns[14]. Emily Short escreveu um ótimo artigo sobre como ler ficções interativas[15].
Uma ficção interativa geralmente é composta por secções de texto que se conectam de acordo os comandos utilizados na interação. Os comandos são a representação do que se deseja que a personagem faça. Por exemplo, suponha que o texto seja: “Você está numa sala sem janelas. Há uma porta logo a sua frente”. Você escreve: “examinar porta”. O programa responde: “A porta é de madeira, e está trancada”.
Existe um tipo mais simples de ficção interativa, chamada de Choose Your Own Adventure (CYOA) ou livro-jogo, que é mais fácil de criar e jogar, e tem mais exemplos em português. Ao invés de um interpretador de comandos. o programa apresenta as opções e a jogadora seleciona a opção que deseja, alterando o andamento da narrativa. Uma das ferramentas mais populares para criar esse tipo de jogo hoje em dia é o Twine[16]. Os jogos feitos no Twine rodam no navegador, como páginas de internet.
Como criar ficções interativas
Existem diversos aplicativos para criação de ficções interativas, e a maioria não exige muito conhecimento de programação, mas possuem graus variados de dificuldade de uso e flexibilidade de formatação. O site Cloak of Darkness[17] é uma ferramenta muito boa para escolher uma ferramenta, pois compara as principais linguagens feitas especialmente para ficção interativa. Emily short também tem um ótimo artigo sobre como escrever ficções interativas[18].
Depois de se familiarizar com uma dessas linguagens e testar um pouco com coisas simples, você vai precisar de uma boa história. Mas diferente das ficções tradicionais, a ficção interativa não é linear, portanto a habilidade de imaginar diversos cenários possíveis para cada situação é muito importante. É recomendável ler o código de algumas ficções interativas antes de tentar escrever uma. Exemplos com comentários sobre o processo de criação também podem ser muito úteis.
Algumas referências sobre a arte de escrever ficções interativas:
Twisty Little Passages: An Approach to Interactive Fiction[19], de Nick Montfort.
Writing Interactive Fiction with Twine[20], de Melissa Ford.
Rise of the Videogame Zinesters: How Freaks, Normals, Amateurs, Artists, Dreamers, Drop-outs, Queers, Housewives, and People Like You Are Taking Back an Art Form[21], de Anna Anthropy.
IF Theory Reader[22], de Kevin Jackson-Mead e J. Robinson Wheeler.
Command Lines: Aesthetics and Technique in Interactive Fiction and New Media[23], de Jeremy Douglass.
Writing Interactive Fiction[24], de Deb Potter.
Lista de “boas práticas” para criar uma ficção interativa:
1. Não mate a personagem sem aviso.
2. A solução de um desafio não pode envolver ações completamente obscuras, deve haver dicas razoáveis.
3. Torne o desafio capaz de ser vencido sem o conhecimento de “vidas passadas”, ou seja, sem que seja preciso morrer e recomeçar.
4. Não obrigue a fazer coisas tediosas para vencer o desafio.
5. Não obrigue a digitar verbos muito específicos, use os verbos mais comuns.
Esta lista foi inspirada pela The Player’s Bill of Rights[25] de Graham Nelson.
História das ficções interativas
A história das ficções interativas começa com um dos primeiros jogos de computador. Criado por William Crowther em 1976 (com o auxílio de Don Woods a partir de 1977), Adventure[26] foi programado na linguagem Fortran, num tempo em que pouquíssimas pessoas tinham acesso a computadores. Era um jogo totalmente textual. Crowther era explorador de cavernas e programador, e estava criando uma simulação em texto de um sistema de cavernas dos Estados Unidos. Havia descrições de vários locais da caverna e a jogadora se movia usando pontos cardinais: norte, sul, leste e oeste (exploradores de cavernas usam bússolas para se mover nas cavernas). Era possível também manipular objetos como uma lanterna e uma corda. Crowther era jogador de Dungeons & Dragons e leitor de Senhor dos Anéis, e adicionou elementos de fantasia à caverna, iniciando uma longa parceria entre jogos de computador e jogos de RPG.
Em 1977, apenas um ano após Steve Jobs e Steve Wozniak fundarem a Apple e lançarem o primeiro computador pessoal de sucesso, estudantes do curso de ciências da computação do MIT começam a criar a estrutura de Zork[27] a partir do código de Adventure. A triologia Zork foi uma das séries mais bem sucedidas de jogos de computador, e adicionava um parser mais complexo, permitindo uma jogabilidade melhor. O jogo foi completado em 1979, e nesse mesmo ano dez estudantes do MIT fundam a Infocom[28], que se tornou a grande produtora de ficções interativas da era comercial.
