Como entender e responder o anarcocapitalismo?

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Resumo de uma pesquisa filosófica sobre anarcocapitalismo.

Como Camila Jourdan e Acácio Augusto recentemente escreveram, “libertário é sinônimo de anarquista”. O anarquismo é fundamentalmente anticapitalista, pois “Estado e capitalismo estão intimamente relacionados” e a pretensão de “abolir um sem abolir o outro sempre acabará em restauração da parte supostamente abolida”. Tanto a ideia de Estado mínimo quanto de capitalismo sem Estado não fazem sentido no anarquismo, porque “poder econômico sempre foi e sempre será poder político”. Uma sociedade anarquista é uma sociedade CONTRA o Estado, e por isso é “incompatível com as diferenças sociais, políticas e econômicas que constituem o capitalismo”.

Por que então pessoas que se consideram libertárias pensam que o anarquismo pode ser capitalista, ou se misturar com a defesa do livre mercado ou da propriedade privada dos meios de produção?

Anarcocapitalistas (ancaps) entendem os conceitos de capitalismo e Estado de um modo peculiar. Para criticar o anarcocapitalismo, é preciso compreender o pensamento de autores como Ayn Rand, Rothbard, David Friedman e Hoppe. Ao conhecer melhor esses autores, eu percebo que o fundamento filosófico do anarcocapitalismo está muito mais presente em nossa cultura do que parece. Logo, não basta dizer que é uma contradição ou algo que “não existe”. É preciso entender o que o anarcocapitalismo realmente afirma, para saber como respondê-lo.

Em primeiro lugar, o que é o anarcocapitalismo? Segundo Alexandre Porto, o anarcocapitalismo é um sistema ético e jurídico baseado na propriedade privada. Ele não reduz a finalidade da vida humana ao acúmulo de propriedade, nem reduz a totalidade da ética humana à lei da propriedade. Mas é um sistema logicamente necessário para evitar a violação da propriedade.

As premissas básicas do anarcocapitalismo são:

  1. Indivíduos existem e agem.
  2. A ação humana é o uso de meios para alcançar fins.
  3. Esses meios são escassos.

Para que o anarcocapitalismo faça sentido, essas premissas precisam ser irrefutáveis. Delas, se conclui que conflitos de interesses são inevitáveis. Uma premissa secundária seria que conflitos podem ser resolvidos de apenas dois modos: pela violência ou pela racionalidade/ética . As leis de propriedade seriam os critérios universais para evitar o uso da violência nesses conflitos, determinando como os meios podem ser usados do modo mais racional/ético possível, em qualquer situação. Sem leis de propriedade logicamente válidas em si mesmas, o que prevaleceria seria uma lei contingente, que em última instância se torna lei do mais forte, ou seja, depende do uso da violência. Vamos analisar cada uma das premissas:

Indivíduos existem?

Existem diversos argumentos que problematizam o conceito moderno de indivíduo e individualidade. Alguns autores consideram que “indivíduo” é uma invenção moderna. Outros, que é uma invenção da filosofia ocidental antiga. De todo modo, o conceito de indivíduo pode ser colocado em xeque por algumas referências antropológicas (sociedades indígenas sem conceito de indivíduo) e psicológicas (crítica ao conceito de self individual) muito pouco discutidas no meio ancap. Além disso, ao defender a existência de seres individuais, é possível que o ancap acabe reproduzindo algum discurso que na verdade é uma defesa do individualismo, que é bem diferente e bem mais controverso nas ciências sociais. Embora o individualismo metodológico possa ter alguma aplicação, ele geralmente é extrapolado ou aplicado de modo equivocado nos argumentos anarcocapitalistas. É importante notar também que anarco-individualistas compreendem o conceito de indivíduo de um modo diferente, e não defendem o capitalismo.

Existe ação individual?

Mesmo considerando que indivíduos existem, é possível questionar se existem ações individuais, ou seja, se alguém faz algo sozinho. Também há referências na anarquia e na sociologia que permitem compreender essa crítica, como o conceito de apoio mútuo e cooperação em Kropotkin.

A ação humana é o uso de meios para alcançar fins?

É possível definir a ação humana como “uso de meios para realização de fins”? Muita coisa pode estar implicada nessa premissa. Por exemplo, a teoria da ação racional, da intencionalidade da ação, da ação teleológica, da racionalidade instrumental, etc… Em geral, ao tentar explicar o que isso significa, ancaps podem recorrer à praxeologia de Mises ou à teoria da ação de Rothbard ou de Hoppe. Vou falar mais sobre elas mais adiante.

Os meios são escassos?

A premissa da escassez é central no pensamento econômico liberal, pois mesmo considerando a verdades das premissas anteriores, se os meios não fossem escassos nenhuma filosofia da propriedade privada seria necessária. Se os meios são escassos, isso significa que haverão conflitos entre duas ou mais pessoas disputando ou competindo por esses meios. E por isso precisaríamos de um princípio da não agressão e do conceito de propriedade privada como única alternativa civilizada para resolver esses conflitos.

Embora Alexandre Porto afirme que a escassez está pressuposta no próprio conceito de ação humana, pois sem recursos escassos não seria sequer preciso agir, a abundância de recursos não implica necessariamente na ausência de ação humana. Como Marshal Sahlins demonstra em sua antropologia econômica, a escassez tem uma origem histórica. Os povos mais antigos do mundo tinham uma economia de abundância, não porque tinham meios infinitos, mas porque suas necessidades eram limitadas. A escassez é uma invenção da civilização, ela multiplica as necessidades para além dos meios naturalmente disponíveis. A premissa da escassez, embora central, é uma das mais frágeis, mesmo sendo reproduzida também no pensamento econômico de esquerda.

Se os meios não são necessariamente escassos, então o anarcocapitalismo está refutado? Não exatamente. A abundância de recursos não implica na ausência de conflitos. Mesmo em sociedades sem propriedade privada dos meios de produção haviam conflitos. A resolução desses conflitos não exclui totalmente o uso da violência. O argumento ancap nesse ponto pode ser facilmente transformado num argumento contra o uso injustificado da violência (como defende Raphael Lima). Se o objetivo da ética anarcocapitalista é evitar o uso injustificado da violência, o problema pode se tornar um pouco mais complexo de entender e responder.

A propriedade privada é natural?

No texto A origem da propriedade privada e da família, Hoppe elenca alguns critérios para definir o que é humano, que estão nitidamente distantes da compreensão antropológica da maioria dos autores contemporâneos. Ele lê a ação humana pela lente da teoria econômica da escassez, que é bastante frágil. Hoppe afirma que os elementos externos que nos “limitam” devem ser colocados sobre “controle”. Ele justifica a propriedade privada com base numa lei supostamente natural: “Foi ao controlar a terra que o homem de fato começou a produzir bens ao invés de meramente consumi-los”. Aqui, diversas críticas à ideologia do progresso, da racionalidade instrumental ou da relação de domínio sobre a natureza podem servir de resposta.

Com relação à família, ao invés de falar de patriarcado, Hoppe pretende explicar a origem da família nuclear como se esta fosse uma necessidade econômica natural da humanidade. A crítica ao patriarcado parece ausente na visão de Hoppe.

É possível uma ética analítica da propriedade?

A filosofia moral do anarcocapitalismo compreende as relações de propriedade por meio de afirmações analíticas, válidas independentemente do contexto. Se a lei de propriedade não fosse universalmente válida, ela precisaria de interpretação de acordo com o contexto, o que levaria a um direito positivo, um corpo jurídico ou uma instância superior aos indivíduos para julgar os litígios (agressões), ou seja, um tipo de autoridade e de coerção social. Para anarcocapitalistas, isso implicaria na submissão dos indivíduos ao interesse coletivo, impondo uma relação de modo unilateral, não-voluntário e pelo uso da violência. Os únicos direitos aceitos pelo anticapitalismo são direitos negativos, ou seja, proibições (não roubar, por exemplo). Essa conclusão é justificada por uma visão que não pode admitir a complexidade do fenômeno humano, porque está concentrada na pureza de uma verdade analítica, que só existe num plano ideal. Não há garantia de que uma sociedade ancap seria melhor que a nossa, mas o objetivo dessa filosofia não é necessariamente “melhorar” a sociedade, e sim possibilitar que ela seja “mais ética”, ou seja, mais coerente com esse sistema ético que eles julgam como necessariamente verdadeiro.

Essa posição, porém, é extremamente controversa na filosofia. Segundo a enciclopédia de filosofia Routledge, a meta-ética ou ética analítica é distinta da ética normativa, o que significa que dela não se pode derivar um direito negativo. Ela procura entender se um julgamento moral deriva de um fato da experiência ou não. Existem basicamente dois entendimentos sobre isso, o cognitivismo  e não-cognitivismo. Isso significa que apresentar a ética anarcocapitalista como “analítica” não significa que ela não pode ser criticada. Alguns ancaps pedem que ela seja refutada com fatos, o que é logicamente impossível se eles partem de uma meta-ética não cognitivista. Logo, utilizam um recurso retórico para se blindar da crítica, quando o que deveria ser colocado em questão é o próprio sentido de tratar a ética da propriedade como uma meta-ética, ao invés de uma ética normativa.

É possível abolir o Estado sem abolir o capitalismo?

O anarcocapitalismo busca a abolição do Estado porque o enxerga como a negação do direito à propriedade ao invés da instância que legitima a propriedade, na medida em que depende de coerção social e monopólio do uso da força para funcionar. Nesse ponto, diversos teóricos das ciências humanas já teceram críticas aprofundadas, seja baseando-se na Teoria Geral do Estado, no materialismo histórico ou na filosofia política. A conclusão comum é que não é possível abolir o Estado sem abolir estruturas que possibilitam acúmulo de poder econômico de modo desigual.

A propriedade privada pode ser legitimada somente pela ética?

Na teoria ancap, a legitimação da propriedade ocorre basicamente de dois modos:

  1. A apropriação original, na qual algo que não tinha dono passa a ter dono, ocorre pelo primeiro uso. O uso é comprovado pela ação de “cercar socialmente” a propriedade, colocar seu nome nela, por exemplo, indicando que ela tem dono.
  2. A transferência de propriedade. Ela deve ser voluntária, podendo implicar em troca voluntária. As leis que emergem das trocas voluntárias formam o mercado.

A exemplo da questão sobre a ética analítica, esse tipo de legitimação da propriedade não leva em consideração a complexidade da realidade social. Não considera, por exemplo, todos os conflitos passíveis de ocorrer no processo de apropriação original ou na transferência de propriedade, que não podem ser resolvidos dentro da ética ancap em si. Em grupos e fóruns de ancap é comum encontrar discussões sobre o que aconteceria nesses casos. A diversidade de respostas a essas hipóteses é tão grande que sugere que não existe de fato um conjunto definido de compreensões éticas e filosóficas sobre os conflitos de propriedade no anarcocapitalismo. Nem os teóricos nem os sujeitos que se consideram “praticantes” dessa ética concordam entre si sobre o que deveria ser feito em casos que seriam extremamente comuns na sociedade que eles defendem. Mais do que isso, é muito comum que eles relativizem outros princípios éticos bastante aceitos na nossa sociedade para privilegiar seus próprios princípios. Assim, referências mais consistentes da ética podem demonstrar que a “ética ancap” é extremamente frágil e irrealista.

O princípio da não agressão diminuiria a violência?

Quando o princípio da não agressão é ferido, ocorre uma violação ou crime. O praticante da violação não pode mais ser protegido pela lei da propriedade, perdendo parcialmente ou totalmente o direito sobre sua propriedade (incluindo seu próprio corpo), o que significa que pode ser punido. Rothbard chega a propor que o criminoso pode ser escravizado ou excluído da sociedade. O professor André Guimarães Augusto afirma que anarcocapitalistas não estão propondo ausência de coerção. A coerção é justificada quando dirigida a quem procura restringir o uso da propriedade privada. Isso significa que “a coerção é para quem pode pagar”, e implica em “dominação direta de classes”. Se há dominação de classes, então há Estado.

Na perspectiva do anarcocapitalismo, o contrato social que dá origem ao Estado é fundamentalmente contraditório e injusto porque é coletivo. Contratos em si são legítimos, mas só quando estabelecidos entre indivíduos, sem uma instância superior para legitimar esse acordo. Isso inclui a ordem legal representada no poder de legislar, julgar e punir. A punição numa sociedade anarcocapitalista seria legitimada por uma lógica universal, ou seja, ela não seria regulada por uma instância formal. As pessoas que melhor pudessem cumprir esse ideal de “justiça retributiva da punição” poderiam ser contratadas para fazê-lo. Nas palavras de André Augusto, “milícias privadas” para realizar uma justiça do tipo “olho por olho, dente por dente”. Aqui, as referências que serviriam de resposta estão na teoria jurídica do abolicionismo penal, na sociologia da violência ou na filosofia política, em especial na área de biopolítica e nas discussões sobre estado de exceção e microfísica do poder.

O corpo é uma propriedade?

Um dos pontos centrais da filosofia ancap é o conceito de autopropriedade. Cada pessoa é dona do seu próprio corpo, esta é sua primeira propriedade. Como toda propriedade é adquirida com o uso de outra propriedade, toda propriedade é como uma extensão da primeira propriedade, o corpo. Roubar uma propriedade é como roubar uma parte da vida de alguém, por isso é inaceitável em qualquer situação. A violência só é aceitável como reação a uma violência que já foi iniciada. Há vários problemas filosóficos nesse ponto, incluindo o excepcionalismo humano (somente o corpo humano é tratado como autopropriedade) e a discussão sobre a dicotomia mente-corpo (o corpo não é propriedade da pessoa, a pessoa é um corpo).

Você pode ferir ou matar quem tenta roubar sua propriedade, porque ao fazer isso a pessoa nega o direito à propriedade e não pode ser defendida por esse mesmo direito, enquanto você está defendido pelo direito de autodefesa. Já falamos sobre os problemas práticos disso, já que não há critérios objetivos para definir quem está certo caso alguém decida mentir ou falsificar uma evidência de propriedade. Uma ética que identifica o direito à vida e à liberdade com o direito à propriedade vai inevitavelmente reduzir pessoas a objetos, contradizendo um princípio ético do valor intrínseco da vida humana.

Além disso, embora teoricamente as pessoas possam contratar agências de segurança privada, como evitar que a pessoa com maior poder econômico “compre sua legitimidade” ao contratar serviços de segurança privada mais “eficientes”? Uma das críticas mais comuns ao anarcocapitalismo é que ele resulta, na prática, num retorno ao feudalismo.

O mercado é oposto ao Estado?

Na lógica ancap, Estado e mercado se apresentam como forças incompatíveis e contrárias. O Estado representa uma ordem autoritária se impondo sobre indivíduos, enquanto o mercado representa as regras lógicas necessárias à sociedade organizada. A discussão sobre até que ponto o mercado é incompatível com algum grau de interferência estatal, ou até que ponto pode e deve regular a si mesmo sem nenhuma interferência externa, é o principal ponto de conflito entre as duas principais vertentes do libertarianismo: o minarquismo e o anarcocapitalismo. Vamos avaliar as diferenças teóricas entre ambos a seguir.

Primeiro, é preciso dizer que o anarcocapitalismo também possui divisões internas. Enquanto Rothbard defende um sistema universal de direitos que pode ser derivado da “lei natural”, David Friedman pretende combinar o anarcocapitalismo com a economia neoclássica, e acredita ser possível justificar o anarcocapitalismo com uma teoria da eficiência econômica ao invés de uma “lei natural”.

Minarquistas e anarquistas de mercado

Atualmente, o minarquismo é a corrente majoritária do libertarianismo. Ela defende a minimização do Estado, enquanto o anarcocapitalismo defende a abolição do Estado. Para entender a diferença, é preciso compreender outras divisões entre os liberais.

Para economistas como Hayek, a sociedade humana possui uma ordem espontânea, emergente e auto-organizada. Esta ordem emerge da combinação dos interesses de indivíduos, mesmo que estes não estejam intencionalmente tentando criar ordem. A sociedade é regida pelo conjunto de comportamentos emergentes. A economia seria complexa demais para ser socialmente planejada. A intenção de organizar uma sociedade de modo planificado implica sempre numa opressão. O controle econômico produz apenas servidão, ineficiência e irracionalidade. O anarquismo libertário tem outra visão sobre o problema do cálculo econômico, e pode defender outros critérios de eficiência e racionalidade da organização da produção, pois não acredita que o mercado seja tão espontâneo ou racional quanto os liberais afirmam.

Ludwig von Mises, professor de Hayek, foi um dos grandes defensores do liberalismo clássico. É um economista da escola austríaca, conhecido pela sua contribuição com a praxeologia. Ele influenciou Murray Rothbard, que partiu para uma teoria mais heterodoxa, e é considerado por muitos o principal teórico do anarcocapitalismo. Rothbard defendeu a apropriação do termo “libertário”: tirá-lo do contexto histórico do socialismo libertário e levá-lo para a direita. Ele também defendeu o revisionismo histórico como estratégia para justificação teórica do libertarianismo. Ele e Hoppe defenderam teorias jurídicas fundadas no direito de propriedade, com algumas diferenças. Foi Rothbard que afirmou que “o capitalismo é a maior expressão do anarquismo, e anarquismo é a maior expressão do capitalismo”, enquanto Hoppe se considera um anarcocapitalista paleolibertário, ou seja, ele mistura elementos do conservadorismo cultural com o libertarianismo, defendendo, por exemplo, a superioridade da monarquia sobre a democracia.

A praxeologia, um método de análise usado no libertarianismo, foi resumida por Mises da seguinte forma: “A ação é a vontade posta em funcionamento, transformada em força motriz; é procurar alcançar fins e objetivos; é a significativa resposta do ego aos estímulos e às condições do seu meio ambiente; é o ajustamento consciente ao estado do universo que lhe determina a vida”. Em outras palavras, a finalidade da ação é sempre a satisfação do desejo. Seguindo essa ideia, ancaps enxergam a economia a partir da vontade individual. O efeito da junção de vontades individuais díspares é o mercado, e o capitalismo de livre mercado seria o melhor modo de evitar as forças coletivas e sociais que ameaçam a liberdade individual, pois o coletivo para eles não parte da livre associação de indivíduos, e sim a nega.

Diferenças entre as correntes liberais

No liberalismo clássico, se o volume da riqueza de um indivíduo foi totalmente adquirido sem ferir o direito de propriedade de ninguém, então houve mérito, ou seja, aquela propriedade é justa não importa o quão grande seja. Essa perspectiva econômica não julga a riqueza de alguém pelo tamanho, pela comparação, pelo efeito na sociedade ou pela natureza dessa propriedade, mas unicamente pelo modo com foi adquirida. Sendo assim, a meritocracia seria um modelo no qual o poder está concentrado nas mãos de quem o mereceu, quem acumulou esse poder jogando dentro das regras de mercado.

O liberalismo de Keynes defendia a necessidade do Estado na regulamentação do mercado como uma resposta à crise econômica dos EUA. A Escola de Chicago (economia neoclássica) criticou o keynesianismo e adotou, com limitações, ideais monetaristas no Chile, durante a década de 1970. Estes ideais posteriormente foram adotados, também com limitações, na década de 1980, por Margaret Thatcher na Inglaterra (thatcherismo) e por Ronald Reagan nos Estados Unidos (reaganomics). Alguns economistas liberais reagiram à Escola de Chicago, como James Tobin. Ele defendeu um liberalismo com uma face mais humana, sugerindo criar impostos sobre transações financeiras, como o CPMF. Joseph Stiglitz, um neokeynesiano, criticou o chamado fundamentalismo de livre-mercado e a teoria da mão invisível. Para ele, o Estado seria responsável pelo equilíbrio de mercados.