Nos anos 80 a ficção interativa se espalhou graças à popularização dos computadores. A diversidade de temas aumentou, e as ficções interativas estavam sendo reconhecidas. Em 1980, enquanto Zork estava sendo comercializado, registra-se a criação do primeiro adventure gráfico: Mystery House[29], de Roberta Williams. Apesar de ser em preto e branco, sem sons e sem animações, os gráficos eram atrativos para a época. O tema, fugindo da fantasia medieval, também trouxe um novo público para os jogos de computador.
Roberta e Ken Williams fundaram a On-Line Systems, que mais tarde se tornou a Sierra On-Line. Roberta permaneceu sendo uma grande influência nos jogos de RPG e de aventura, criando a série mais clássica de jogos de aventura gráfica: King’s Quest[30]. O oitavo e último episódio da série foi lançado em 1998, com gráficos em 3D. Em 2015 uma nova série com o mesmo nome foi lançada, seguindo o espírito da antiga, mas com jogabilidade e gráficos atuais. Roberta Williams permanece um exemplo da presença decisiva das mulheres na história da ficção interativa e dos jogos de computador.
Em 1981, Olli J. Paavola da Universidade de Helsinque na Finlândia desenvolveu a primeira ficção interativa baseada num livro: Lord[31] era aventura de texto baseada em Senhor dos Anéis de Tolkien. Em 1984, Robert Pinsky escreve uma ficção interativa com elementos literários originais: Mindwheel[32], um romance eletrônico de ficção científica. O roteiro do jogo era bastante elaborado: o jogador deveria entrar na mente de quatro pessoas para salvar o mundo, num clima de suspense psicológico.
Em 1984 também foi lançada a ficção interativa mais bem vendida depois de Zork, o Guia do mochileiro das galáxias[33], baseada no livro de mesmo nome (que teve uma versão cinematográfica em 2005) e feita pelo próprio autor do livro, Douglas Adams. Um dos atrativos, além da linguagem cômica, eram os brindes que vinham na caixa do jogo (chamados de feelies): um broche com os dizeres “Não entre em pânico”; um emaranhado de algodão como o que Arthur encontra em seu bolso; a ordem de destruição da casa de Arthur e outra da Terra; um recipiente plástico vazio com os dizeres: “Frota estelar microscópica oficial”; “óculos de sol sensíveis ao perigo” (opacos e de papelão, usados para “evitar ler as dicas”) e uma brochura chamada “Quantas vezes isso já aconteceu com você?”, uma propaganda do ficcional Guia do mochileiro das galáxias. Na lista de conteúdos da caixa também estava escrito “No tea” (ausência de chá), um dos objetos mais engraçados do jogo, pois subverte a lógica dos objetos convencionais.
Como os filmes, as ficções interativas levaram um tempo para serem consideradas como algo capaz de transmitir experiências esteticamente maduras.
Agora, histórias interativas estão sendo escritas por autores tradicionais, com assistência técnica de programadores. Talvez seja necessário alguém que seja ao mesmo tempo programador e escritor para explorar a promessa artística da ficção interativa e criar obras de literatura que se encaixam nos clássicos da literatura tradicional.
– Mary Ann Buckles na revista BYTE, em 1987[34]
O fim da era comercial
Em 1986, a Infocom é vendida para a Activision, que fazia jogos para consoles (Atari principalmente). Apenas 3 anos mais tarde, em 1989, ela já se encontrava incapaz de competir com os consoles. Em 1991 e 1992 a Activision lança os pacotes Tesouros perdidos da Infocom[35], uma coleção dos melhores jogos da Infocom, incluindo Deadline[36] (1982), um jogo de investigação policial, e Shogun[37] (1989), baseado no livro de James Clavell. Depois disso, não houve mais viabilidade comercial para as ficções interativas, e sua produção se tornou basicamente hobby.
Em 1993, Graham Nelson escreve os direitos dos jogadores, um texto que auxilia o desenvolvimento de ficções interativas, trazendo novas pessoas e novas teorias. Nesse mesmo ano é lançado Myst[38], uma aventura gráfica que iniciou um gênero de aventura em primeira pessoa.
Em 1995 acontece a primeira IFComp, um evento anual de premiações para as melhores ficções interativas. Em 1996 ocorre também a primeira premiação XYZZY Awards[39], que premia as melhores obras em diversas categorias, incluindo “melhor NPC”, “melhor puzzle” e “melhor roteiro”. A partir dos anos 90 acontecem com mais frequência mostras e exibições de ficções interativas, assim como resenhas críticas, livros, artigos e teses acadêmicas. Em 2004 é lançado o livro Twist little passages, de Nick Montort, que é uma abordagem crítica dos elementos computacionais das ficções interativas, o que chama novamente a atenção para esse meio. Hoje, a competição de ficções interativas tem cada vez mais candidatos, premiações, e novas linguagens de desenvolvimento de ficção interativa ainda estão sendo criadas e aperfeiçoadas. A base de dados de ficção interativa tinha cerca de 9.750 entradas em 2019. Muitas delas podem ser baixadas gratuitamente.
A primeira ficção interativa a ser comercializada fora dos EUA provavelmente foi Acheton[40] (Inglaterra, 1978). Eamon[41] (1980) é outro exemplo britânico, um jogo de ficção interativa com parser e elementos de RPG (estatísticas de personagem e inventório), cujo sistema foi usado para criar muitos outros jogos (mais de 200 até 2013).
Na Itália, as ficções interativas eram distribuídas em fitas K7 que vinham em revistas. Houve uma produção profícua de ficções interativas por alguns anos. Na Espanha o mesmo aconteceu, mas com menos intensidade. A primeira ficção interativa comercial da Espanha foi Yenght[42], de 1983. O Club de Aventuras AD[43] continua criando ficções interativas em Espanhol.
Em 1983, Renato DeGiovani criou a primeira ficção interativa brasileira a ser comercializada, o jogo Aventuras na Selva, programado em Basic, posteriormente chamado de Amazônia[44] (1985). Renato continuou comercializando versões gráficas de seus jogos. Outras ficções interativas brasileiras criadas no mesmo sistema de Amazônia são: Serra Pelada, Lenda da Gávea, Angra-I, Resgate na Serra do Roncador, Corporação Orion e Projeto STX.
O futuro das ficções interativas
Em seu documentário de 2010, chamado Get Lamp[45], Jason Scott entrevistou várias pessoas que criaram e trabalharam com ficções interativas. Elas relatam como foi inesperada a queda de interesse nesse produto, e como ficaram chocadas com o fato de que praticamente ninguém sabe o que são ficções interativas hoje. Nos anos 80, o sucesso era tão grande que chegaram a acreditar que as ficções interativas substituiriam os livros. Com a popularização dos smartphones e novas ferramentas de compartilhamento, muitas criadoras de ficção interativa pensaram que o interesse iria ressurgir, mas isso não se concretizou. Houve vários momentos em que as ficções interativas pareciam que iriam finalmente encontrar um lugar mais estável na cultura. Mas esses movimentos foram de curta duração ou muito localizados.
Novas ferramentas (como o Twine, criado em 2009) prometem aproximar novamente o público amplo da criação de jogos de texto. Pessoas como Emily Short, autora premiada e co-criadora do sistema Inform 7[46], continuam a contribuir para o avanço das ficções interativas, tanto em termos das técnicas narrativas quanto dos temas explorados e tecnologias envolvidas. A IFComp se fortaleceu desde 2016, quando passou a ser organizada pela recém criada Fundação de Tecnologia de Ficção Interativa[47]. A esperança de que o interesse pelas ficções interativas retorne ainda não morreu. O episódio Bandersnatch[48] (2018) da série Black Mirror reacendeu essa esperança, introduzindo um público novo ao conceito de ficção interativa. Nesse mesmo ano a Netflix anunciou seu interesse em mais séries interativas.
Teoria das ficções interativas
Esquema traçado por Borges para explicar a estrutura do livro April March
Este capítulo é baseado num trabalho de filosofia apresentado no III Colóquio de Ficção de Filosofia da UNB, com o título: Ficções interativas: obras literárias com estrutruras narrativas complexas.
O conceito de uma estrutura narrativa complexa já estava esboçado em 1941, na obra de Jorge Luís Borges. No conto Exame da obra de Herbert Quain, Borges descreve a estrutura regressiva e ramificada de um livro, imaginado por Borges, chamado April March:
“Treze capítulos integram a obra. O primeiro relata o ambíguo diálogo de alguns desconhecidos numa estação. O segundo conta os acontecimentos da véspera do primeiro. O terceiro, também retrógrado, conta os acontecimentos de outra possível véspera do primeiro; o quarto, os de outra. Cada uma dessas três vésperas (que rigorosamente se excluem) ramifica-se em outras três vésperas, de índole muito diversa. A obra total compõe-se, pois, de nove romances; cada romance, de três longos capítulos.” (BORGES, 1941)
Borges identifica a estrutura de April March como própria de um jogo, embora permaneça sendo um romance: “Ninguém, ao julgar esse romance, nega-se a descobrir que é um jogo” (BORGES, 1941). Para ilustrar a estrutura do livro, Borges incluiu um esquema que o representa. Neste esquema podemos notar que há um único final (z), mas diversos inícios e desenvolvimentos possíveis.