Outros exemplos de liberalismo são o Ordoliberalismo Alemão e o chamado Liberalismo Social. O economista Gunnar Myrdal, teórico inspirador do Estado do bem-estar social sueco, ironicamente, dividiu o Prêmio “Nobel” de Ciências Econômicas, em 1974, com seu maior rival ideológico, von Hayek, cujo livro “O Caminho da Servidão” tornou-se referência para os defensores do capitalismo laissez-faire, onde o investimento social é trocado pela livre concorrência.

PS. O "Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel" não é um prêmio Nobel, ele apenas tem Nobel no nome. Ele foi criado para promover ideais liberais com apoio da Sociedade Mont Pèlerin, fundada por Hayek, Mises e Friedman, entre outros.

Escola de Chicago e Escola Austríaca

A Escola Austríaca é uma escola de economia heterodoxa, baseada no individualismo metodológico e na teoria subjetiva do valor. Nesse sentido, o anarcocapitalismo está mais próximo da Escola Austríaca, embora a Escola de Chicago também se oponha à economia marxista.

A metodologia da Escola Austríaca é fundada no individualismo. Ela procura explicar fenômenos econômicos por meio da ação de indivíduos, não de grupos ou coletivos. Os julgamentos e escolhas são individuais, baseadas em gostos e preferências, ou seja, “avaliações subjetivas de bens e serviços determinam a demanda”. Os custos que refletem outros usos possíveis de um bem são descartados do cálculo. Isso é chamado de marginalismo: o valor é determinado pelo consumidor final, e nada mais. Mises chama isso de “soberania do consumidor”, que só pode ser alcançada evitando a interferência governamental no mercado. Isso também implica em individualismo político: a liberdade econômica leva à liberdade política e moral, minando o poder do Estado e realizando um “capitalismo de verdade”. Por causa dessa visão, muitos teóricos acreditam que mesmo países considerados como potências capitalistas, como os EUA, estariam dominados pelos princípios econômicos do socialismo.

O diferencial do anarcocapitalismo é que este possui uma teoria ética e do direito que elimina o direito positivo, ou seja, a liberdade individual depende de que ninguém seja obrigado a fazer coisa alguma. O único direito legítimo seria o direito negativo: regras sobre o que não pode ser feito. Não se trata apenas de uma lei econômica, mas de uma teoria jurídica da ação humana. Uma lei que é ética e logicamente necessária, não pode ser negada sem auto-contradição. Como já afirmado, a possibilidade de uma ética logicamente necessária para a ação humana é filosoficamente controversa, e mais ainda se ela necessariamente está relacionada aos conceitos de propriedade, indivíduo e escassez.

Críticas mutuamente excludentes?

As críticas dos minarquistas aos anarcocapitalistas, e as respostas destes a essas críticas, fazem parte de uma longa discussão, e podem ser bem contraditórias, combinando diversas vezes com a crítica da esquerda. Por exemplo, minarquistas afirmam que é preciso alguma estrutura estatal para manter uma sociedade de massas, de outro modo é simplesmente inviável sequer manter o direito à propriedade. Instituições que na prática são estatais tendem a se formar mesmo na ausência formal de Estado. Para eles, essa posição moderada não pode ser confundida com a “idolatria esquerdista ao Estado”, que supostamente pretende resolver todos os problemas sociais por meio de um Estado forte.

Anarcocapitalistas denunciam que minarquistas estão caindo numa armadilha porque todo Estado mínimo tende se tornar um Estado máximo e jamais seremos realmente livres enquanto não nos livrarmos do Estado por completo. Eles acusam anarquistas anticapitalistas de se oporem ao livre mercado por pura desinformação, uma vez que o mercado só é ruim quando dominado pelo corporativismo, ou seja, justamente por causa da interferência do Estado ou de um interesse semelhante ao do Estado.

Algumas críticas equivocadas ao anarcocapitalismo

Teoricamente, os anarcocapitalistas não necessariamente se opõem à propriedade coletiva dos meios de produção, desde que isso seja feito por consenso geral, ou seja, que todos concordem individualmente com isso. Anarcocapitalistas interpretam o voluntarismo como uma base fundamental para a vida em sociedade, o que significa que nada é obrigatório, tudo é permitido desde que voluntário e consensual.

Logo, criticar apenas a propriedade privada dos meios de produção ou o acúmulo injusto de capital não é uma crítica forte, pois embora o capitalismo atual seja fundado no acúmulo de propriedade privada dos meios de produção, o anarcocapitalismo não está fundado necessariamente no que atualmente se entende como capitalismo. Anarcocapitalistas tendem a achar que o capitalismo de verdade está quase ou totalmente ausente no mundo hoje, já que capitalismo para eles não implica em exploração da força de trabalho ou corporativismo, mas sim nas “trocas voluntárias”, “livre concorrência” e “livre associação”. A propriedade de meios que dependem da cooperação entre diversos indivíduos só seria válida se essa cooperação for voluntária, assim como o uso de uma propriedade que afeta outros indivíduos, como por exemplo uma fábrica que polui a atmosfera terrestre.

Os trabalhadores precisam concordar em trabalhar na fábrica por determinado salário, e as pessoas que pagam esse salário precisam concordar em pagá-lo. Teoricamente, não haveria nada para forçar um preço ao empregador ou ao empregado, seria tudo estabelecido por acordos entre indivíduos, o que significa que seria regulado pelas variações espontâneas do mercado.

Alguns liberais tendem a ver a liberdade como um meio para outros fins, enquanto ancaps podem entender que a liberdade é um fim em si mesmo. Além disso, liberais podem querer cortar gastos sociais com argumentos econômicos, enquanto para anarcocapitalistas se trata de uma questão de princípios. Seria um vício moral trocar sua independência por “direitos” concedidos pelo Estado. Pessoas em necessidade devem ser ajudadas voluntariamente por outras pessoas, e não por obrigação, e por isso o “bem-estar social” não faria sentido independente do benefício real que produza.

Quanto ao problema ético da distribuição de recursos, a perspectiva anarcocapitalista é que um recurso pertence a quem chegar primeiro até ele e utilizar sua propriedade para adquiri-lo. Assim como na maior parte das perspectivas liberais, anarcocapitalistas partem da premissa econômica da escassez e do “homo economicus”. Mas não é a escassez que legitima a propriedade.

A ética anarcocapitalista dita que você não é obrigado a dividir as maçãs de uma macieira que é sua, mesmo que outras pessoas famintas implorem, mesmo que seja sua mãe ou seus filhos, mesmo que elas tenham plantado e cuidado da macieira (porém não tenham estabelecido relação de propriedade). Nada pode te obrigar a compartilhar o que é seu, exclusivamente seu. Se você decidir compartilhar, é por bondade e generosidade sua. E o anarcocapitalismo não está interessado em discutir a bondade e a generosidade das pessoas, ou mesmo se essas características subjetivas possuem funções econômicas. Ela é uma filosofia que não trata de outras questões morais, apenas da justiça da propriedade. A doação não faz parte de seus problemas. Vale enfatizar, essa ética não pode admitir contradição dependendo do contexto, ela deve ser necessariamente verdadeira.

Pode parecer cruel que uma pessoa não tenha direito de roubar um pão para alimentar seus filhos em hipótese alguma, mas na perspectiva anarcocapitalista isso produz um benefício geral. Uma vez que as pessoas querem sobreviver, e precisam sobreviver apenas com o que conseguem produzir, elas precisam tomar cuidado com as decisões que fazem. O que significa que, com o passar do tempo, as pessoas que tomam decisões melhores sobrevivem, as que tomam decisões erradas morrem. E isso para eles significa um acúmulo de conhecimento, uma evolução no processo de tomada de decisões, que nos leva a aprimorar nossas capacidades. Segundo José Geraldo Gouvêa, Ayn Rand partiu do darwinismo social “para argumentar que a ‘mão invisível’ do mercado regularia o egoísmo dos indivíduos de maneira a obter o resultado ótimo para a sociedade”. Logo, o que ancaps entendem por ética pode ser bem diferente do que geralmente se encontra nos estudos sobre ética.

Na minha experiência conversando com essas pessoas, eu diria que anarcocapitalistas não são necessariamente pessoas totalmente acríticas, doutrinadas ou zumbis que sofreram lavagem cerebral de um think tank liberal. Isso quer dizer que são capazes de compreender as críticas à sua ideologia e de fazer autocrítica. A acusação de que estão sendo doutrinadas não será muito efetiva. Os princípios liberais valorizam o exemplo e são contrários à ideia de interferir na vida de outras pessoas.

Críticas relevantes ao anarcocapitalismo, segundo os liberais

Embora na internet exista uma cultura de refutação, um debate sério não pode se reduzir uma série de refutações de ideias contrárias. Já que muitos ancaps acreditam serem capazes de “vencer debates”, o ideal seria providenciar um ambiente em que um debate realmente sério possa ocorrer, e permitir que eles defendam (propositivamente) suas ideias, mostrando exemplos e a aplicabilidade da teoria ao invés de inverter o ônus da prova (quem afirma é que precisa demonstrar suas razões) e ficar apenas na retórica. Quanto mais ancaps expõem o que realmente acreditam e aproximam isso com a realidade prática, mais os problemas e fragilidades se tornarão visíveis.

O ponto central para criticar o anarcocapitalismo é a bifurcação entre Estado e mercado. Existe uma crença de que o livre mercado é a única alternativa viável ao Estado. O mercado seria não apenas primário como também totalizante na manutenção de todas as relações sociais, e isso distingue o anarcocapitalismo de outras correntes liberais ou socialistas. Outros liberais podem até mesmo considerar o anarcocapitalismo como reducionista e determinista, pois consideram o mercado como apenas um dos aspectos da sociedade. Religião, ciência, ética e tecnologia, por exemplo, seriam outros aspectos da sociedade que não podem estar totalmente subordinados ao mercado. Anarcocapitalistas entendem o mercado como uma esfera especial cuja validade é axiomática.

Teóricos do anarcocapitalismo pretendem rejeitar qualquer associação entre o Estado e o mercado, mas não enxergam problema na existência de uma pessoa excepcionalmente boa em acumular propriedades. Para eles, isso acontece naturalmente, e seria uma violência construir um sistema para impedir estas pessoas de acumularem poder ou privilégios. Para eles, o mercado é natural, e a natureza é individualista, voluntarista e competitiva. Logo, a crítica a eles precisa levar em conta também o conceito de sociedade e natureza. Não basta uma crítica ao capitalismo atual.

Algumas críticas ao libertarianismo como um todo também se aplicam ao anarcocapitalismo, com algumas ressalvas. Segundo Alex Merced, professor de um curso sobre libertarianismo, as críticas mais relevantes ao libertarianismo são:

“O livre mercado aumenta a desigualdade humana”

A esquerda geralmente argumenta que o Estado é a única proteção da população pobre contra a exploração desregulada dos ricos e donos de empresas. Na perspectiva ancap, o livre mercado não pode ser culpado pela desigualdade, pois a desigualdade é um resultado inevitável da vida social, e a intervenção do Estado apenas aumenta a desigualdade ao impedir a livre competição. Então a menor desigualdade possível é a desigualdade natural que ocorre no livre mercado. O mercado é necessário para a sociedade, e não há outro modo de distribuir recursos sem interferir na liberdade individual que não seja pelas trocas voluntárias. Qualquer outro sistema de distribuição de recursos implicaria em coerção social e produziria um totalitarismo.

Porém, ancaps não necessariamente acreditam na total ausência de regulação de mercado. Alguns podem sugerir modelos de regulação descentralizada de mercado, ou seja, regulação independente de instituições estatais. Novamente, a ideia seriam regras surgindo de modo emergente das relações, sem nenhuma coerção social. A desigualdade natural deveria ser aceita como aceitamos a agressividade natural. Qualquer tentativa de reprimi-la implicaria numa erupção de desigualdade acumulada em algum momento. A crítica mais relevante, nesse caso, seria questionar o argumento que naturaliza a estrutura desigual da sociedade, que só é possível a partir do acúmulo de excedentes.

“A ética libertariana é individualista”

A ética ancap é um pouco diferente da ética da maioria dos liberais. Liberais tendem a defender o utilitarismo de Bentham e Stuart Mill. Já a moralidade ancap seria resumida assim: o que quer que não seja obrigatório é moral. Toda ação humana é moral contanto que não agrida ou atropele outra pessoa. Não se trata de fazer recomendações sobre como se deve agir, seria apenas uma teoria sobre quando é “apropriado” usar sua força: somente em autodefesa. Nunca é apropriado iniciar força sobre outros que não fizeram nada com você. Ancaps discutem como seriam os sistemas para lidar com pessoas que quebram essa regra. O princípio de não agressão apenas indica uma moldura para a consideração ética, mas não é uma filosofia moral completa. Diversas formas de moralidade poderiam se encaixar nessa moldura e não caberia ao anarcocapitalismo definir quais seriam mais apropriadas. Essa suposta neutralidade também é um problema discutido na crítica filosófica ao utilitarismo, e portanto parte da crítica ao utilitarismo poderia atingir também a teoria anarcocapitalista, mesmo que ancaps sejam contra o utilitarismo.

“O capitalismo é ambientalmente insustentável”

Enquanto perspectivas como o ecossocialismo acusam o industrialismo e o desenvolvimentismo capitalista de causar degradação ambiental, ancaps não se sentem na responsabilidade de resolver nenhuma questão ecológica. Uma vez que o anarcocapitalismo seria a própria teoria da liberdade humana, não há porque supor que seres humanos fazendo escolhas livres vão escolher o pior para o meio ambiente. As escolhas livres são naturais, pessoas livres sempre irão escolher o curso de ação de menor custo por causa de seu interesse inerente em eficiência, logo não faz sentido cobrar que as pessoas façam algo “ecológico”. Para alguns, os problemas ambientais seriam causados justamente pela ausência de propriedade privada sobre os recursos do planeta. Segundo uma concepção controversa conhecida como “tragédia dos comuns”, quando algo não é de ninguém e a responsabilidade de cuidar é compartilhada por todos, as pessoas tendem a esperar que outras façam o trabalho, e ninguém acaba fazendo, sendo assim aquele bem coletivo se perde. A solução para o meio ambiente, para ancaps, seria a privatização de todos os recursos naturais.

A maioria dos economistas tem dificuldades de aceitar as limitações ecológicas para o crescimento econômico. Por isso tendem a reduzir essa limitação a uma questão de desenvolvimento científico e tecnológico ou reorganização social. Se existem externalidades que não podem ser resolvidas pelo próprio mercado, isso implicaria numa limitação para a legitimidade da apropriação original. Numa sociedade complexa, a única instância capaz de realizar essa limitação seria uma autoridade do tipo estatal.

É importante não confundir a teoria do limite econômico com a teoria da escassez. A escassez implica em meios limitados para fins infinitos. O anarcocapitalismo afirma ao mesmo tempo a escassez e a ausência de limite do crescimento, pois embora haja concorrência pela posse de um recurso escasso, o uso dos recursos não pode ser limitado por uma instância superior. Isso é: nem todo mundo realizará sua vontade com o mesmo meio, mas tudo que existe pode servir para realizar a vontade de alguém. Não pode existir limite para o que pode se tornar sua propriedade, exceto o que é propriedade de outra pessoa.

Segundo a perspectiva da ecologia social, a administração de externalidades negativas (efeitos negativos que afetam a sociedade como um todo, como a poluição) é inviável sem uma representação coletiva, e este tipo de conflito de interesse acabaria exigindo a criação de autoridades para evitar o abuso privado ou coletivo dos recursos naturais numa sociedade industrial.

“O anarcocapitalismo é purista ou idealista demais”

O anarcocapitalismo, mais ainda que o minarquismo, apresenta uma visão de mundo que parte de princípios irrefutáveis, axiomas ou verdades analíticas. Na prática, a realidade é muito mais complexa que o modelo teórico. A liberdade que procuram é um ideal abstrato que nunca existiu. Por isso, o anarcocapitalismo acaba se juntando a outras ideologias puristas, como o nacionalismo branco (Stefan Molyneux e Richard Spencer são dois exemplos disso). A associação voluntária de indivíduos depende de mais do que um simples pacto de não agressão. Hoppeanos chegam a defender abertamente a “remoção física“, isso é, intolerância ativa a quem defende ideias que não combinam com os seus princípios éticos.

O ideal anarcocapitalista dificilmente funcionaria em economias grandes e complexas, que exigem algum grau de coordenação centralizada para funcionar de modo eficiente. Na prática, algumas empresas precisariam fazer o papel do Estado para coordenar a relação complexa entre produtores e consumidores finais.

Na esfera moral, conservadores defendem a necessidade do Estado para evitar a decadência moral e a perda da estrutura social. Anarcocapitalistas, no outro extremo, consideram que obrigações morais são eticamente inaceitáveis, porque atentam contra a liberdade humana, um valor inegociável. Na prática, porém, se a defesa de valores humanos se reduz à vontade de indivíduos, o resultado provável é a inexistência de valores comuns. A extrema relativização ou subjetivação de valores tem as mesmas consequências práticas da negação dos valores compartilhados, e nunca houve uma sociedade de massas em que valores comuns fossem mantidos sem algum tipo de autoridade socialmente estabelecida. Existe também um problema fundamental na distinção entre “obrigação” e “proibição”, que não é necessariamente objetiva ou analítica.

O que leva alguém a se tornar anarcocapitalista?

Se existem tantos argumentos contra o anarcocapitalismo, porque ele parece tão atraente e tão bem fundamentado para tantas pessoas? Há diversas formas de explicar isso, mas eu quero resumir algumas ideias anarcocapitalistas que, se tomadas separadamente, podem fazer muito sentido. Por exemplo:

“Quando você perceber que para produzir precisa obter a autorização de quem não produz nada; quando comprovar que o dinheiro flui para quem negocia não com bens, mas com favores; quando perceber que muitos ficam ricos pelo suborno e pela influência, mais que pelo trabalho; que as leis não nos protegem deles mas, pelo contrário, são eles que estão protegidos de você; quando perceber que a corrupção é recompensada e a honestidade se converte em auto-sacrifício, então poderá afirmar, sem temor de errar, que sua sociedade está condenada.” – Ayn Rand (1905-1982), filósofa russa-americana.

Apesar de ser criadora de uma corrente filosófica que não é reconhecida como tal pela comunidade acadêmica, e cometer diversos equívocos teóricos, Ayn Rand tinha uma capacidade retórica admirável, o que a fez atrair diversos seguidores. Mais ou menos como Olavo de Carvalho faz hoje. Com seu livro de ficção, “A revolta de Atlas”, ela conquistou a imaginação de diversas pessoas e influenciou uma geração de economistas e capitalistas americanos.

É possível entender que, quando esses autores falam de capitalismo e anarquismo, estão falando basicamente de um conceito de natureza humana que parte de uma distinção entre social (tudo que aquilo que é imposto de forma coercitiva ao indivíduo) e individual (tudo aquilo que é criado espontaneamente e naturalmente a partir de interações livres entre indivíduos). A sociedade só pode ser livre se os indivíduos que a formam são livres e se relacionam voluntariamente. Este apelo ao indivíduo e seus desejos pode ser bastante tentador numa era de liberação contra moralismos e imposições sociais.

Em certo sentido, a teoria ética do anarcocapitalismo é uma radicalização da teoria econômica baseada em modelos matemáticos, como a econometria. Ela guarda uma semelhança peculiar com esquemas disfuncionais/desadaptativos produzidos pelo estresse pós-traumático: supervalorização da regra em detrimento do contexto. Pessoas que sofrem traumas tendem a criar regras extremamente rígidas para evitar qualquer tipo de violação/agressão. Nesse processo, elas se isolam socialmente. Não quer dizer que ancaps em geral são pessoas traumatizadas. Mas é possível que o aprofundamento da crise da sociabilidade na modernidade, produzindo certos efeitos psicossociais, acabe também tornando as pessoas mais suscetíveis a esse tipo de abordagem ou visão de mundo.

Qual a maior dificuldade da esquerda em lidar com ancaps?

Na minha humilde opinião, o que mais dificulta a esquerda na tarefa de conter o avanço do anarcocapitalismo é não compreender o que ancaps estão realmente dizendo. A asserção de que o capitalismo é inseparável do Estado é insuficiente, pois o que eles compreendem por capitalismo e Estado vem de uma tradição teórica completamente diferente. Trata-se de princípios da ação humana, como eu pretendi demonstrar. A resposta precisa retornar ao âmago do liberalismo, questionando, por exemplo: o conceito de indivíduo, de liberdade, de direito, de propriedade, de sociedade e de escassez.

Como fazer isso? Minha sugestão é questionar o mito do “homo economicus” e compreender criticamente o paradigma econômico no qual o anarcocapitalismo, e o capitalismo como um todo, está fundado. Por exemplo, as compreensões básicas sobre a natureza das decisões racionais, ou da ação humana, e a teoria da escassez. As teorias anarcocapitalistas não conseguem explicar adequadamente as relações de interdependência entre seres humanos e o ecossistema. Uma perspectiva ecológica da economia é uma boa alternativa de crítica ao capitalismo, pois ela não pode ser imediatamente recusada com base numa crítica ao “comunismo”, que é o tipo de resposta padrão de ancaps.

A teoria anarcocapitalista também pode ser criticada pelo seu enviesamento normativo, mesmo quando tentam se esconder por detrás da “meta-ética”. Isso é, ela não explica como as coisas são, mas descreve um mundo ideal, baseado num princípio de eficiência que em geral não se encontra na natureza, e muito menos no fenômeno social humano. Aqui cabe uma crítica epistemológica, que não é fácil de compreender, porém que atinge o cerne da filosofia ancap.

Outro ponto seria o pressuposto da racionalidade da ação humana. Uma vez que o “homem econômico” é uma ficção, e que pessoas reais se comportam de modo muito diferente do que indivíduos que apenas buscam “otimizar seus ganhos”, o pressuposto praxiológico é colocado em xeque. Evidências empíricas de que o modelo liberal de escolha racional não combina com as teorias do comportamento humano mais atuais podem servir para chamar ancaps de volta à realidade social, mas infelizmente eles podem estar isolados dessa realidade por fatores psicossociais.

Apontar evidências não irá funcionar com todos, assim como evidências não convencem terraplanistas de que a terra não é plana, mas pode semear a dúvida que os levará a reconsiderar essa ideologia quando, e se, amadurecerem intelectualmente. Logo, o mais eficiente seria conversar de modo mais paciente justamente com os ancaps mais novos, e não com os mais velhos, que tem menos probabilidade de mudar de ideia. Por isso, ridicularizar ancaps pela idade deles não é uma boa estratégia. A maioria deles são garotos realmente inteligentes, porém socialmente isolados e que PODEM estar perturbados por alguma experiência traumática (embora não haja uma relação direta).

Um ponto central a ser enfatizado numa conversa com ancaps é que o ser humano não age apenas em auto-interesse. A teoria da empatia demonstra que agimos também em interesse de outros, e que é racional equilibrar o Eu e o Outro na ação humana. Embora a teoria de Ayn Rand afirme o contrário (ela defende o egoísmo virtuoso), essa teoria não é realmente aplicável e não tem relevância nas áreas que estudam o comportamento humano.

Ancaps estão entre os mais visados para serem aliciados ou recrutados por extremistas de direta (nacionalistas brancos e neofascistas), mas é bom lembrar que eles não são necessariamente fascistas. Uma mistura de empatia, possibilidade de sociabilidade real e referências teóricas menos dogmáticas (mais abertas à possibilidade de crítica e autocrítica) pode ser um diferencial para afastá-los do extremismo.

Fontes de pesquisa:

Sociedade contra o Estado: Libertário é sinônimo de anarquista

Anarcocapitalismo provado, por Alexandre Porto

A origem da propriedade privada e da família, por Hans-Hermann Hoppe

A nova direita, o ”libertarianismo” e o anarcocapitalismo, por André Guimarães Augusto

Ideias Radicais, por Raphael Lima

Libertarianism 101 – Understanding Libertarians, por Alex Merced

FAQ anarcocapitalista, por Bryan Caplan

The New Right and Anarcho-capitalism, por Peter Marshall

Exclusive Interview With Murray Rothbard

Rothbardian Ethics, por Hans-Hermann Hoppe

The “Stirner Wasn’t A Capitalist You Fucking Idiot” Cheat Sheet

Classical Liberalism versus Anarchocapitalism, por Jesús Huerta de Soto

On Anarchism, entrevista com Noam Chomsky

Anarcho-capitalism dissolves into city states, por Paul Birch

Contra a praxeologia, a favor da ciência

The Property and Freedom Society

Understanding “Austrian” Economics, por Henry Hazlitt

Adam Smith to Richard Spencer: Why Libertarians turn to the Alt-Right, por Elliot Gulliver-Needham

Haverá escravidão no ancapistão?

A moralidade da remoção física hoppeana

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

53 comentários em “Como entender e responder o anarcocapitalismo?”

  1. Não é clichê mas seu artigo está errado desde o primeiro parágrafo, quando diz que “anarquistas são contrários ao capitalismo”. Os anarcocapitalistas usam esse nome exatamente para se diferenciar dos que você considera como anarquistas. Os “anarquistas” (pessoas que se apropriaram do termo para designar um movimento errado) a rigor não são anarquistas exatamente por INCLUIR o capitalismo como algo a ser superado. Para ser curto, seu artigo discorre longamente sobre suposições de institutos que, por alguma maneira que ninguém sabe, só funcionaria se fosse prestado por uma instituição chamada “estado”. Isso se chama: ideologia. Não existe absolutamente nenhuma comprovação de que somente o Estado pode prestar este ou aquele serviço. Aliás, sequer anarcocapitalistas como David Friedman dizem isso. Dois: anarquismo é ausência de Estado. Não é ausência de capitalismo. Entendeu? Para não alongar: pesquise o surgimento do termo “anarquismo”, o qual remonta a tempos bem anteriores à existência da ideia de capitalismo. Aqui: “O termo anarquismo é composto pela palavra anarquia e pelo sufixo -ismo, derivando do grego ἀναρχος, transliterado anarkhos, que significa “sem governantes”. O que quero explicar é: para de incluir capitalismo como algo incluso na pauta REAL da anarquia. Anarquia é ausência de Estado, não de capitalismo.

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    1. A referência citada no primeiro parágrafo é um texto da professora de filosofia Camila Jourdan (UERJ) e do professor de ciências sociais Acácio Augusto (UNIFESP). Ambos são referência em teoria anarquista no Brasil. O anarquismo está historicamente relacionado ao socialismo e à crítica ao capitalismo, como pode ser verificado na ampla literatura anarquista (Max Stirner, Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Emma Goldman e muitas outras). Sua afirmação de que não há anarquismo sem capitalismo não tem embasamento teórico.

      Seu argumento sugere que a crítica ao capitalismo implica numa defesa ao estado. O argumento do texto não leva de modo algum a essa conclusão. Anarquismo é ausência de estado e capitalismo, porque ambas são formas de concentração de poder nas mãos de poucos, e nas teorias sociais ambas estão relacionadas: o capitalismo só surge a partir do estado. A etimologia da palavra “anarquia” não é um argumento. Recomento que você leia a teoria anarquista.

      A oposição ao estado é central para o anarquismo, mas há muitas formas de definir o estado. O anarquismo é um conjunto de filosofias políticas que se opõem à organização hierárquica e autoritária da sociedade, e isso inclui a crítica ao capitalismo, ao nacionalismo, ao patriarcado, ao racismo e tudo mais. Anarquismo é muito mais que antiestatismo.

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      1. Volto a dizer: exatamente por esse erro que surgiu a expressão anarcocapitalismo. Não tivessem os que se denominam anarquistas utilizado erradamente esse termo para designar a ideia de ser contra propriedade privada, nós, anarcocapitalistas, usaríamos a expressão anarquismo. O que os movimentos do século 19, de socialistas, chama de anarquismo, não é anarquismo. Anarquismo é ausência de estatismo, de governos. Nada, absolutamente nada além disso. Qualquer pessoa que critique o anarcocapitalismo sem explicar que essa escolha do termo (ancap) se deve pelo motivo que falei, não está realizando uma exposição honesta da situação.

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      2. Proudhon usou o conceito de anarquia em 1840 em sua obra “O que é a propriedade?”, onde ele esboçava uma crítica à propriedade privada. A partir dessa discussão, o conceito de anarquia passou a ser usado como sinônimo de socialismo libertário. Não faz sentido disputar uma suposta pureza do termo e ignorar o sentido que ele adquiriu historicamente. O movimento anarquista se estabeleceu como um movimento anti-capitalista e anti-estatista compreendendo que capitalismo e estado são parte da mesma estrutura de poder que implica em dominação de classe. Você quer defender que os verdadeiros anarquistas são os anarcocapitalistas por uma questão meramente semântica. Essa não é uma discussão relevante para a crítica ao anarcocapitalismo. A questão depende do conceito de capitalismo e de estado. Há diferentes teorias sobre a relação entre capitalismo e estado nas ciências sociais, e o que geralmente se chama de “anarquismo” hoje nessa área é “socialismo libertário”, não um anti-estatismo de livre mercado.

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      3. Pois é. Exatamente por esse motivo os teóricos passaram a usar o termo anarcocapitalismo. Porque ficou associado anarquismo a também não aceitação da propriedade privada e não somente de ausência de governantes.

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      4. Cientistas sociais podem argumentar que o anarquismo não existia enquanto movimento com um conjunto de teorias e práticas distinto, antes do socialismo libertário. Teóricos como Bakunin e Kropotkin usaram um conceito que era vago e em geral associado a conotações negativas, como a ausência de ordem social, e o transformaram em um movimento social e político que visa a emancipação humana por meio da abolição da dominação de classes. Isso quer dizer, transformaram a anarquia em anarquismo. A palavra existia, mas não o conceito enquanto posição política. O motivo pelo qual o termo foi associado a uma crítica à propriedade privada tem a ver com o desenvolvimento de uma postura crítica, não com uma distorção ou deturpação de um termo.

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  2. Há vários conceitos errados neste artigo. A própria definição do que é capitalismo em economia. CAPITALISMO:
    sistema econômico baseado na legitimidade dos bens privados e na IRRESTRITA liberdade de comércio e indústria, com o principal objetivo de adquirir lucro. OU seja, no conceito clássico sequer entra a idéia de Estado, muito menos de qualquer regulação externa.
    O Estado sempre procura regular a economia por imposições coercitivas, por motivos utilitaristas, mesmo em regimes democráticos, nunca por bases éticas e morais.
    CAPITALISMO é: Propriedade privada + troca livre.
    Qualquer palavra a mais neste conceito descaracteriza o conceito de capitalismo.
    Outro absurdo de nível psiquiátrico, é ter a noção que indivíduos podem não existir. Parece que no entender do autor do artigo as pessoas nascem para servir às demais.
    E ainda no início do texto, sim, a esquerda sempre quis historicamente se apoderar do vocábulo “anarquia”, como se apenas parte desta vertente não quisesse o Estado presente.
    Anarquia , semelhante à MONArquia, significa sem “cabeça”.
    Explicando – Etimologia: A palavra monarca (do latim: monarcha) vem do grego μονάρχης (monarkhía, de μόνος, “um/singular,” e ἀρχων, “líder/chefe”), posteriormente no latim, monarcha, monarchìa, referindo-se a um soberano único. O termo Anarquismo é composto pela palavra anarquia e pelo sufixo -ismo, derivando do grego ἀναρχος, transliterado anarkhos, que significa “sem governantes”, a partir do prefixo ἀν-, an-, “sem” + ἄρχή, arkhê, “soberania, reino, magistratura” + o sufixo -ισμός, -ismós, da raiz verbal -ιζειν, -izein.
    Outro erro fundamental foi negar que não existem recursos escassos para os meios de produção. Então como equacionar o problema de vários interessados terem uma fazenda, fábrica, casa, etc, em uma determinada localidade geográfica?
    Afinal como diz o canal ANCAPSU: “- Como escolher quem vai morar na concorrida Av Vieira Souto, em Ipanema?”.
    Concluindo, devo dizer que a compilação de vários temas ancaps aqui foi deveras interessante, mas as críticas tem um
    olhar socialista bastante típico, logo como provado, deturpado.

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    1. Alex, acho que é importante compreender que o capitalismo não é um objeto de estudo exclusivo da economia, se trata de um termo complexo que comporta uma série de abordagens nas ciências sociais, e mesmo na economia, que é uma ciência social aplicada, há diferentes compreensões. Temos que superar essa tendência positivista de entender os termos de modo monolítico.

      Essa legitimidade da propriedade privada, o conceito de liberdade irrestrita do mercado e o lucro como fim são questionadas de várias formas por diversos teóricos das mais diversas linhas de pensamento e posicionamentos políticos. Não é porque não aparece a ideia de Estado ali que historicamente, materialmente, essas estruturas se desenvolveram de modo independente do Estado. Como eu já tratei no texto, essa compreensão dicotômica entre Estado e Mercado reflete uma única perspectiva e não necessariamente a realidade do fenômeno social. Tal definição reducionista de capitalismo não cabe mais nas ciências sociais. O que você chama de “descaracterização” é na verdade um desvelamento, uma problematização, uma análise mais profunda do fenômeno.

      Do mesmo modo, sua fala se apresente de modo impositivo quando você “patologiza” compreensões que escapam da sua norma ou esquema conceitual. A filosofia que questiona o conceito de indivíduo, não é coisa de louco, é coisa de quem tem qualificação intelectual para se aprofundar no pensamento crítico. Se você insiste em manter a conversa na superficialidade dos conceitos como eles se apresentam no dicionário, ou do senso comum, então você está se excluindo do debate filosófico.

      Por isso apelos a etimologia da palavra não tem relevância nesse debate. Se bastassem os dicionários comuns, não seria preciso escrever dicionários filosóficos, ou mesmo qualquer obra filosófica. Tudo estaria resolvido pelo que está estabelecido pela linguagem dominante. Mas não é assim que se faz filosofia.

      Não basta olhar para etimologia da palavra e ignorar os movimentos sociais e o uso real e concreto do termo historicamente. Quais foram os grupos sociais que adotaram o conceito de anarquia como mera negação do Estado, e quais grupos sociais o adotaram com um sentido diferente, compreendendo-se dentro de uma tradição anticapitalista? Essa é a questão. O uso social do termo é que molda sua semântica, seu significado no atual contexto.

      Os “erros fundamentais” que você está apontando na verdade partem de erros de argumentação da sua parte. Não existe possibilidade de diálogo sem partirmos de pressupostos comuns. No mínimo, é preciso que você aceite que, se partimos de uma abordagem diferente, não é por ignorarmos os fatos que você trouxe, mas por olharmos para além dele, por aplicarmos outra metodologia de análise. Para entender o que Rothbard e Hoppe dizem, eu precisei também me colocar no ponto de vista deles, porque se eu partisse simplesmente de um conceito socialista de capitalismo, eu não veria sentido nenhum no que eles dizem, e não seria capaz de compreender o pensamento deles. Do mesmo modo, para criticar o socialismo, é preciso colocar-se no ponto de vista do outro. Se você permanece fixo no seu, obviamente só a sua visão de mundo será correta. A capacidade de flexibilidade de pontos de vista é uma ferramenta do pensamento crítico.

      Por exemplo, quando você fala sobre a escassez, e pergunta: como resolver o problema X sem postular a escassez? Não tem como, porque se trata de uma abordagem que parte desse pressuposto. É como tentar resolver um problema de física sem o conceito de tempo e espaço. Porém, em outras abordagens da física teórica, tempo e espaço são relativos, fazendo-se necessário outras teorias para explicar os fenômenos de nível subatômico. É a mesma coisa na antropologia da economia, que trata do fenômeno econômico a partir de um nível completamente diferente. O que eu posso dizer é sugerir que você leia os autores dessa área pra compreender, como Marshall Sahlins. A economia também comporta diferentes paradigmas, como você pode ver em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300002.

      Não existe necessariamente apenas um modo resolver o problema do conflito de interesses, porque os interesses humanos não são dados por natureza, eles também são em parte produtos de uma cultura. Numa economia de não-mercado, como afirmava Mauss, os problemas humanos não são resolvidos por leis de oferta e procura. Tais leis não são eternas e universais, mas existem também dentro de um contexto social. Na sociedade Guarani, por exemplo, onde não há conceito de propriedade, os conflitos são de outra natureza e as soluções também. É um outro tipo de economia. A crítica ao capitalismo pressupõe justamente que a economia é uma criação humana, e não um destino inevitável. Assim como construímos essa economia, podemos construir outras, com base em outros valores.

      A críticas ao anarco-capitalismo contidas aqui são apenas indicações de onde procurar outras abordagens e outras visões de mundo, e não refutações. Achar que o socialismo pode ser “refutado” por uma argumentação lógica idealista, unilateral e que toma conceitos de modo conivente e seletivo para afirmar aquilo que já se tem interesse de afirmar antes mesmo de iniciar a investigação é o que chamamos de desonestidade intelectual. Uma análise honesta precisa considerar conceitos de modo relativo a um esquema conceitual, ser capaz de compreender a mesma coisa por mais de um ponto de vista. Foi isso que eu tentei fazer nesse texto, e é isso que eu espero dos críticos dele.

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  3. Achei o texto bem interessante.

    Particularmente, eu acho que o anarcocapitalismo sofre de problemas semelhantes ao socialismo. Assim como ele, simplifica e reduz demasiadamente a complexidade do mundo. Tal como os socialistas, os anarcocapitalistas partem de uma série de premissas que enxergam como óbvias, mas que quando não estão incorretas, são insuficientes para criar um modelo que funcione no mundo real.

    Como você mencionou no texto, na ausência de um Estado, outro acaba por se formar no lugar. O melhor que se consegue é um Estado mínimo, cuja função seja basicamente a de evitar que algo pior surja no lugar. Este Estado deve ter seu tamanho e poder restritos por uma constituição que tenha mecanismos que possam prevenir seu crescimento descontrolado. Esse é o mais próximo de uma economia sem Estado que se pode chegar e se manter no longo prazo.