Já no conto Jardim das veredas que se bifurcam, Borges descreve um livro que teria uma estrutura ramificada progressiva. Nele, os possíveis futuros se desdobram a cada capítulo, criando diferentes finais. “Em todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma e elimina as outras; na do quase inextricável Ts’ui Pen, opta – simultaneamente – por todas. Cria, assim, diversos futuros, diversos tempos, que também proliferam e se bifurcam” (BORGES, 1941).
Cerca de vinte anos depois do que Borges descreveu seriam comercializados os primeiros livros-jogos. Livros-jogos são ficções ramificadas, compostas de parágrafos numerados, em que quem lê pode escolher por um dos parágrafos que se conectam, percorrendo assim um caminho por entre as diversas possibilidades de narração. Os livros-jogos têm uma estrutura semelhante à descrita por Borges, mas um pouco mais complexas, porque os parágrafos também podem se referir entre si de forma circular, formando ciclos infinitos (loops fechados). Como num labirinto, é possível ficar dando voltas sem sair do lugar se você não escolher o parágrafo certo. Isto significa que a ramificação pode ser tanto progressiva quanto regressiva. Chamemos isso de estrutura ramificada complexa.
Estrutura ramificada complexa de um livro-jogo
Os livros-jogos geralmente são considerados jogos porque possuem condições de vitória: Há cursos de ação que levam a um final bem sucedido, e outros que levam a um final insatisfatório. Alguns livros-jogos usam outras mecânicas de jogo, como jogadas de dados para resolver conflitos com base em probabilidade. A pessoa lendo é chamada a lançar dois dados, por exemplo, e seguir para o parágrafo indicado pelo resultado do dado, criando variação aleatória no fluxo narrativo. Assim temos uma narração interativa onde a escolha de quem lê é apenas um dos fatores que conectam os pontos de narração, mas nem sempre o único fator.
A ficção interativa tem uma estrutura semelhante a dos livros-jogos, porém é ainda mais complexa, pois se trata de um software com interface textual no qual a narrativa avança na medida em que se entram comandos de texto que representam as ações da personagem. De acordo com Carolyn Miller (2004), isso se diferencia do hipertexto (e dos livros-jogos), porque a interatividade não se limita à seleção entre opções explicitadas no texto, mas exige que a leitora componha com suas palavras uma ação que ela acredita poder gerar a resposta mais significativa dentro da narrativa, tornando-se cocriadora da narrativa.
Como um software, que pode ser visualizado enquanto código ou enquanto aplicativo, a ficção interativa tem duas formas. A primeira pode ser chamada de plano narrativo, e a segunda de expressão. O plano narrativo define as possibilidades de interação. A expressão é o modo como a obra é lida, sendo processual e existindo apenas enquanto atividade. A expressão é o plano narrativo “filtrado” por um interpretador e apresentado de forma interativa.
Os elementos básicos de uma ficção interativa são os objetos e as localidades. A autora descreve cada localidade e objeto, decide como as localidades se conectam, a localização inicial de cada objeto e o que pode ser feito com cada objeto em cada localidade. Nem todo elemento adicionado no plano narrativo afeta o resultado da expressão, porque a autora pode adicionar um elemento com o qual não iremos necessariamente interagir para chegar ao final. Os elementos da ficção interativa existem em potência, não necessariamente se atualizando para todas as pessoas lendo a obra.
Quem lê o plano narrativo não experimenta a obra, embora veja todos os seus elementos. Logo, o que a autora produz não é exatamente uma narrativa, mas as condições de possibilidade de um eixo narrativo. A narrativa não é determinada pelo plano narrativo, mas pela interação entre quem lê e a obra.
O que se passa na sua mente enquanto lê uma ficção interativa faz parte da narrativa implícita, porque representa o raciocínio da personagem. A interpretação que se faz da narrativa a afeta decisivamente. Os elementos não se manifestam por si sós, e alguns dependerão de um processo de aprendizagem.
O significado da interação com um mesmo elemento pode ser diferente para cada pessoa na medida em que a motivação é subjetiva. Uma situação descrita pode exigir esforço criativo na construção de uma solução viável, e as ferramentas oferecidas pela autora podem ser usadas de tantas formas diferentes que nem mesmo ela seja capaz de pensar em todas as soluções possíveis.