    E, de fato, a experiência mostra que os países que implementaram o liberalismo econômico, a estabilidade monetária, atingida por um equilíbrio das contas públicas, e evitaram o excesso de regulamentação econômica, atingiram um grande desenvolvimento, reduzindo drasticamente a pobreza em poucas décadas.

    No entanto, de um ponto de vista econômico, mesmo que um Estado nulo pudesse existir, ele muito provavelmente não seria o mais desejável. O mercado funcionaria com máxima eficiência sem precisar de intervenção externa apenas se não existissem externalidades na economia. Como elas existem, a presença de um Estado de tamanho moderado que se limite a mitigar ou eliminar essas externalidades acaba permitindo um nível de eficiência econômica maior do que uma economia puramente laissez-faire. É verdade que comparando-se uma economia laissez-faire com uma socialista, a segunda é muito menos eficiente mas, ainda assim, nenhuma das duas está no nível ótimo.

    Eu entendo que para os libertários, tanto quanto para os socialistas, eficiência econômica não é o objetivo principal, mas acredito que certamente é um item que tenha um peso forte na defesa de qualquer sistema político-econômico.

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    1. Existem diversas perspectivas econômicas socialistas. Alguns acreditam em Estado forte, estatização da indústria de base e planejamento econômico centralizado. Outros querem apenas reformas, conciliação de classes ou socialdemocracia. O anarquismo (socialismo libertário e demais correntes) também tem diferentes entendimentos sobre economia. Em geral a ideia não é crescimento econômico e sim acabar com os mecanismos de exploração do trabalho. A perspectiva econômica socialista geralmente é internacionalista, pois dificilmente funcionaria no nível nacional, como os experimentos históricos podem comprovar.

      Eu não sei muito sobre economia mas me parece que o que você disse está em linha com o keynesianismo, que aparentemente se tornou como que a principal vertente econômica hoje. E nesse cenário os monetaristas ou neoliberais se apresentam como se fossem “revolucionários” se opondo a uma teoria dominante. Não sei se isso é verdade. Gostaria de saber sua opinião.

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      1. Na realidade, o keynesianismo deixou de ser a teoria mais aceita após as crises da década de 1980. Dentre as ideias defendidas por Keynes, estava a de que a inflação era causada muito mais pelo nível de emprego do que pelo aumento da oferta monetária.

        Para Keynes, não seria possível haver desemprego em alta e inflação ao mesmo tempo. No entanto, isso foi exatamente o que ocorreu nessa época. O fenômeno de desemprego elevado, combinado à recessão econômica e inflação alta recebeu o nome de estagflação. Essa crise acabou por falsear a maior parte da teoria Keynesiana, embora muitos economistas ainda considerem as ideias de usar expansão monenetária e política fiscal expansionista como boas estratégias para encurtar alguns tipos de recessões econômicas causadas ou agravadas por um choque de demanda.

        Até onde eu sei, a teoria dominante entre os economistas atualmente é a neoclássica, embora ainda haja economistas neokeynesianos e mesmo Austríacos (ainda que não sejam mais mainstream).

        No que diz respeito aos objetivos, de fato, como você mencionou no texto e como venho percebendo ao longo dos anos, para a maioria dos anarcocapitalistas, a abolição do Estado é mais uma necessidade ética para acabar com a coerção do que uma estratégia para elevar a eficiência econômica.

        No que diz respeito ao socialismo, confesso que desde a época do colégio, quando aprendi sobre a teoria da exploração pela primeira vez, o conceito de mais-valia não fez muito sentido para mim.

        Por exemplo: se um operário de uma fábrica produz R$1.200,00 em valor para a empresa, mas recebe R$1.000,00 de salário, então a diferença de R$200,00 estaria sendo indevidamente embolsada pelo empregador, sendo esta chamada de mais-valia e vista como um forma de exploração, correto?

        Para mim, não faz nenhum sentido esperar que o empregador pagasse R$1.200,00 ao funcionário pois, se o fizesse, ele não teria nenhum motivo para contratá-lo, já que ele não ganharia nada com isso. Ademais, quando um funcionário produz R$1.200,00 em valor na empresa, ele só o faz porque pode usar as máquinas, estrutura logística, o nome da empresa, etc. Ele não produz R$1.200,00 sozinho, produz em conjunto com o empregador. Sem o empregador lhe emprestando todos os recursos e trabalhando para ordená-los junto com os demais funcionários, a produção dele seria muito menor do que R$1.200,00. Muito menor inclusive que R$1.000,00. É por isso que é muito mais vantajoso para ele trabalhar para a empresa pagando esse “aluguel” de R$200,00, do que tentar produzir os mesmos bens por conta própria.

        Repare que o dono da empresa (ou algum antepassado dele) teve que se sacrificar por anos poupando para abrir um negócio, ou arriscar-se pegando um empréstimo para começar uma empreitada que não sabia se seria bem-sucedida. Levou muito tempo para construir uma marca e conquistar um mercado consumidor.

        Uma grande parte dos empresários já foi à falência ao menos uma vez e, frequentemente, são os primeiros a chegar e os últimos a deixar a trabalho. O empregado chegou quando tudo já estava pronto e teve a permissão se usar toda essa infraestrutura para produzir uma quantidade de valor muito maior que produziria sozinho, sem ter que passar por todo o processo de começar um negócio por conta própria. Por que Marx acha que ele deveria ficar com o valor integral da produção, se ele não produziu aquele valor sozinho?

        Note que não estou aqui tentando discutir sobre o mérito do empresário em ter aberto um negócio e ter sido bem-sucedido versus o mérito do operário. Se o empresário começou tudo do zero e se sacrificou muito desde o início para chegar onde chegou ou se simplesmente herdou tudo pronto é pouco relevante para minha pergunta.

        Meu ponto é que, sem o empresário, a vida do operário estaria pior, já que ele seria forçado a trabalhar por conta própria ganhando muito menos do que recebe de salário. Faria sentido para mim chamar de exploração se ele pudesse ganhar mais sozinho mas fosse obrigado a trabalhar na empresa ganhando menos porque foi coagido. Semelhante ao que ocorria (e talvez ainda ocorra) em partes do Brasil em que os pequenos produtores eram obrigados a vender sua produção para o coronel (que pagava menos por ela) sob a ameaça de morte (ou coisa pior) caso se atrevessem a vender para outro. Nesse caso, claramente há uma exploração ocorrendo. Mas é uma situação bem diferente do exemplo anterior.

        Podemos também pensar em uma situação extrema de uma pessoa com a carteira cheia de dinheiro mas prestes a morrer de sede em um deserto. Quando está quase perecendo, aparece um vendedor de água mineral vendendo uma garrafa a R$10.000,00, os quais a pessoa aceita pagar para salvar sua vida.

        Neste caso, eu concordo totalmente que essa é uma atitude desprezível do vendedor de água e que qualquer ser humano com o mínimo de decência não se aproveitaria de uma situação como essa, então não vejo problema em chamar isso de exploração, mesmo sem haver coerção. Pode não ter sido o vendedor quem colocou a pessoa naquela situação, mas ele sabe que a única escolha que ela tem é comprar a água dele, senão irá morrer de sede. Mas, novamente, essa é um situação muito diferente do que ocorre nas relações entre empregadores e empregados no mundo real.

        Primeiro que não há uma única empresa na qual alguém pode se empregar. Se uma oferece remuneração muito abaixo do que o funcionário produz, ele pode procurar outra empresa que pague melhor. Se não houver nenhuma empresa disposta a pagar um valor maior do que ele ganharia trabalhando sozinho, então ele irá trabalhar por conta própria.

        O problema para mim é que, da forma com Marx definiu o conceito de mais-valia, me parece que qualquer que fosse a margem de lucro, ainda haveria exploração.

        Se o operário produzisse R$1.200,00 em valor e recebesse R$1.199,00 de salário, essa diferença de R$1,00 ainda seria chamada de mais-valia e, segundo Marx, ainda haveria exploração, ainda que numa escala muito menor, correto? E é isso que não faz sentido para mim: Por que Marx acha que o empresário não deveria receber nada, sendo que sem o trabalho e os recursos dele (conquistados ou herdados) o funcionário produziria muito menos?

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      2. Só uma correção: Eu disse a crise da década de 1980, mas é importante mencionar que ela se iniciou nos anos 1970, com os dois choques no preço do petróleo em 1973 e 1979, respectivamente, embora tenha se extendido ao longo dos anos 1980 em vários países. No caso do Brasil, ela só terminou com a chegada do Plano Real, em 1994.

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      3. Realmente faz muito mais sentido que a corrente neoclássica seja a mainstream hoje. Obrigado pelas informações.

        Também nunca fui fã de Marx e comecei a entender melhor somente no mestrado em Sociologia. Eu estava na área de sociologia do trabalho e tinha vários professores marxistas. Mas eu continuo me identificando como anarquista.

        Realmente não faz nenhum sentido dentro da lógica do lucro esperar que o empregador pague o “salário justo” ao empregado, ou seja, o valor total do seu trabalho (e Marx não estava propondo isso), porque, como você disse, o trabalhador não produziria aquele valor sem a máquina que é do empresário, e existem outros gastos para a empresa funcionar. Porém a mais-valia é mais complexa que isso. É preciso entender a questão da comodificação do trabalho, a transformação do trabalhador em “mercadoria”, que o dono da fábrica compra para que a fábrica produza. Para Marx, essa relação entre o dono e o empregado leva a uma contradição, um conflito sem conciliação possível. Ao mesmo tempo que o trabalhador não produziria tanto sem as máquinas, o empregador e as máquinas não produzem sem os trabalhadores, e o empregador não compra máquinas com o próprio trabalho, mas sim com capital que vem do trabalho de outros. Então no fim os trabalhadores também pagaram pelas máquinas.

        A máquina permite maior produção, o que diminui o preço do produto. O artesão que vende o mesmo produto feito à mão não consegue mais vender seu produto pelo mesmo preço, porque o mesmo produto é vendido pela fábrica por um preço menor, desvalorizando o trabalho do artesão e obrigando ele a deixar de ser dono do que produz e se tornar empregado da fábrica. Enquanto o dono da fábrica recebe pelos produtos que vende, o que o empregado vende é sua própria força de trabalho, seu tempo, sua vida.

        Dentro dessa lógica, o dono dos meios de produção sempre poderá obter lucro, reinvestir na expansão do negócio e ganhar mais dinheiro. Ele tem acesso a uma mercadoria que produz lucro, que é a força de trabalho dos outros. O trabalhador não tem acesso a essa mercadoria, a mercadoria que ele compra são os bens que ele precisa para sua subsistência, bens que não geram lucro. O trabalhador tende a receber menos, porque na medida em que o desenvolvimento das forças produtivas ocorre, o próprio trabalhador é substituído por máquinas, tornando-se descartável e por isso seu trabalho vale cada vez menos, enquanto o consumo precisa crescer.

        Tudo isso deve ser entendido no contexto histórico correto, ele estava analisando a situação da Inglaterra pós-revolução industrial.

        Para Marx não faria sentido dizer que o empregador empresta as máquinas para que o trabalhador produza, porque ele não produziu nem as máquinas, nem os produtos que ele vendeu para pagar pelas máquinas. Pulando para a conclusão, a propriedade privada dos meios de produção faz com que os proprietários enriqueçam cada vez mais, enquanto os trabalhadores trabalhem cada vez mais recebendo cada vez menos. O resultado disso seria uma situação em que o proletariado estaria tão desvalorizado que não poderia mais pagar pela sua própria subsistência, não importa o quanto trabalhe, levando-o a se revoltar. O acirramento do conflito levaria a uma revolução social semelhante à revolução francesa, na qual a classe proprietária seria destituída e os meios de produção seriam socializados entre os trabalhadores.

        Nessa lógica também não faz sentido dizer que o capital inicial da empresa veio do trabalho duro de alguém. A acumulação primitiva de capital se deu na base da violência e expropriação. Os donos de capital são herdeiros de colonizadores e donos de escravos. O ideal de “self-made man”, de começar pobre e terminar rico com seu próprio esforço, é parte do que Marx chama de ideologia, uma inversão da realidade, é um mito. A própria estrutura do capital produz desigualdade econômica, que gera desigualdade de acesso e desigualdade social, que se reproduz e é institucionalizada. Por exemplo, o filho do proletário não terá acesso às mesmas oportunidades que o filho do proprietário.

        A narrativa de que a riqueza é uma recompensa pela disciplina pessoal vem, segundo um outro autor da sociologia, Max Weber, de uma crença religiosa. Foram os protestantes que, por causa do rompimento com a igreja católica, criaram uma ética ascética para poder se diferenciar nos “iníquos”. É que na fé católica sua salvação estava garantida pela compra de indulgência ou expiação no ritual da comunhão. Mas os protestantes romperam com isso e precisavam demonstrar que são salvos no seu modo de agir. Isso logo foi interpretado como uma disciplina ascética, ou seja, de poupar seu dinheiro, não gastar com regalias, e dedicar-se ao trabalho. Antes do Lutero, o trabalho mundano, como do sapateiro, não podia ser dedicado a Deus. O trabalho dedicado a Deus era sacerdotal somente. Lutero transformou o conceito de profissão, dando um sentido moral/religioso ao trabalho mundano. O homem poderia servir a Deus ao servir o próprio homem. Por isso a relação de afinidade entre ética protestante e o “espírito” do capitalismo.

        Hoje em dia praticamente não há sociólogo que acredite no discurso meritocrático, seja ele marxista ou não. Principalmente na sociologia do trabalho, onde os dados demonstram que a precarização do trabalho anda junto com as políticas do liberalismo econômico, por mais que os economistas queiram negar isso. Existe um conflito de interpretação dos dados entre sociólogos e economistas.

        Mas voltando a Marx, ele não acha que o trabalhador “deveria ficar com o valor integral da produção”. Ele não defendeu aumento de salários. Ao contrário, ele demonstrou que isso é uma forma de iludir o trabalhador. Não importa o quanto o trabalhador ganhe, a classe proprietária dos meios de produção é dona do jogo. Um dono de fábrica pode perder tudo, mas a classe dele sempre ganha, enquanto a classe trabalhadora sempre perde. Ninguém produz nada sozinho, isso é certo. Mas enquanto classe, os trabalhadores permanecerão trabalhando mais e recebendo menos, enquanto o oposto ocorre na classe proprietária. A análise marxista só pode ser entendida no plano social. Se você joga para o plano individual, ela perde o sentido. É isso que ele chamou de consciência de classe: ao invés de se satisfazer com um salário melhor, o trabalhador deveria compreender que a classe trabalhadora em si permanecerá pobre, independente daqueles que se tornam ricos. A classe proprietária continuará rica, independente daqueles que se tornam pobres.

        Se o operário se tornou dependente do empresário, o empresário por outro lado também é dependente do operário. Essa é a dialética senhor-escravo de Hegel. Se
        a vida do trabalhador se torna pior sem estar empregado, por outro lado isso é só acontece porque a sociedade capitalista gira em torno da produção e consumo massivo de mercadorias. Sem emprego, eu não tenho mais acesso aos meios para produzir minha própria subsistência, porque esses meios foram expropriados pelo classe proprietária. Por exemplo, a terra para produzir alimento.

        A vida do trabalhador era relativamente melhor antes das fábricas, porque ele era dono do produto do seu trabalho. Foi o próprio modo de produção capitalista que forçou o trabalhador a vender seu trabalho em troca de salário. Ele ganharia mais empregando seu tempo para garantir sua própria subsistência: fazendo suas roupas, produzindo sua comida, e trocando com outros trabalhadores próximos. No contexto da revolução industrial, porém, isso não é mais possível. A exploração está pressuposta na falta de opção que é resultado da condição material da própria acumulação de capital, do desenvolvimento das forças produtivas (as máquinas) e da urbanização.

        Para Marx, a mesma lógica que você descreveu na relação entre pequenos produtores e os coronéis acontece no capitalismo, porém num nível social mais amplo. Os liberais porém partem do pressuposto que as condições que tornam mais vantajoso vender sua vida por um salário mínimo são dadas, constitutivas da realidade social, como se sempre tivesse sido assim, como se fosse natural. Enquanto marxistas compreendem que essas condições foram construídas pelas classes dominantes para garantir sua dominação, portanto não são naturais, são relações de exploração que implicam em violência.

        A crença de que o trabalhador é livre, para o marxismo, é uma ideologia. Não corresponde a uma análise histórica, material, empírica e cientificamente válida da sociedade. Corresponde a uma análise falsa, como se vacas acreditassem que estão na fazenda para serem alimentadas e bem cuidadas, e não para serem engordadas e comidas. Os marxistas dedicam boa parte de seus esforços teóricos para desvelar essa realidade e demonstrar o falseamento da realidade produzido pela ideologia liberal.

        Mas numa coisa você tá certo: segundo Marx, qualquer que fosse a margem de lucro, ainda haveria exploração. A exploração é inerente ao sistema, não pode ser desfeita por um ajuste salarial. Ela é estrutural das relações sociais na sociedade capitalista. Por isso mesmo é que não cabe reforma, é preciso abolir o capitalismo.

        Marx não acha que o empresário não deveria receber nada. O que ele defendeu é que a propriedade privada dos meios de produção não deveria existir. Os meios de produção seriam socializados, a divisão de classe acabaria. Todos trabalhariam como que em cooperativas, em que todos os envolvidos no trabalho recebem o mesmo e compartilham as mesmas responsabilidades.

        Como eu disse, a proposta marxista não é aplicável no nível parcial. Ou você muda o mundo inteiro, ou então não vai funcionar. Mas ele estava convencido que no mundo inteiro iria acontecer o mesmo que na Inglaterra, os trabalhadores seriam sugados até não ter mais nada a perder, e aí os trabalhadores do mundo se juntariam para derrubar o capitalismo globalmente.

        Espero que isso tenha resolvido alguma dúvida.

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    2. Recomendo ler sobre o Problema do Cálculo Econômico. Demostra como o socialismo é uma impossibilidade econômica.

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      1. O artigo é sobre o anarcocapitalismo, não sobre o socialismo. Demostrar “como o socialismo é uma impossibilidade econômica” não implica num argumento a favor do anarcocapitalismo. Além disso, não é verdade que o o problema do cálculo econômico demonstra a inviabilidade do socialismo em si. O que ele problematiza realmente é o que podemos chamar de “socialismo de mercado”, isso é, o socialismo sendo aplicado como alternativa econômica, sem uma revolução social total como proposta por Marx e demais socialistas. Ainda assim este é um debate em aberto com propositores atuais argumentando, por exemplo, que o sucesso do capitalismo atual (corporativista) se deve justamente aos mecanismos integrados de planificação econômica. Ver: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/209583. E, mais além ainda, o socialismo libertário (anarquismo) não é uma proposta econômica para sociedades de classe, e não pode ser criticado com uma crítica à planificação central da economia, que depende de Estado. Ele é uma proposta que depende de uma completa mudança de paradigma econômico, político e social.

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  4. Boa tarde, Janos. Obrigado pela resposta e por sua disposição em me explicar a lógica do pensamento Marxista.

    Concordo com boa parte do que você disse, como na importância de se levar em conta o contexto histórico em que o Marxismo surgiu e também com o fato de as fábricas, ao produzirem bens a um custo menor do que os artesãos, acabam por obrigá-los a deixar seu ofício.

    Por outro lado, vejo alguns problemas com algumas afirmações.

    Quando você diz, por exemplo, que o empregador não está comprando uma máquina com o próprio trabalho, mas sim com o capital que veio do trabalho dos outros, eu não entendo porque esse seria o caso.

    Eu poderia ser o funcionário de uma empresa que passei um bom tempo juntando dinheiro do meu salário. Eventualmente, eu peço demissão e uso minhas reservas para abrir um negócio. Neste caso, como dizer que não paguei pelas máquinas? A outra possibilidade é que eu tenha tomado um empréstimo para abrir uma empresa. Estaria me arriscando, pois se meu negócio não prosperar, eu acabaria falido, sem emprego e endividado. Mas, se der certo, posso ganhar muito dinheiro. Neste segundo caso, assumindo que minha empresa prospere, eu pagarei pelas máquinas com parte da minha produção futura.

    Também me parece inexato dizer que os mais ricos estão no topo desde sempre. Toda hora eu vejo exemplos de pessoas que prosperaram vindas de baixo.

    John D. Rockefeller, o homem mais rico da história, era pobre. Quantos exemplos como ele não existem? Só no Brasil podemos citar o Matarazzo e o Martilnelli, mas quantos outros não há? Mesmo que todas essas histórias fossem falsas, eu conheço pessoalmente inúmeras pessoas que tiveram uma infância pobre hoje estão muito bem de vida. Algumas até milionárias.

    Voltando ao caso do artesão, se por um lado ele perdeu seu ofício por conta da concorrência com a fábrica e agora terá que buscar outra ocupação (que não necessariamente precisa ser trabalhar na fábrica), por outro, agora existe uma oferta maior produtos baratos o que faz com que a sociedade como um todo fique mais rica. Antes da revolução industrial, roupas de algodão manufaturadas eram demasiadamente caras e apenas os ricos podiam pagar por elas. Os pobres precisavam confeccionar suas próprias. Foi o advento da industrialização que fez o preço delas despencar e as tornou acessíveis a todos.

    Podemos fazer um paralelo com o mundo moderno. Lembro há muitos anos de ter visto em programa um alfaiate se queixando da concorrência com as roupas vindas da China. Ele queria que o governo interviesse para taxar, ou mesmo proibir, as importações de roupas Chinesas, já que a concorrência com elas estava inviabilizando seu negócio. De fato, as roupas baratas vindas da China prejudicam os alfaiates brasileiros, mas em contrapartida beneficiam toda a sociedade com roupas baratas.

    É justamente o aumento constante da produtividade que tem elevado o padrão de vida das pessoas nos últimos séculos, reduzindo dramaticamente a pobreza e extrema pobreza na maior parte do mundo.

    As pessoas tendem a falar muito no aumento da desigualdade social, como se ele implicasse num aumento continuo da pobreza. Porém, esse raciocínio assume que a economia é um jogo de soma zero, em que se alguém está ganhando, então alguém automaticamente está perdendo. Mas não é isso que ocorre. A desigualdade aumenta porque uma parte da população está enriquecendo mais rápido do que a outra, mas, no geral, todos estão ficando mais ricos.

    Se a renda dos 10% mais ricos aumentar 10 vezes e a renda dos 10% mais pobres aumentar 3 vezes, a desigualdade social aumentará, mas todos estarão mais ricos do que antes. Além disso, mais importante do que a desigualdade de renda, é a desigualdade de consumo que, graças ao aumento constante da produtividade, vem caindo ao longo do tempo na maior parte do mundo. Existe uma renda acima da qual sua qualidade de vida não melhora mais mesmo que sua renda aumente. Quando toda a população estiver acima desse patamar, todos terão a mesma qualidade de vida a despeito de qualquer diferença de renda que ainda exista.

    Nesse sentido, mesmo a questão da desigualdade de oportunidades perde importância. O que é preferível: Duas pessoas terem um “nível 4” de oportunidade ou uma ter “nível 5” e a outra ter “nível 7”? O mais importante não é se o filho da empregada recebe a mesma educação que a filha do patrão, mas sim se ao longo do tempo, a educação de ambos está melhorando, mesmo que a da filha do patrão estivesse melhorando mais rapidamente.

    Repare também que eu me preocupei em evidenciar que minha argumentação não se fundamentava em uma crença numa perfeita meritocracia. É evidente que sem igualdade de oportunidades, a meritocracia será sempre parcial ou, em alguns casos, até inexistente. Meu ponto é que a questão do mérito é majoritariamente irrelevante na discussão.

    O capitalismo não recompensa o esforço, recompensa a produtividade. Eu posso passar dias trabalhando duro e me sacrificando para cavar buracos e fazer sorvetes de lama, mas não ganharei nem um centavo com eles, já que ninguém se interessa em comprá-los. Isso pode parecer injusto, mas é o sistema que maximiza o bem-estar geral ao incentivar cada pessoa a tentar produzir o máximo possível dos bens e serviços que são mais demandados com o menor esforço. Quando as pessoas vão a um dentista, por exemplo, esperam receber o melhor serviço possível pagando o menor preço que puderem. Acredito que ninguém preferiria um dentista que seja esforçado mas que faça um serviço ruim e cobre caro a um outro que com pouco esforço faça um bom serviço cobrando pouco.

    Voltando à questão da automação, desde a primeira Revolução Industrial existe o temor de que as máquinas tirarão todos os empregos e deixarão a maior parte da população na miséria. Um temor que tem se mostrado falso incontáveis vezes. Sim, a tecnologia e a automação destroem muitas profissões, quase sempre as com baixa qualificação, mas também criaram muitas outras novas e mais bem-remuneradas.

    O aumento da produtividade trazido pelo desenvolvimento tecnológico também foi o principal fator que permitiu a queda no número médio de horas trabalhadas no início da RI até os dias de hoje. Sem o avanço tecnológico, qualquer redução compulsória da jornada de trabalho (através de decretos legais, por exemplo) que levasse a uma redução na produção, necessariamente seria acompanhada por uma queda nos salários. Ao mesmo tempo, qualquer tentativa de elevar o piso salarial artificialmente (com uma lei de salário mínimo, por exemplo), apenas aumentaria o desemprego e/ou o nível geral de preços.

    Se admitirmos um cenário hipotético e muito provavelmente irreal em que as máquinas pudessem substituir totalmente o trabalho humano, o resultado seria um ganho de produtividade tão grande que os preços cairiam a zero. Sim, todos estariam desempregados, mas isso seria irrelevante porque o custo de vida também seria nulo.

    Acho que já me alonguei muito, então vou encerrar os comentários por hoje, hehehe.

    Até mais.

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    1. Você poderia, como você disse, passar um bom tempo economizando para comprar sua primeira “máquina” (chamemos isso de investimento). Porém o proprietário que já tem investimentos gerando renda pra ele consegue isso em muito menos tempo. O que significa que o dinheiro tende a se acumular nas mãos de quem tem mais dinheiro, não de quem trabalhou ou poupou mais.

      Suponha que você se forme em economia, trabalhe num banco e viva de modo absolutamente ascético, gastando o mínimo possível, para economizar o suficiente para comprar um pedaço de terra, pedir demissão e ir pra lá viver de agrofloresta, para preservar um pedaço da mata atlântica. Seria nobre da sua parte, porém, no mesmo período que você leva pra fazer isso, um único dono de agronegócio conseguiu desmatar dez vezes mais e com isso ganhar dinheiro para desmatar vinte vezes mais, e assim por diante. Percebe como é uma corrida impossível de vencer? Não dá pra ganhar dinheiro preservando a natureza, mas se ganha muito dinheiro destruindo.

      Na mesma lógica, o capitalismo não permite que você use seu o dinheiro para aumentar o bem social, quando é muito mais rentável explorar trabalhadores pobres. Sua justificativa de que é menos explorador que outros não muda nada. Ou você segue o fluxo do capital ou é excluído.

      Existe uma frase da anarquista Emma Goldman: “se votar mudasse alguma coisa, seria proibido”. Podemos aplicar esse mesmo raciocínio aqui: se poupar e conquistar sua independência mudasse alguma coisa, seria proibido. É necessário que que a vida do trabalhador seja dificultada. O problema é que liberais acreditam que isso é culpa do Estado, não do capitalismo. Enquanto anarquistas anticapitalistas entendem que essas forças agem conjuntamente para um mesmo fim. O Estado mantém o capitalismo ao permitir o acúmulo desproporcional dos mais ricos, o que necessariamente implicará numa precarização do trabalho. Para cada “máquina” comprada com seu próprio esforço, muitas outras são compradas com a exploração. O que resulta que esse caso sempre será uma exceção. O sistema continuará aumentando a desigualdade econômica não importa o quanto as pessoas se esforcem. Na verdade, quanto mais elas elas se esforçam, mais os salários diminuem, porque os empregadores tendem a pagar o mínimo possível. Ao mesmo tempo, ao aumentar a concentração de renda, o custo de vida se eleva.

      O empréstimo é apenas um outro mecanismo de geração de desigualdade. Aqueles que perdem a aposta pagam pelos que ganham. Para ganhar essa aposta não basta ter sorte, há fatores sociais influenciando sua chance de ganhar ou perder. Por exemplo, se você fica doente não consegue trabalhar para pagar a dívida, vai ficar preso na classe baixa. Mas se você tem um círculo social que vai te ajudar a não perder seu investimento em caso de uma fatalidade dessas, você consegue mesmo assim. Os obstáculos são desproporcionais dependendo da origem, da cor da pele, do gênero e da sexualidade da pessoa.

      Os exemplos particulares de pessoas que prosperaram vindas de baixo não são um bom argumento. O simples fato de que quanto mais dinheiro você tem, mais você pode ganhar, determina uma estrutura piramidal.

      Nesse sentido, Zygmunt Bauman faz uma análise contundente em 3 dos seus muitos livros: Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria (2008); Vidas desperdiçadas (2005), no qual ele explica a tese de que “o mundo está cheio” e como a modernidade produz exclusão; e Vida a crédito (2010), uma conversa com Citlali Rovirosa-Madrazo sobre a obra de Bauman na qual ela consegue identificar limites e fazer algumas críticas ao mesmo.

      Em resumo, a tese é que havia, em outros tempos, outra ocupação para se buscar. Porém o capitalismo se globalizou e saturou essas possibilidades. A “sociedade como um todo” ficou mais “rica” graças a essa oferta de produtos baratos, mas os mais pobres estão cada vez mais vulneráveis e sem saída. Dependem cada vez mais de caridade, e suas vidas valem cada vez menos para o mercado. Nesse sentido, algumas pessoas consideraram esta pandemia como uma ótima oportunidade para se livrar de pessoas que são “economicamente inviáveis”, porque a produtividade possível delas não compensa o investimento na qualificação delas. Estamos numa situação em que as pessoas podem comprar celulares ao mesmo tempo em que podem ficar sem água, comida, moradia e atendimento médico básico. Isso quer dizer, celulares se tornam baratos, mas isso não quer dizer que as pessoas estão vivendo melhor.

      No seu capítulo sobre a mercadoria, Marx diz, em outras palavras, que quanto melhor as coisas ficam para o trânsito das mercadorias, tanto mais miserável fica o trabalhador. O advento da industrialização pode ter baixado o preço de muitos produtos, mas o custo social desse rápido aumento produtivo disso é enorme, incluindo a urbanização desordenada.

      Produtos mais baratos implicam numa exploração maior do trabalho. Um exemplo: Uma indústria vem para um país pobre porém onde há matéria-prima para seu produto, e emprega a população desqualificada com um salário baixo para extrair e operar as máquinas que fazem o produto. A padrão de vida da população se eleva, ela poupa, estuda, começa abrir seus próprios negócios, exigindo salários melhores. A indústria então se muda para um país mais pobre e reinicia o ciclo. Ela negocia como conseguir a matéria-prima do primeiro país, explora a mão-de-obra barata do segundo, e vende o produto de volta ao primeiro, que já não consegue concorrer porque não tem mais acesso à matéria-prima.

      Não é a China que prejudica os pequenos fabricantes brasileiros, é o capitalismo mesmo. Esses produtores de roupas investiram num mercado que era promissor mas que deixou de ser num piscar de olhos. Sem alternativa, como eles vão consumir? Não importa se a roupa está mais barata, eles vão se empregar na revenda e ganhar bem menos do que quando eles mesmos produziam. Enquanto isso, o aluguel e o preço de outras coisas aumenta ao invés de diminuir.

      O aumento constante da produtividade não é o único fator para se entender a elevação do padrão de vida. A análise sobre a pobreza precisa ser mais profunda. É possível se enganar com gráficos que parecem otimistas quando na prática as coisas não estão melhorando. A matemática tem que ser confrontada com a realidade social mais ampla.

      Conheço a teoria dos jogos e já ouvi diversas vezes esse argumento de que “esse raciocínio assume que a economia é um jogo de soma zero”. Mas economia política não pode ser reduzida a um jogo de soma-zero ou não-zero. Existem vários fatores complexos relacionando a desigualdade econômica e social à concentração de renda. Mesmo num jogo de soma-não-zero é possível criar sistemas de desigualdade crescente. Na realidade concreta existem estruturas que desequilibram o jogo e que são difíceis de incluir nos modelos matemáticos. No capitalismo, segundo a análise marxista, a desigualdade aumenta porque está estruturada nas relações sociais entre as classes. O rico fica mais rico e o pobre mais pobre por uma estrutura política e econômica, e não somente econômica.

      Os próprios salários limitam a quantidade de consumo possível. Se todo mundo conseguisse abrir seus negócios, de onde viria o dinheiro? Os mercados se saturam, não há espaço para todos prosperarem de modo tão rápido assim, não importa o quanto se esforçarem. Assim como numa corrida em que todos os corredores são muito bons, aquele que por um detalhe mínimo ficou milímetros à frente vai crescer, e outros vão afundar.

      Do ponto de vista ecológico, a igualdade de consumo sendo definida pelo padrão de países como os EUA é insustentável. O aumento constante da produtividade é um fator de exclusão de populações marginalizadas, principais vítimas da produtividade massiva (da produção de energia, de minérios e de carne bovina principalmente). A pretensão de que toda a população eleve seu consumo ainda tem considerar as questões ecológicas e culturais, como o racismo por exemplo.

      Quando você diz que o importante é que “ao longo do tempo, a educação de ambos está melhorando”, está considerando qual critério? Pois, de certo ponto de vista, o que está acontecendo hoje não é uma melhora da qualidade de educação de ricos e pobres, mas o oposto, uma piora na educação de ambos. A crise educacional talvez seja ainda pior nas escolas particulares do que nas públicas, dependendo do critério que você analisar. Pois o objetivo da educação é emancipar o indivíduo, e não formar trabalhadores eficientes. O objetivo da produtividade e da educação libertária podem entrar em conflito.

      A teoria anticapitalista em geral critica a “produtividade” como critério privilegiado, pois considera esse conflito entre bem-estar social e produtividade. Você deu o exemplo dos sorvetes de lama. Hoje, um professor de filosofia é praticamente um fazedor de sorvetes de lama. Dá muito trabalho, é preciso ler e estudar muito, porém ninguém se interessa em professores de filosofia. Voltando à citação de Goldman: “se a educação mudasse alguma coisa, ela seria proibida”. A educação que dá condições de pensamento crítico sobre a sociedade que vivemos, na prática, é proibida. A educação que tem valor de mercado é a forma “robôs” que reproduzem a ideologia do modo de vida dominante automaticamente, mas mesmo assim se acham muito inteligentes. Hoje em dia compensa muito mais enganar pessoas com um discurso qualquer de coaching do que com uma educação sólida e embasada.

      O sistema não pode maximizar o bem-estar geral, porque o sistema não tem um critério para determinar o que é bem-estar. O critério é facilmente manipulável por aqueles que já estão no poder. Na prática, quem está no topo determina os padrões do “bem-estar”, e isso implica num jogo onde as regras mudam segundo a conveniência de quem está ganhando. Com certeza as pessoas preferem um dentista que faça um bom serviço cobrando pouco, porém os que tem mais dinheiro não querem frequentar o mesmo dentista que a ralé. Eles querem se sentir exclusivos e diferenciados. Então eles estimulam um sistema que separa os bons dentistas para eles, e torna apenas os mais dentistas, ou dentistas mal equipados, acessíveis aos mais pobres. O dentista bom que insiste em permanecer acessível, assim como um médico ou professor altruísta que insista em fazer isso, sempre será exceção, justamente porque isso implica em ser “menos produtivo” em termos econômicos, mesmo quando o bem social que ele faz é incrivelmente maior.

      Sobre a automação, tem um outro texto nesse site só sobre essa questão. É curto então eu recomendo: https://contrafatual.com/2020/02/02/automacao-e-emancipacao/. E bom lembrar que o argumento da automação está bastante presente na esquerda também. Aaron Bastani publicou o livro “Fully Automated Luxury Communism” ano passado, e reproduz alguns dos seus argumentos. Eu parto de outra base, a antropologia do trabalho, para discordar de ambos. Ao contrário do que se prega, a questão do desemprego gerado pela automação nunca esteve tão intensa. Basta pegar os estudos de sociólogos atuais sobre o assunto. O argumento de que o avanço tecnológico retira empregos de baixa qualificação mas os compensa criando novos empregos mais qualificados é extremamente frágil. Os dados que temos hoje mostram tendências bastante duvidosas, e interpretações equivocadas e enviesadas de ambos os lados.

      Eu pessoalmente me posiciono como um crítico do suposto “desenvolvimento tecnológico” civilizado, o que na verdade é o que mais me rende desafetos na esquerda. Com base em Marshall Sahlins e outras pesquisas de antropologia econômica, a ideia de que o avanço tecnológico diminui o tempo de trabalho é colocada em xeque. Novamente, não dá pra pegar só um número final e não analisar historicamente. O “avanço tecnológico” eleva o tempo de trabalho antes de diminuir, e provoca diversos efeitos nesse meio tempo.

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      1. As questões ecológicas, na realidade, são um dos principais motivos de eu discordar dos anarcocapitalistas. Há muitos exemplos de externalidades envolvendo ecologia, situações onde os incetivos de um economia totalmente livre frequentemente favorecem alguém que está explorando o meio-ambiente de forma insustentável e é exatamente aí que o Estado deve entrar. Mesmo de um ponto de vista econômico, quando levamos em conta os efeitos de longo prazo da degradação ambiental, as atividades mais rentáveis no presente acabam sendo pouco eficientes no longo prazo, justamente porque são insustentáveis. Neste caso, cabe ao Estado regular o mercado justamente para corrigir essas falhas do mercado. Externalidades não existem apenas na economia, mas também na saúde, na educação e em quase todas as áreas da economia. Por isso não sou a favor de abolir o Estado, apenas acho que existe um nível e um tipo ideal de regulamentação e taxação acima do qual ele começa a causar muito mais estragos do que benefícios.

        Quanto aos seus argumentos sobre as máquinas serem compradas principalmente com o dinheiro advindo da exploração, eu ainda não entendo o argumento. Eu não entendi ainda onde está a exploração dos trabalhadores que Marx menciona e qual a lógica da mais valia. Não faz sentido para mim que Marx considere injusto que o empregador fique com parte da produção sendo que ele e o empregado a fizeram um conjunto. A produção de uma empresa é fruto do trabalho conjunto do empregador e dos empregados. Separados eles produziriam menos do que em conjunto, por isso se associam. O empregador fica com uma parte da renda e os empregados com outra. O que há de errado nisso?