Quem lê desempenha o papel de co-autora da narração. O sentido das descrições não é simplesmente interpretado, mas construído pela sua ação. A identificação com a personagem também afeta a narrativa. A ficção interativa é geralmente narrada na segunda pessoa.
A narrativa interativa precisa da subjetividade. Nessa atividade, quem lê pode acabar revelando traços de sua subjetividade que estavam ocultos. Essa imersão enquanto participante só é possível porque a estrutura narrativa é complexa o suficiente para dar ao menos a ilusão de liberdade de ação, que aproxima a narrativa de uma realidade simulada.
A estrutura narrativa complexa não é necessariamente algo que se afasta da literatura em direção ao entretenimento interativo. As ficções interativas também podem ser obras literárias, se considerarmos que o valor de uma obra não está na sua estrutura, mas no seu conteúdo. Teoricamente, qualquer tipo de conteúdo pode se encaixar numa estrutura interativa.
Essa estrutura também pode ser descrita como um padrão de rede. O que eu chamei de plano narrativo seria a forma inerte e a expressão seria a forma ativa. Esses termos vieram da teoria da informação, que é aplicada tanto na genética quanto na computação. Na filosofia clássica, seria a ditinção entre potencialidade e ação. A forma inerte é a forma produzida pela autora. A forma ativa é a forma como ela é experimentada: sua manifestação ou atualização.
A forma ativa é uma expressão variável da forma inerte, o que também remete a várias teorias da filosofia contemporânea. A leitora só experimenta diretamente a obra quando participa dela. Ela adquire responsabilidade parcial pelos rumos que a narrativa toma, e por isso se torna coautora.
As regras que organizam o funcionamento da parte expressiva da obra permanecem ocultas na forma inerte, assim como o código de um software permanece oculto pela interface de um programa. Em uma ficção tradicional, a autora pode nos esconder informações que fazem parte da narrativa como ela a pensou, mas esta permanece uma realidade imutável. A autora pode até mesmo adicionar efeitos de neutralidade ao relato de um evento para que cada leitora faça seu próprio julgamento. Mas numa ficção interativa, a maneira com que se desvela um mistério é muito mais dependente da intersubjetividade entre leitora e autora do que da interpretação do texto.
Por exemplo, num conto interativo ambientado num quarto, suponha que a autora definiu que existe uma caixa embaixo da cama. O texto inicial poderá não dar indicação alguma disso, descrevendo apenas um quarto com uma cama. A leitora só descobre a caixa quando, ao imaginar que possa haver algo embaixo da cama, decide verificar. Se ela não faz essa escolha, a personagem não verá caixa, e a caixa não existirá naquela narrativa, embora sempre estivesse lá.
Quando alguém resolve olhar embaixo de uma cama numa ficção interativa, esta ação é motivada por uma curiosidade própria. O significado daquela ação será diferente para cada leitora, na medida em que seus motivos para escolher esta ação em particular são subjetivos. É comum que em conversas entre jogadoras falando sobre a mesma ficção interativa, uma diga: “na minha história aconteceu isso, eu fiz assim, como você fez?”. Ou ainda: “na primeira vez eu fiz isso, e na segunda eu tentei outra coisa”.
Isso significa que o envolvimento com a narrativa precisa ser muito maior para que ela possa se desdobrar. A narrativa, nesse sentido, não é dada passivamente à leitora. Ela deve procurá-la por tentativa e erro. Certos desafios podem exigir raciocónio lógico, memória ou capacidade de intepretação.
A ficção interativa permite um diálogo: depende da recepção e provoca uma resposta. A autora pode verificar a compreensão da leitora antes de passar para outra parte da narrativa. A psicologia tem usado formas de ficção interativa para envolver indivíduos em situações imaginadas e analisar suas escolhas.
As características próprias das ficções interativas também podem ser usadas como ferramentas educacionais. O conceito já é conhecido e aplicado, embora não extensivamente.
Referências:
BORGES, Jorge Luís. Ficções. In: Obras completas de Jorge Luis Borges – volume 1. São Paulo: Globo, 1999. Pág. 34-50.
MILLER, Carolyn Handler. Digital storytelling: a creator’s guide to interactive entertainment. Elsevier, 2004. Pág. 55-69.
[3] https://play.google.com/store/apps/details?id=de.onyxbits.textfiction&hl=pt_BR
[4] https://ifdb.tads.org/viewgame?id=ju778uv5xaswnlpl
[5] https://ifdb.tads.org/viewgame?id=gdl05tnyqjja5vc6
[6] https://ifdb.tads.org/viewgame?id=t61i5akczyblx2zd
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