        Por essa lógica, o problema da exploração seria eliminado se eu abrisse uma empresa 100% automatizada. Não tenho nenhum empregado, sou apenas eu e as máquinas, logo não haveria nenhuma exploração do trabalho alheio e não restaria dúvidas de que toda a produção me pertence.

        Sim, nem todos os negócios abertos serão bem-sucedidos. Nem todas as pessoas tem vocação para serem empresárias. Eu por exemplo, sou cientista e não me imagino gerindo uma empresa. Mesmo as que tem vocação, muitas vezes, perdem. Henry Heinz foi à falência e chegou a ser preso por dívidas antes que sua empresa seguinte prosperasse. Ele não é um caso isolado, isso é extremante frequente no meio empresarial e é um risco inerente ao fato de não conhecermos o futuro.

        O fato de um negócio não dar lucro é um sinal e um incentivo do mercado de que aquela pessoa (salvo exceções ligadas à atividades sem fins lucrativos ou à distorções no mercado) não deveria estar fazendo aquilo. É uma atividade para a qual existe pouca demanda, logo ela deve alocar seus recursos de outra forma.

        “Os exemplos particulares de pessoas que prosperaram vindas de baixo não são um bom argumento. O simples fato de que quanto mais dinheiro você tem, mais você pode ganhar, determina uma estrutura piramidal.”

        Seu raciocínio ignora a redução marginal da utilidade do capital. Já se perguntou porque países pobres, em média crescem a taxas muito maiores do que países ricos? Porque quanto mais um país cresce, mais recursos ele precisa apenas para se manter grande e menos impacto novos recursos adicionados terão na economia. O que faz mais diferença: uma estrada num país que não tem nenhuma, ou uma estrada num país com centenas de milhares de quilômetros delas? Para uma empresa se manter no topo por muito tempo ela precisa estar inovando constantemente e empresas grandes, especialmente quando chegam perto de dominar o mercado, tendem a ser péssimas nisso. Veja o que aconteceu com a Kodak e a Blockbuster, por exemplo.

        “Estamos numa situação em que as pessoas podem comprar celulares ao mesmo tempo em que podem ficar sem água, comida, moradia e atendimento médico básico. Isso quer dizer, celulares se tornam baratos, mas isso não quer dizer que as pessoas estão vivendo melhor. ”

        Mas os custos de vida não estão se reduzindo apenas para celulares e equipamentos tecnológicos. Desde a revolução industrial, os custos de praticamente todos os bens caíram. Agora, se você se pergunta porque então nós temos inflação e porque os alimentos, hospitais e escolas não param de ter aumentos, olhe o que aconteceu com a base monetária mundial nas últimas décadas. A expansão constante do crédito sem lastro pelos governos em bancos centrais é o que explica a alta constante dos preços e elevação do custo de vida. Deve-se, claro, também levar em conta o que ocorre com os salários. Se o nível médio de preços sobe, mas os salários se elevam mais rapidamente, então o padrão de vida ainda está aumentando.

        Dito isso, inflação é um dos principais causadores da desigualdade social, tratando-se nada mais do que transferência de renda dos últimos a receberem o dinheiro, que quase sempre são os mais pobres para os primeiros a o receberem: governos, bancos, empresários amigos de políticos e por aí vai.

        Se o governo não se financiasse através do aumento constante da base monetária, praticamente todos os preços da economia estariam em queda constante.

        Mesmo com a inflação, o padrão de vida da maior parte das pessoas tem se elevado constantemente. Basta ver os dados de acesso à água potável e saneamento básico, taxa de mortalidade infantil, índices de analfabetismo, desnutrição, expectativa de vida, e por aí vai. Eu não entendo no que exatamente esses dados podem ser enganosos quando analisados num contexto sociológico mais amplo. Se bilhões de milhões de pessoas deixando a pobreza e ganhando acesso à bens e serviços que antes apenas os ricos podiam desfrutar e isso não é uma elevação do padrão de vida, então eu realmente não sei o que é. É claro que qualidade de vida não se resume apenas a consumir mais, mas um pessoa que está passando fome e que não tem onde morar, certamente ter alimentação melhor e uma moradia estarão entre as prioridades maiores.

        “Os próprios salários limitam a quantidade de consumo possível. Se todo mundo conseguisse abrir seus negócios, de onde viria o dinheiro? Os mercados se saturam, não há espaço para todos prosperarem de modo tão rápido assim, não importa o quanto se esforçarem. Assim como numa corrida em que todos os corredores são muito bons, aquele que por um detalhe mínimo ficou milímetros à frente vai crescer, e outros vão afundar.”

        Salários são preços. Num livre mercado, como qualquer outro preço, eles surgem como o ponto de equilíbrio entre oferta e demanda. Os empresários gostariam de pagar zero e os trabalhadores gostariam de receber infinito. É a interação desses interesses junto com a lei de oferta e demanda que irá determinar o valor dos salários. Dito isso, a não ser que a pessoa receba doações ou auxílios governamentais, ela só pode consumir, no máximo, um valor igual ao que produz. Quanto mais as pessoas produzem, mais elas podem consumir. Pode não ser do interesse de um fabricante de parafusos que surjam outra pessoas boas em produzir parafusos, mas certamente é do interesse de todo os restante da sociedade, porque isso significa parafusos mais baratos e mais pessoas com poder aquisitivo para consumir mais bens. A não ser que estejamos falando de acordos entre empresários e governantes para cartelizar/monopolizar o mercado dificultando a entrada de concorrentes ou de mafiosos mandando executá-los, não há nenhum sentido econômico em se supor que seja do interesse do mercado manter boa parte da população incapaz de consumir mais.

        “Quando você diz que o importante é que “ao longo do tempo, a educação de ambos está melhorando”, está considerando qual critério? Pois, de certo ponto de vista, o que está acontecendo hoje não é uma melhora da qualidade de educação de ricos e pobres, mas o oposto, uma piora na educação de ambos. A crise educacional talvez seja ainda pior nas escolas particulares do que nas públicas, dependendo do critério que você analisar. Pois o objetivo da educação é emancipar o indivíduo, e não formar trabalhadores eficientes. O objetivo da produtividade e da educação libertária podem entrar em conflito.”

        O Brasil, certamente, é um péssimo exemplo de melhora da educação. E concordo que a educação não serve apenas para formar pessoas mais produtivos, embora esse deva ser um dos objetivos centrais. Falei num sentido hipotético para ilustrar que a “igualdade de oportunidades” não quer dizer muita coisa. É melhor ter um sistema desigual onde a educação esteja melhorando para todos, mesmo que para alguns estivesse melhorando mais rápido, do que um sistema igualitário onde todos tem uma educação pior.

        O seu exemplo da corrida mostra um equívoco econômico de se considerar que no capitalismo tudo se resume à competição, onde os primeiros a chegar são os ganhadores e os últimos os perdedores. Muito do capitalismo é competição, mas muito é cooperação. Se todas as pessoas estão ficando mais produtivas, então todas ganham. As que tiverem um amento de produtividade maior terão um ganho maior, mas todas irão ganhar explorando um nicho diferente do mercado ou abrindo novos nichos. Na realidade, mesmo num cenário degenerado em que apenas os mais ricos estão ficando mais produtivos, os mais pobres ainda se beneficiam com os bens e serviços mais baratos. Mesmo sem que eles próprios não consigam produzir mais, conseguirão consumir mais porque os preços reais (descontada a inflação) estarão mais baixos em relação ao salários.

        Mas eu sou a favor de uma educação universal financiada pelo governo (seja ela pública ou privada) como modo de acelerar enormemente esse processo. Igualmente, sou a favor da saúde universal.

        “Você deu o exemplo dos sorvetes de lama. Hoje, um professor de filosofia é praticamente um fazedor de sorvetes de lama. Dá muito trabalho, é preciso ler e estudar muito, porém ninguém se interessa em professores de filosofia.”

        Olha, até certo ponto, eu sou a favor de financiar com o dinheiro público certas atividades para as quais não haja demanda suficiente no presente como um investimento de longo prazo ou de valor social. Um exemplo disso são os investimentos em ciência pura e em várias outras áreas do conhecimento, incluindo a filosofia. Mas acho também que sempre cabe a pergunta: Até que ponto é justo obrigar a sociedade a consumir algo que ela não está demando à pretexto de se considerar aquilo importante? Um político que gostasse de circo em sua infância pode querer subsidiar circos com o pretexto de que eles são parte do patrimônio cultural mas que não há mais demanda por eles. Eu, particularmente, ficaria bem revoltado se soubesse que parte dos meus impostos estão sendo usados para isso. É por isso que eu sempre menciono entre meus colegas a importância em tentarmos mostrar para a sociedade o valor do trabalho que fazemos no laboratório.

        “Com certeza as pessoas preferem um dentista que faça um bom serviço cobrando pouco, porém os que tem mais dinheiro não querem frequentar o mesmo dentista que a ralé. Eles querem se sentir exclusivos e diferenciados. Então eles estimulam um sistema que separa os bons dentistas para eles, e torna apenas os mais dentistas, ou dentistas mal equipados, acessíveis aos mais pobres. O dentista bom que insiste em permanecer acessível, assim como um médico ou professor altruísta que insista em fazer isso, sempre será exceção, justamente porque isso implica em ser “menos produtivo” em termos econômicos, mesmo quando o bem social que ele faz é incrivelmente maior.”

        Me desculpe, mas isso é um completo absurdo. Esse “argumento” de que “os ricos não suportam ver o pobre frequentando aeroportos, shoppings, universidades, etc….” para manterem seu status social pode ser verdade para algumas pessoas mesquinhas e dignas de piedade, mas querer generalizar isso é extremamente preconceituoso. É como se a classe social de uma pessoa definisse seu caráter.

        “O argumento de que o avanço tecnológico retira empregos de baixa qualificação mas os compensa criando novos empregos mais qualificados é extremamente frágil. Os dados que temos hoje mostram tendências bastante duvidosas, e interpretações equivocadas e enviesadas de ambos os lados.”

        Concordo. Pesquisei muito até chegar nessa opinião e lerei esse texto que você me enviou.

        “Eu pessoalmente me posiciono como um crítico do suposto “desenvolvimento tecnológico” civilizado, o que na verdade é o que mais me rende desafetos na esquerda. Com base em Marshall Sahlins e outras pesquisas de antropologia econômica, a ideia de que o avanço tecnológico diminui o tempo de trabalho é colocada em xeque. Novamente, não dá pra pegar só um número final e não analisar historicamente. O “avanço tecnológico” eleva o tempo de trabalho antes de diminuir, e provoca diversos efeitos nesse meio tempo.”

        Concordo também. Repare que algo semelhante ocorreu durante a Revolução Agrícola do Neolítico. Quando as pessoas se sedentarizaram e passaram a plantar seu próprio alimento, sua qualidade de vida e expectativa foi reduzida no início em relação ao que desfrutavam em relação ao tempo em que se sobrevivia da caça e da coleta. Antropologistas sugerem que incetivos sociais e culturais podem ter levado a humanidade à fazer essa mudança mesmo assim.

        Uma coisa que você comentou mais para o início do texto e que esqueci de comentar:

        “Do ponto de vista ecológico, a igualdade de consumo sendo definida pelo padrão de países como os EUA é insustentável.”

        Isso é verdade com a tecnologia atual. Com fontes de produção de energia sustentáveis e métodos mais eficientes, pode-se fazer cada vez mais com um impacto cada vez menor. Acho que não comentei no texto, mas recente eu li um artigo sobre a tecnologia de produção de alimentos do futuro. Bactérias geneticamente modificadas já estão sendo usadas para produzir alimentos consumindo dezenas de vezes menos água e centenas a milhares de vezes menos terra. Em algumas décadas, a comida do mundo será feita em tonéis de aço inox a um custo muito menor que o atual e sem a necessidade de desmatar ou matar animais. Os alimentos ficarão muito mais baratos e tudo o que hoje são lavouras e pasto, poderá retornar ao seu estado natural.

        “O aumento constante da produtividade é um fator de exclusão de populações marginalizadas, principais vítimas da produtividade massiva (da produção de energia, de minérios e de carne bovina principalmente).”

        Pelo contrário, é justamente o que torna esses bens acessíveis a cada vez mais pessoas.

        “A pretensão de que toda a população eleve seu consumo ainda tem considerar as questões ecológicas e culturais, como o racismo por exemplo.”

        Concordo, mas nada disso é um problema para minha argumentação.

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  5. Depois de dormir eu lembre de mais algumas coisas que queria ter dito.

    Novamente, vamos retornar ao caso do artesão.

    Durante um tempo, minha mãe trabalhou com bijouterias. Inicialmente, ela ia até o centro da cidade comprar as peças (miçangas, fio, fecho, embalagens, etc.), confeccionava todo o produto e depois ia vender. Era muito trabalhoso e ela tinha uma margem de lucro pequena.

    Porém, depois de alguns anos, ela percebeu que estavam chegando bijouterias prontas da China a um preço menor do que o que ela pagava pelas matérias primas. Logo, era impossível competir do modo que ela trabalhava antes. O que ela fez? Passou a comprar as peças prontas da China e a revendê-las. Isso poupava uma quantidade enorme de trabalho e permitia que ela ganhasse muito mais do que antes, já que agora podia dedicar todo o seu tempo às vendas. Como o custo da peça pronta era inferior ao do que ela pagava na matéria prima, a margem de lucro por unidade também aumentou.

    Toda vez que um modo de produção mais eficiente surge, ao mesmo tempo que ele acaba eliminando profissões antigas, os custos menores viabilizam muitas formas novas de emprego que antes eram impensáveis.

    Quando as roupas eram feitas sob medida por um alfaiate, ele tinha que cuidar de todo o processo, desde de as medidas do cliente, passando pelo projeto, confecção e venda. Uma vez que as fábricas surgiram, ele não tinha mais como competir sendo alfaiate, mas os preços muito menores das roupas tornaram possível que ele transformasse sua oficina em uma loja para revender os produtos feitos pelas fábricas, uma ocupação que era inviável sem essa mudança na forma de produzir roupas.

    Vemos esse processo ocorrendo diariamente, em que a tecnologia constantemente viabiliza novas ocupações. É por isso que a previsão de que as máquinas tirariam os empregos tem falhado constantemente ao longo da história. Não importa quantos empregos elas tirem, a redução dos custos que elas proporcionam abrem espaço para cada vez mais novas ocupações, ao mesmo tempo em que o custo dos bens e serviços caem, elevando o padrão de vida geral.

    A pessoa só é prejudicada pela competição quando não se adapta às novas condições. Se um técnico que consertava máquinas de escrever se recusar a aprender como consertar computadores, então sem dúvida ele ficará sem emprego…

    Mauro

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    1. Nessa história que você contou sobre a bijuteria não aparecem os custos sociais necessários para essa produção “mais eficiente” na China. Hannah Arendt, uma autora que marxistas odeiam porque comparou Stalin a Hitler, explica que o desenvolvimento das forças produtivas não elimina apenas profissões antigas, mas também pessoas e comunidades que estão estruturadas em torno dessas profissões. Nem todos tem a possibilidade de simplesmente se adaptar aos novos tempos.

      Eu não diria que a previsão do desemprego criado pelo uso de máquinas falhou. O aumento do subemprego ou do trabalho informal na verdade é uma evidência disso. Sua análise é extremamente otimista mas parcial.

      Inevitavelmente, por uma série de razões que não se limitam à responsabilidade individual, o tecido social como um todo é fragilizado pelo aumento da competição e da exigência de se adaptar a exigências mercado. As pessoas perdem a autonomia sobre o se produz. Onde o trabalho estava ligado à arte, por exemplo, o produto que antes também tinha um aspecto cultura se torna agora mera mercadoria. Essas transformações não podem ser desprezadas.

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      1. Mas a China foi justamente o lugar onde a maior parte dos benefícios foi vista. Nas últimas décadas, centenas de milhões de pessoas deixaram a pobreza e entraram na classe média chinesa. Com o novo arranjo, os chineses ganharam, minha mãe (e qualquer outra pessoa que se adaptou como ela) ganhou e os consumidores no Brasil, na China e no restante do mundo ganharam.

        Essas mudanças, sem dúvida, alteram a cultura e o modo de vida. Mas isso é necessariamente ruim? A cultura, assim como a língua, não é estática, ela é dinâmica. Está em constante transformação. Com o passar do tempo, de geração em geração, as pessoas mudam seus hábitos. Vem sendo assim desde o surgimento da humanidade, muito antes de o capitalismo surgir. A única diferença é que agora as transformações ocorrem numa velocidade muito maior.

        Esse processo de mudança não precisa excluir ninguém porque qualquer pessoa pode aprender se quiser. Sem dúvida, para minha avó de 90 anos, aprender a usar o computador não foi tão fácil quanto para mim, mas ainda assim ela aprendeu. Já minha outra avó não quis aprender a usar, e não o fez. Isso sem mencionar as comunidades que deliberadamente escolhem preservar seu modo de vida. Qualquer grupo de pessoas que seja auto-suficiente pode manter-se com os mesmos modos de produção indefinidamente. O motivo de vermos isso raramente é porque, na maior parte das vezes, as pessoas preferem novo estado, onde podem desfrutar de um padrão de vida maior.

        Quanto ao “subemprego” e “trabalho informal”, o problema é que, frequentemente, as pessoas costumam usar essas nomenclaturas com qualquer profissão que não se encaixe nos antigos moldes do trabalho CLT, onde se tem hora para entrar e para sair, férias remuneradas, 13° salário, FGTS, etc. Meu pai trabalhou com CLT durante duas décadas, até ser demitido. Depois disso ele virou autônomo. Ele não tem mais a constância do salário e os demais “direitos trabalhistas” que tinha antes. Mas, em média, trabalha menos e ganha bem mais do que ganhava quando era gerente.

        Um conhecido meu viveu uma situação parecida. Trabalhou por 25 anos em uma empresa com CLT mas acabou sendo demitido com a crise de 2015-2016. Depois ele passou a dirigir Uber, um trabalho que muitas pessoas chamam de precarizado. Pois bem, na empresa ele tinha um salário liquido de R$3.500,00. Ele me disse outro dia que, dirigindo Uber por um tempo semelhante ao que trabalhava na empresa ele costuma ganhar entre R$5.500,00 e R$6.000,00 por mês.

        As pessoas veem camelôs, marceneiros, pedreiros, serralheiros, etc. como profissões precarizadas porque não tem os supostos benefícios e estabilidade da CLT, quando muitas dessas pessoas, não raramente, ganham bem mais do que um funcionário celetista trabalhando a mesma quantidade. E isso não é difícil de entender, já que os benefícios da CLT são quase sempre ilusórios.

        A partir do momento em que a empresa se vê obrigada a pagar FGTS, previdência, férias remuneradas, 13° salário, etc. ela obrigatoriamente irá pagar um salário menor do que pagaria sem esses benefícios. Se não puder pagar porque esse salário ficaria abaixo do mínimo, simplesmente não irá contratar a pessoa, já que ela custaria mais do que produziria. Essa sim, ao contrário da automação, é uma das principais causas para taxas elevadas de desemprego. É fácil perceber isso comparando-se as taxas médias de desemprego nos EUA ao longo das últimas décadas (onde há poucas regulamentações trabalhistas) com a da França (onde há muitas). No caso de elas serem empregadas ainda assim, por outras distorções econômicas, os preços estarão mais altos e, na prática, o salário real será menor. A estabilidade do emprego CLT, quando muito, é benéfica para as pessoas que já estão empregadas. Pelas desempregadas, ela não faz outra coisa a não ser mantê-las fora do mercado, algumas vezes, deliberadamente.

        Isso visto nos EUA dos anos 1920, quando os trabalhadores brancos do Norte, que cobravam salários maiores do que os trabalhadores negros sulistas, pressionaram políticos para aprovarem uma lei de salário mínimo, com o objetivo de evitar que os negros fossem contratados. E assim foi feito. Não foi a primeira nem a última vez em que uma política de exclusão foi implementada travestida de defesa dos trabalhadores.

        Se todas as pessoas compreendessem isso, a CLT já teria deixado de existir há muito tempo, se é que teria existido algum dia… Mas, muitas vezes, nem mesmo os políticos que defendem tais medidas estão cientes desses efeitos colaterais. Outros sabem e agem de ma fé, cientes de que a grande maioria das pessoas acreditará estar sendo beneficiada por essas políticas, tal como como ocorre com os congelamentos de preço.

        Quanto ao aspecto artístico do trabalho, ele pode ter perdido muito dessa característica com a criação da linha de montagem, mas os benefícios trazidos, a meu ver, superam largamente esse prejuízo. Especialmente quando levamos em conta que a redução da jornada de trabalho trazida pelo aumento da produtividade abre espaço para que cada vez mais pessoas possam ter um hobbie. Quando a maioria das pessoas precisava trabalhar 16 h por dia no campo apenas para ter o que comer, bem poucos podiam desfrutar dessa possibilidade.

        Eu entendo que você ache minha visão otimista e parcial. Isso porque nós tendemos a julgar as demais pessoas e o mundo pelo nosso referencial. Para mim, por exemplo, eu tenho uma visão realista e você uma pessimista. Não vou dizer que acredite que minha visão seja totalmente imparcial e livre de viesses porque isso não existe. Acreditar ser imparcial, por si só, já é um viés. Ninguém é totalmente imparcial.

        O que eu posso dizer é que tento ler um pouco de tudo, inclusive muita coisa escrita por pessoas que pensam bem diferente. Não foi a toa que encontrei seu site e li seu texto. Eu leio coisas de liberais e de conservadores, de direita, centro e esquerda, de coletivistas e individualistas. Tenho formação em exatas, mas gosto muito de humanas e biomédicas e tento aprender um pouco de tudo. Eu cruzo informações diferentes e tento enxergar o mesmo problema por mais de um ângulo, para buscar o que me parece ser o mais próximo da realidade… Não raramente, eu me engano e, quando vejo uma explicação melhor ou uma outra abordagem que me parece mais acertada, eu tendo a ir mudando de opinião.

        Mauro

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  6. Algumas correções e comentários adicionais para minhas respostas:

    ” Se bilhões de milhões de pessoas deixando a pobreza e ganhando acesso à bens e serviços que antes apenas os ricos podiam desfrutar e isso não é uma elevação do padrão de vida, então eu realmente não sei o que é.”

    Deveria ser: Se bilhões de pessoas deixando a pobreza e ganhando acesso à bens e serviços que antes apenas os ricos podiam desfrutar não é uma elevação do padrão de vida, então eu realmente não sei o que é.

    “O simples fato de que quanto mais dinheiro você tem, mais você pode ganhar, determina uma estrutura piramidal.”

    Além da redução da utilidade marginal do capital, eu não mencionei a questão dos custos de oportunidade e da informação do mercado.

    Custos de oportunidade existem sempre que se está ganhando menos do que se poderia em uma outra atividade. Um exemplo: mesmo que o Jeff Bezos fosse mais eficiente do que qualquer outra pessoa em passar roupa, isso não significa que seria vantajoso para ele passar a própria roupa. Isso porque no tempo em que ele passaria passando roupa, deixaria de ganhar milhões gerindo a Amazon. É muito mais vantajoso para ele pagar alguém para passar sua roupa, mesmo que essa pessoa fosse menos eficiente nisso do que ele seria.

    Já a informação do mercado diz respeito ao fato de que alguém de fora do mercado pode se beneficiar da informação advinda dos que estão dentro dele. Um novo empresário viu todos os erros e acertos cometidos pelas empresas que já estão no mercado e consegue ingressar nele com muito mais facilidade do que os pioneiros, justamente porque pode copiar o que deu certo e evitar o que deu errado. Isso também é outro motivo de os países pobres (que adotam boas regulamentações e algo próximos de um livre mercado) conseguirem crescer muito mais rápido do que os ricos. Eles não precisam descobrir tudo do zero, podem simplesmente copiar as instituições, leis e modelos que deram certo, importar tecnologia, máquinas e equipamentos.

    “Na verdade, quanto mais elas elas se esforçam, mais os salários diminuem, porque os empregadores tendem a pagar o mínimo possível. Ao mesmo tempo, ao aumentar a concentração de renda, o custo de vida se eleva. ”

    Como eu disse, não é uma questão de esforço, é uma questão de produtividade. Aumento da produtividade significa justamente conseguir produzir mais com o menos esforço. Quanto mais alguém consegue produzir, mais essa pessoa irá ganhar. Um trabalhador mais produtivo vai conseguir um emprego melhor remunerado do que um pouco produtivo. O fato de os empregadores quererem pagar o mínimo possível não afeta isso tanto quanto o fato de os consumidores quererem pagar o mínimo possível por laranjas não muda o fato de que um produtor de laranjas mais eficiente ganhará mais do que um menos eficiente.

    “Sua justificativa de que é menos explorador que outros não muda nada.”

    Há um equívoco aqui, porque eu nunca disse isso. Eu nunca falei que é menos explorador porque não consegui ainda entender onde está a exploração em primeiro lugar. O que eu disse é que uma pessoa aceita trabalhar para uma empresa se julga que ganhará mais nela do que ganharia trabalhando sozinha e não está disposta abrir uma empresa ela própria, seja porque não pode ou porque não quer correr os riscos inerentes a isso. Nunca falei que isso implica em menos exploração, porque não vejo exploração em nenhum dos casos.

    “Produtos mais baratos implicam numa exploração maior do trabalho. Um exemplo: Uma indústria vem para um país pobre porém onde há matéria-prima para seu produto, e emprega a população desqualificada com um salário baixo para extrair e operar as máquinas que fazem o produto. A padrão de vida da população se eleva, ela poupa, estuda, começa abrir seus próprios negócios, exigindo salários melhores. A indústria então se muda para um país mais pobre e reinicia o ciclo. Ela negocia como conseguir a matéria-prima do primeiro país, explora a mão-de-obra barata do segundo, e vende o produto de volta ao primeiro, que já não consegue concorrer porque não tem mais acesso à matéria-prima.”

    Você acabou de descrever (embora com alguns equívocos) um dos processos pelos quais a globalização do capitalismo ajuda a retirar países da miséria. No início, as industrias saíram dos países desenvolvidos e migraram para países pobres, como a China dos anos 1980. Isso encolheu a participação da industria no PIB dos países ricos, mas permitiu que o setor de serviços se expandisse e elevou o padrão de vida dos habitantes desses países porque reduziu o preço dos bens, ao mesmo tempo em que beneficiou muito mais os chineses, que saíram da miséria viraram um país de renda média caminhando para se tornar desenvolvido. Agora, o mesmo processo está ocorrendo na China, onde as indústrias estrangeiras e as próprias indústrias Chinesas estão se mudando para países como os da África subsaariana, permitindo que eles também deixem a pobreza.

    O que eu, novamente, não entendo é onde está a exploração nisso e como esse processo é ruim para as pessoas. Os únicos problemas que consigo ver no desenvolvimento dos países são de ordem ambiental, mas que podem ser corrigidos com as regulamentações corretas e o avanço tecnológico.

    “Não é a China que prejudica os pequenos fabricantes brasileiros, é o capitalismo mesmo. Esses produtores de roupas investiram num mercado que era promissor mas que deixou de ser num piscar de olhos. Sem alternativa, como eles vão consumir? Não importa se a roupa está mais barata, eles vão se empregar na revenda e ganhar bem menos do que quando eles mesmos produziam. Enquanto isso, o aluguel e o preço de outras coisas aumenta ao invés de diminuir.”

    Se você entendeu o restante do que eu disse, já deve ter percebido os erros desse raciocínio. Tem vários problemas na sua lógica, mas eu não quero me repetir novamente.

    Não comentei tudo o que você disse porque já escrevi demais e ficaria muito repetitivo, mas consigo resumir os problemas a dois itens chave:

    1- Não consigo entender a lógica socialista da exploração do trabalho e da mais valia. Me parece que ela advém de um entendimento incorreto de como a economia funciona e de como a riqueza é criada, assim como sua argumentação de como automação e o desenvolvimento tecnológico supostamente precarizam as condições de trabalho a pioram a chamada “exploração”. Eu vejo exatamente o contrário ocorrendo;

    2- É muito difícil para mim entender como os dados que mostram a enorme melhora nos índices de desenvolvimento humano da maior parte da população mundial podem ser enganosos e serem questionados dentro de uma análise sociológica mais ampla. Alguns dados podem ser questionados até certo ponto. Um aumento do PIB no curto prazo não reflete necessariamente uma aumento da qualidade de vida, por exemplo, porque os dados do PIB podem estar inflados por uma expansão monetária e por outros tipos de distorções, mas tem coisas que são difíceis de questionar. Se a porcentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, desnutridas e sem acesso a bens de consumo e serviços básicos, de mortalidade infantil, de doenças caudadas por falta de saneamento, de analfabetismo, etc.. cai várias vezes num espaço de um século, então é bem difícil argumentar que não houve uma melhora expressiva na qualidade de vida das pessoas, a não ser que você tenha uma definição de “qualidade de vida” bem diferente do que a maioria das pessoas julga ser uma vida melhor.

    Mauro

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    1. Antes de mais nada, minha resposta ficou extremamente extensa (15 páginas) porque as questões que você levantou são extremamente complexas. Além disso, entramos em questões que fogem um pouco do tópico do post, que é o anarcocapitalismo. Por isso eu gostaria de pedir que, se possível, continuemos essa conversa em outro lugar. Eu sugiro o reddit r/Filosofia, que tem estrutura de fórum e outras pessoas podem agregar. Você pode sugerir outro lugar, ou se quiser podemos continuar por e-mail. Eu deixo esse convite e vou me limitar aqui aos itens chave que você enumerou. O resto da resposta eu deixo para postar em outro lugar, caso concorde.

      “1- Não consigo entender a lógica socialista da exploração do trabalho e da mais valia. Me parece que ela advém de um entendimento incorreto de como a economia funciona e de como a riqueza é criada, assim como sua argumentação de como automação e o desenvolvimento tecnológico supostamente precarizam as condições de trabalho a pioram a chamada “exploração”. Eu vejo exatamente o contrário ocorrendo;”

      Para ser direto, o problema é que não existe um único “entendimento correto” de como a economia funciona. A economia não é uma ciência exata, ela é uma ciência social aplicada. Nela cabem diferentes concepções ao mesmo tempo. E me parece que você está considerando apenas uma, por isso está com dificuldade de “entender” a “lógica socialista” da exploração do trabalho. É difícil resumir isso em poucas palavras, então terei que me limitar a dizer que para entender esse conceito é preciso entender a base teórica (outros conceitos base, distinções importantes, etc…). Em resumo, mais valia não é exatamente sobre a diferença entre salário e preço do produto. É mais complexo que isso, e falo melhor sobre isso no resto da resposta. Também tenho um resumo sobre o conceito de trabalho alienado em Marx (https://contrafatual.com/2019/08/09/o-trabalho-alienado/).

      Sobre a crítica à automação e à tecnologia, é outro assunto que eu dediquei muito tempo, e é extremamente complexo. Também não existe apenas um ponto de vista válido sobre isso, e tudo depende do entendimento da base teórica, que não é simples. Também tenho vários textos sobre essa questão publicados aqui.

      “2- É muito difícil para mim entender como os dados que mostram a enorme melhora nos índices de desenvolvimento humano da maior parte da população mundial podem ser enganosos e serem questionados dentro de uma análise sociológica mais ampla. Alguns dados podem ser questionados até certo ponto. Um aumento do PIB no curto prazo não reflete necessariamente uma aumento da qualidade de vida, por exemplo, porque os dados do PIB podem estar inflados por uma expansão monetária e por outros tipos de distorções, mas tem coisas que são difíceis de questionar. Se a porcentagem de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza, desnutridas e sem acesso a bens de consumo e serviços básicos, de mortalidade infantil, de doenças caudadas por falta de saneamento, de analfabetismo, etc.. cai várias vezes num espaço de um século, então é bem difícil argumentar que não houve uma melhora expressiva na qualidade de vida das pessoas, a não ser que você tenha uma definição de “qualidade de vida” bem diferente do que a maioria das pessoas julga ser uma vida melhor.”

      Assim como na questão acima, existe mais de um modo válido de interpretar dados. Dados envolvem conceitos qualitativos como “desenvolvimento humano” dependem de pressupostos valorativos que não são unívocos. Não é possível usar um único índice ou uma única abordagem para determinar o que significa “aumento da qualidade de vida”. Há uma série de fatores que podem enviesar as conclusões. Eu concordo que tem coisas que não são comumente questionadas, especialmente nos cursos tradicionais de economia. Mas na filosofia política contemporânea esses questionamentos não são tão incomuns. Posso citar diversas referências que questionam a definição de “qualidade de vida”. Quem é essa “maioria das pessoas” que você cita e como essa ideia se tornou majoritária? Isso sempre foi assim? São questões válidas. Mas não quer dizer que os fatores que você citou são falsos, e sim que são relativos. Dependem do contexto. Por exemplo, há sociedades que não consideram que escrever seja importante para elas, vivem muito bem sem “saneamento básico”, pois não estão aglomeradas em cidades. Enfim, essas melhoras são relativas a uma situação criada por condições específicas das sociedades com Estado ou sociedades civilizadas. Sobre isso, minha recomendação é o livro Civilized to Death, do Christopher Ryan, lançado ano passado. Não tem tradução em português ainda, mas tem uns trechos aqui: https://contraciv.noblogs.org/civilizado-ate-a-morte/

      Nesse mesmo site tem uma publicação sobre pobreza do ponto de vista eco-anarquista: https://contraciv.noblogs.org/pobreza-e-eco-anarquia/

      Aguardo sua resposta para continuarmos a conversa e podemos deixar o link aqui para as outras pessoas acompanharem.

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      1. Jonas, agradeço sua disposição em ler e responder minhas perguntas, assim como seu convite para estendermos o debate e o migramos para outra plataforma. Mas minha intenção ao resumir os problemas nesses dois tópicos era justamente tentar fazer a conversa convergir, não ramificá-la ainda mais.

        Está mais claro para mim agora que o motivo de nossa discordância está num nível muito mais fundamental do que eu pensei inicialmente.

        Eu li alguns outros textos no seu blog, incluindo este:

        https://contrafatual.com/2020/02/08/contra-a-tecnologia/#more-1789

        Baseado na sua última resposta e nesses outros textos, me dei conta de que temos diferenças axiomáticas. Assim sendo, não importa o quanto venhamos a debater, nunca conseguiremos ir muito adiante porque não concordamos nem mesmo em tópicos básicos, como na definição do que é uma vida melhor. Se eu tivesse os mesmos axiomas que você, talvez concordasse com tudo ou quase tudo o que você diz e vice-versa, mas não é esse o caso.

        Como eu mencionei, desde que estava no colégio, eu tive muita dificuldade em entender o conceito de mais-valia porque, para mim, simplesmente não fazia nenhum sentido. Desde então eu li muita coisa em muitos lugares diferentes sobre a teoria da exploração e teoria do valor de Marx, bem como críticas e defesas a elas. Mas quanto mais eu lia o que os defensores dela diziam, menos sentido ela parecia fazer e mais razão eu dava aos críticos.

        Tem coisas que nós discordamos e conseguimos enunciar os motivos. Conseguimos até apontar com relativa precisão onde achamos que estão as causas do conflito. Mas no caso de algumas, incluindo a mais-valia, a discordância é muito mais grave: Eu mal consigo entender a lógica dela. Para mim, é como se a ideia estivesse tão incorreta e fizesse tão pouco sentido que eu não consigo nem dizer onde vejo problemas, porque é como se ela estivesse errada em quase todos os níveis e aspectos.

        Como eu falei, gosto de tentar enxergar as coisas sob vários ângulos diferentes. Consigo entender o ponto de vista de quem defende a pena de morte ou a legalização irrestrita do aborto, por exemplo, embora eu seja contra ambos. Mesmo discordando, entendo a lógica de quem é favor e porque a pessoa os julga corretos ou justificáveis. Mas, quando tento me colocar no lugar de Marx para tentar ver as coisas sob a ótica dele, por mais que eu me esforce, não consigo chegar a lugar nenhum. Imagino que a cabeça dele funcionava de uma forma tão diferente da minha que se tentássemos conversar, simplesmente não nos compreenderíamos.

        Agradeço a cordialidade,

        Mauro

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      2. Poxa Mauro, que pena que chegamos nesse impasse então. Eu acho que foi produtiva a nossa conversa. Eu me identifico com várias coisas que você diz. Meu foco não foi ramificar a conversa, mas demonstrar que as coisas não são tão simples quanto parecem. Com certeza temos pressupostos diferentes, mas é impossível fazer filosofia sem aprender a pensar com diferentes conjuntos de pressupostos. Mesmo onde você vê o fim do debate, eu vejo o começo de outro mais profundo e interessante. Mas eu entendo sua indisposição de entrar nisso.

        Só quero dizer que, da minha parte, acho difícil entender Marx, mas não impossível, e ainda assim, quanto mais eu entendo sobre ele, menos eu concordo. A contradição é que provavelmente você concorde ainda mais com Marx do que eu, pois ainda que diga não ser capaz de entender as ideias dele, você reproduziu várias delas no seus argumentos. Talvez essa dificuldade seja realmente uma questão mais ideológica do que teórica. A sua fala me lembra a de alguns religiosos que simplesmente não conseguem ver qualquer sentido no ateísmo. O fato é que sem entender, não é possível realmente discordar. Sem ver o sentido, não é possível dar razão aos críticos. A não ser que o marxismo não passasse realmente uma insanidade, uma coisa absolutamente sem sentido. E se fosse esse o caso, seria uma patologia ao invés de uma teoria, e todos os marxistas teriam que ser tratados, ao invés de refutados. Não preciso dizer que isso sim é completamente absurdo.

        O desafio de compreender a discordância é algo estimulante pra mim. Eu sinto que existe uma resistência da sua parte. Uma indisposição de entender, e não uma falta de capacidade. Também é impossível discordar de uma ideia em todos os aspectos. Os pontos de concordância, por menores que sejam, são as coisas que permitem a compreensão e o diálogo.

        Talvez você não esteja de fato interessado em se colocar num lugar que permita compreender esse conceito porque deduz que, se assim o fizesse, você seria forçado a concordar com ele, justamente porque você compartilha muito mais premissas com os marxistas do que comigo, por incrível que pareça. Afinal Marx foi influenciado pela filosofia econômica dos ingleses, não questionou os princípios, apenas a aplicação. Enquanto para mim os próprios princípios dessa filosofia econômica são questionáveis. Minha impressão é que seu estranhamento tem mais a ver com uma limitação auto imposta do que uma diferença tão grande assim no pensamento. Mas eu respeito sua vontade de não continuar.

        Agradeço também a discussão. Vou aproveitar o que eu escrevi pra você em outro texto então. Espero que não se importe.

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  7. “Talvez você não esteja de fato interessado em se colocar num lugar que permita compreender esse conceito porque deduz que, se assim o fizesse, você seria forçado a concordar com ele, justamente porque você compartilha muito mais premissas com os marxistas do que comigo, por incrível que pareça.”

    Acho que eu me expressei mal. Não é que eu não compreenda as teorias de Marx do mesmo modo que uma pessoa leiga em física não entende Relatividade Geral. É que, dado o meu conjunto de axiomas, as ideias de Marx me parecem tão incorretas e ele, a meu ver, cometeu tantos erros na aplicação da teoria economia básica, que o marxismo me soa quase absurdo.

    No seu texto, você mencionou que não adianta apontar evidências em alguns casos de anarcocapitalistas, assim como não adianta fazê-lo com alguns terraplanistas. Meu problema é mais nesse sentido: Eu tenho dificuldade em entender a lógica dos marxistas do mesmo modo em que tenho de entender a dos terraplanistas, guardadas as devidas proporções.

    Para mim, é como se eles vissem o mundo e as relações humanas de uma forma completamente deturpada.

    “A não ser que o marxismo não passasse realmente uma insanidade, uma coisa absolutamente sem sentido.”

    Eu não diria insanidade. Embora tenha feito a analogia com o terraplanismo, é claro que não acho que os dois estão no mesmo nível. O terraplanismo, de fato, é uma insanidade. Para mim, de um ponto de vista econômico, o marxismo é só uma teoria extremamente ruim. Tão ruim, que eu mal consigo ver lógica nela.

    É claro que uma pessoa que tenha um conjunto de axiomas totalmente diferente do meu, terá uma visão igualmente distinta. Para ela, o marxismo poderá parecer uma teoria totalmente lógica e, como essa pessoa também enxergará o mundo de forma distinta da minha, poderá até ver uma ótima concordância com as previsões de Marx onde eu vejo total discordância. Ela também poderá achar que o liberalismo econômico é absurdo e ter dificuldade em entender como a cabeça dos liberais funciona. Tudo depende dos princípios de cada pessoa. Como percebi que os nossos são diferentes, vejo que não há muito sentido em prosseguir com o debate.

    Eu não tenho receio de acabar concordando Marx, mas cada vez me convenço mais de que isso só seria possível se eu tivesse um conjunto de princípios muito diferentes dos que tenho. Acho que toda a minha mente precisaria ser estruturada de forma distinta para que o marxismo fizesse sentido para mim.

    E claro, sinta-se à vontade para usar sua resposta para fazer outro texto.

    Mauro

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    1. Agora compreendi melhor. Não é que você não consegue entender, é que você não vê sentido em entender algo que não tem como estar correto a partir dos seus axiomas. Não vou insistir nesse assunto, não quero parecer chato. Mas não acho que ter um conjunto diferente de axiomas impede de ter um debate. Na verdade, axiomas precisam ser tratados como ferramentas, não como algo fixo. Se você se fixa a um dado conjunto de axiomas, você limita bastante sua capacidade de compreensão do mundo. E aí na verdade não tem como dizer se outra visão está realmente incorreta, porque nada comprova que seus axiomas são os únicos válidos ou condizentes com a realidade.

      O que você parece estar dizendo com “dificuldade de entender” parece ser na verdade uma dificuldade de se desprender de um dado conjunto de axiomas que você assimilou. É tudo uma questão de perspectiva, algo muito caro à antropologia.

      Por exemplo, eu consigo ver sentido no terraplanismo. Não o considero insano. Ele é o resultado da afirmação de uma teoria empirista radical até as últimas consequências, é um produto previsível do nosso contexto cultural, da crise de autoridade da modernidade tardia, etc… Também vejo sentido no liberalismo. Partindo do individualismo metodológico é fácil ver a lógica das conclusões liberais. No fundo, nada é absurdo, assim como nada é impossível de entender, nem sequer a loucura. É uma questão de disposição para escavar terrenos que às vezes são extremamente duros. Como me dizem: haja paciência. Converso com pessoas que tem ideias que você nem imagina.

      Os princípios também são mutáveis. Na dialética, é possível aceitar princípios contraditórios ao mesmo tempo, sem ser contraditório. É a síntese das contradições. Mas enfim, são coisas da filosofia. Tenho amigos formados em economia que se “converteram” do liberalismo mais radical ao marxismo mais radical (não por influência minha, obviamente), e minha impressão, sinceramente, é que não mudaram tanto assim. A maioria das posições continuaram exatamente iguais, por incrível que pareça. Mas com isso não quero provocar você a responder. Eu encerro aqui. Até mais.

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      1. Sim, acho que você pegou bem a ideia agora.

        Eu concordo que ter princípios diferentes não impede o debate, e eu já tive muitos (literalmente centenas) de conversas em que escavamos até os níveis mais fundamentais da discussão.

        Mas, neste caso em particular, meu interesse era mais na questão puramente econômica. Específicamente, no conceito de mais-valia. Por isso achei que não faria sentido ir além, uma vez que já vi que o buraco é muito mais embaixo…

        Também encerro por aqui.

        Obrigado,

        Mauro

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  8. Há muitos erros no texto. Vou apontar alguns.
    Ayn Rand, ao contrário do que diz o texto, era crítica do anarcocapitalismo, grupo que ela chamava de “hippies da direita”.
    O capitalismo rejeitado pelo anarquismo não é o mesmo capitalismo defendendo pelos libertários. O Mutualismo de Proudhon é uma espécie de livre mercado (primitiva e cheio dos erros da época). O libertário de esquerda Roderick T. Long diz que “capitalismo” e “socialismo” são palavras com tantos significados distintos que não deveriam ser usadas, causam mais confusão do que esclarecimento.

    “As premissas básicas do anarcocapitalismo são:”

    Não, não, não… essas são as premissas da Praxeologia, metodologia usada pelo economista Ludwig von Mises da Escola Austríaca, que não era nem nunca foi um anarquista de mercado.
    E Escola Austríaca de Economia não pode ser confundida com Filosofia Libertária. A primeira tem uma análise positivista, sem juízo de valor, enquanto a segunda, mesmo sendo a aplicação da primeira, aí sim, tem uma análise normativa.

    Ancaps não precisam necessariamente nem mesmo acreditar na ética libertária ou direito natural. Há ancaps que são utilitaristas como David Friedman (que é da Escola de Chicago).

    A escassez também é válida para o corpo, para a extensão do corpo, para o tempo e qualquer noção de custo de oportunidade é também um exemplo de escassez. A abundância de recursos naturais que ainda não foram extraídos não seria nenhum exemplo de não-escassez para nenhuma escola de economia minimamento séria até onde eu saiba.

    O argumento de que é necessário um estado para existam direitos de propriedade é um non sequitur. Já hoje há registro de contratos e propriedades em blockchain. Além de ser um argumento de ignorância, “só o estado pode fazer tal coisa pq até hoje só o estado fez tal coisa”. Teria que provar que o estado é o única maneira de se realizar tal serviço, o que nunca foi feito. A existência de câmaras de arbitragem, direito internacional, acordo marítimo, acordos privados e muitas outras coisas provam que a alegação é falsa em várias áreas consideradas como “monopólio natural”.

    O Princípio da Não-Agressão não tem como objetivo acabar com a iniciação de agressão ou diminuí-la, é apenas uma noção racionalista ou jusnaturalista de definir o certo e o errado, o que deve ser proibido ou não, baseado em isonomia, lógica e sobrevivência da espécie humana.

    O artigo foi resultado de uma pesquisa extensa de alguém que não está familiarizado com o tema, se confundiu muitos conceitos. Não entendi a insistência em apontar estudos sociais como crítica a alguns pontos já que é uma área de pouco consenso científico e nem de perto tem a seriedade metodológica das ciências naturais. Inclusive, a metodologia das ciências naturais aplicadas às ciências sociais é parte da forte crítica da Escola Austríaca sobre metodologia, sendo esse o tema do Hayek no discurso do recebimento do Prêmio Nobel de Economia.

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    1. É verdade, Ayn Rand criticou o anarcocapitalismo, mas também o influenciou. Uma coisa não exclui a outra.

      “O capitalismo rejeitado pelo anarquismo não é o mesmo capitalismo defendendo pelos libertários”.

      Eu concordo mas notei que você usa o termo “libertário” também num sentido diferente. Pois segundo Camila Jourdan e Acácio Augusto (teóricos anarquistas), anarquistas são libertários, ancaps não são anarquistas nem são libertários. O termo foi apropriado estrategicamente por meio de revisionismo histórico. Usar o termo “libertário” para se referir a anarcocapitalistas (defensores da propriedade privada dos meios de produção) causa confusão. Anarcocapitalistas são “anarquistas de mercado” ou proprietaristas. É verdade que eles têm um outro conceito de capitalismo, mas esse conceito também é questionável. Mutualistas, que defendem um tipo de “livre mercado” anarquista, não são exatamente anarcocapitalistas. Quanto aos anarcocapitalistas “de esquerda”, esse é um assunto mais complexo, que valeria outro texto.

      Sobre as premissas, essa é uma ótima correção. Você tem razão, essas são as premissas da Praxeologia de Ludwig von Mises, e a Escola Austríaca de Economia não pode ser confundida com a filosofia que você chama de “libertária”. Há uma crítica “libertariana” à praxeologia na minha lista de referências. Eu estava citando Alexandre Porto nesse trecho. Ele disse que essas são as “as premissas do anarcocapitalismo”. Certamente sua correção é válida e demonstra que Porto é uma péssima referência até mesmo para ancaps, embora seja famoso.

      Eu citei de passagem o conflito entre ancaps da “ética libertária ou direito natural” e os ancaps utilitaristas como David Friedman. Infelizmente não deu pra aprofundar muito porque o texto tinha um limite de espaço.

      Já sobre a teoria da escassez e da abundância, não me pareceu que você fez uma correção ou um contra-argumento. Você reproduziu o discurso econômico baseado no paradigma da escassez. Eu recomendo ler a antropologia econômica de Marshall Sahlins sobre a abundância original. Embora se trate de uma antropologia da economia e não necessariamente uma escola de economia, existe uma corrente do pensamento econômico influenciada pela crítica ao conceito de escassez. Por exemplo, a teoria do “não-valor” e da pós-escassez.

      “O argumento de que é necessário um estado para existam direitos de propriedade é um non sequitur”.

      Aqui você fez duas acusações de falácia: “uma coisa não se segue necessariamente da outra” e “só porque não temos um exemplo de X não quer dizer que X não seja possível”. Porém, meu argumento não foi que o direito de propriedade se segue necessariamente da existência de Estado. O que eu disse é que, historicamente, o Estado foi a condição de possibilidade do direito à propriedade privada, como você reconheceu na segunda acusação: “até hoje só o estado fez tal coisa”. Então a primeira acusação não é consistente com a segunda. A segunda também ataca um espantalho, pois o argumento não é que não podemos, de modo algum, ter direito de propriedade sem o Estado. Quem teria que provar que isso é possível é quem afirma. Porém, dependendo do que você entende por “Estado”, é bem mais difícil demonstrar isso. Atente-se para a definição logo no começo do texto: anarquistas não se opõem ao Estado simplesmente como instituição governamental. Estado é uma relação de poder. Na teoria sociológica do Estado, as “soluções” ancaps, que envolvem complexos sistemas de acordos tais como os que você citou, acabam por funcionar como um Estado, apenas descentralizado ou privatizado.

      “O Princípio da Não-Agressão não tem como objetivo acabar com a iniciação de agressão ou diminuí-la, é apenas uma noção racionalista ou jusnaturalista de definir o certo e o errado, o que deve ser proibido ou não, baseado em isonomia, lógica e sobrevivência da espécie humana.”

      Realmente parece uma definição mais precisa de um ponto de vista ancap, mas não acho que isso muda substancialmente a crítica ao PNA.

      “O artigo foi resultado de uma pesquisa extensa de alguém que não está familiarizado com o tema, se confundiu muitos conceitos”. Eu aceito essa crítica como elogio. Sim, foi uma pesquisa extensa e eu não estava familiarizado com os conceitos. O objetivo foi apontar fontes que permitam uma resposta mais séria aos ancaps, ao invés de simplesmente ignorar que eles existam. O público alvo do artigo não são os ancaps, mas seus críticos.

      Quando ao debate epistemológico entre ciências sociais e ciências naturais, eu posso falar com mais familiaridade sobre isso porque é minha área de pesquisa. Dizer que existe mais “seriedade metodológica” nas ciências naturais do que nas sociais é um grande equívoco. São áreas diferentes, elas não podem ser equiparadas. Não se pode aplicar a metodologia das ciências naturais às ciências sociais como se existisse um fenômeno econômico que não é um fenômeno social ou humano, e portanto subjetivo. Essa crítica não é exclusiva da Escola Austríaca. Weber diz o mesmo em “Economia e sociedade”. O fato de que nas ciências sociais estudamos Weber e não Menger não se deve ao fato que um “ignora a subjetividade” e o outro não, mas sim que a metodologia de Weber é considerada mais completa, conciliando o subjetivo e o objetivo.

      O fato de que Hayek recebeu um “Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel” (que não é exatamente um prêmio Nobel) não é tão relevante quanto parece. Especialmente se você considerar quantos membros da Sociedade Mont Pelerin, fundada pelo Hayek, faziam parte do comitê que escolhia os vencedores do Prêmio, e o fato que oito membros da Sociedade Mont Pelerin receberam esse prêmio. O fato é que a organização criada por Hayek ajudou a criar esse prêmio com o objetivo de legitimar sua linha de pensamento econômico.

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      1. Creio que “Libertarian” nunca foi um termo para anarco-coletivistas nos EUA como na América do Sul. Termo que surgiu nos EUA para substituir o “liberal” tomado pela esquerda progressista. Mas debates semânticos não me interessam.

        Não há dúvidas que o anarco-individualismo foi uma influência para o libertarianismo junto com a tradição liberal clássica, com nomes como Tucker, Spooner, Spencer, Stirner, se não o próprio Proudhon diretamente. Apesar de todos os erros econômicos desta vertente: teoria valor-trabalho, falta de entendimento sobre juros e preferência temporal e tal. Liberais e anarquistas (anind) já foram aliados dentro da esquerda política no Parlamento Francês.

        Negar a escassez é negar a lógica.

        “Quem teria que provar que isso é possível é quem afirma.”
        Pois é, os ancaps adorariam poder provar isso se deixados em paz. Acontece que isso já está provado, já existe mercado em todas essas áreas. Já existe segurança privada, leis privadas, regulamentação privada, registros privados, ruas e estradas privadas. O ônus da prova se inverte, quem defende o estado que deve justificar por que um monopólio coercitivo e sempre ineficiente (em relação a competição de mercado, claro, todo monopólio gera ineficiência) deve existir em qualquer setor da economia.
        O que gera outra pergunta: Se a sua ideia é melhor que a minha, por que a sua é imposta na base da força, da agressão?

        Weber foi uma grande influência em Mises, ele é bastante citado no livro Teoria & História. Desconheço a teoria dele. Meu argumento foi mais no sentido de que empirismo e consenso no meio das ciências sociais não pode ter o mesmo peso que nas ciências naturais. Karl Marx, um charlatão que nada acertou, ser tratado como um deus indica que há algo muito errado com as ciências sociais, e principalmente com a elite acadêmica de humanas em países irrelevante para a produção científica mundial e iliberais como o Brasil. O pós-modernismo prova que a imbecilidade não tem limites nessa área. Poderia dizer o mesmo das malignas influências de Freud e seus seguidores em vários campos. As ciências naturais são imunes a tudo isso graças ao método científico que separa o joio do trigo. Mas esse método não funciona tão bem assim nas ciências sociais, e nem foi desenvolvido para isso.

        “O fato de que Hayek recebeu um “Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel” (que não é exatamente um prêmio Nobel) não é tão relevante quanto parece.”
        Não é mesmo, o que eu citei não foi o prêmio, foi o discurso do Hayek quando recebeu o prêmio! Prêmio “Nobel” de economia é dado pelo Banco Central da Suécia, a EA defende a extinção dos bancos centrais, logo, receber um prêmio desses é um demérito. Se uma instituição de planejamento econômico é quem vai dar um prêmio de economia, a piada já está pronta. Mas discurso do Hayek continua brilhante, se chama A Pretensão do Conhecimento.

        “O Nobel confere a um indivíduo autoridade que, em economia, nenhum homem deveria possuir… Isso não é um problema para as ciências da natureza.”
        FA Hayek

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      2. Não é só semântica:

        “One gratifying aspect of our rise to some prominence is that, for the first time in my memory, we, ‘our side,’ had captured a crucial word from the enemy . . . ‘Libertarians’ . . . had long been simply a polite word for left-wing anarchists, that is for anti-private property anarchists, either of the communist or syndicalist variety. But now we had taken it over…” – Murray N. Rothbard, The Betrayal Of The American Right.

        A anarco-individualismo está em constante desenvolvimento. O que você considera como “erros econômicos” depende muito da sua posição política, e não necessariamente do quanto estudou economia. As discussões sobre a teoria valor-trabalho; taxa de juros; preferência temporal e outras do tipo continuam abertas.

        Não neguei a escassez mas sim questionei a escassez como condição natural da humanidade. Este questionamento está presente na sociologia, na filosofia e na antropologia da economia. Por exemplo em “A primeira sociedade da abundância” de Marshall Sahlins e “Introdução à dádiva” de Godbout, a pobreza é produto da civilização, e apesar da escassez ser tomada como base pelo paradigma econômico dominante, outras perspectivas econômicas partem da abundância.

        Não faz sentido cobrar “ônus da prova” de uma afirmação que não foi feita. Eu estava respondendo a duas acusações de falácia. A primeira foi “uma coisa não se segue necessariamente da outra”, referindo-se ao Estado e ao direito à propriedade privada. Eu respondi que não afirmei relação de necessidade, mas sim de afinidade, pois uma coisa se seguiu da outra na história, o que é admitido na sua segunda acusação: “só porque não temos um exemplo de X não quer dizer que X não seja possível”. Não fiz afirmações sobre possibilidade lógica. O que eu disse é que, dependendo do que você entende por “Estado”, é bem mais difícil demonstrar que uma coisa pode acontecer sem a outra. O conceito anarquista de Estado, citado no começo do artigo, implica que “poder econômico sempre foi e sempre será poder político”. O ponto é que, se podemos abolir a propriedade, não precisamos nos preocupar com esse problema. Quem precisa demonstrar que é melhor perseguir um anarquismo de livre mercado do que um anarquismo com ausência de mercado é quem defende isso. E isso precisa ser defendido não apenas em termos lógicos, abstratos ou ideais, mas em termos concretos, políticos, materiais e sociologicamente informados.

        O que a globalização do mercado comprova? A questão de fundo não seria a suposta naturalidade do mercado, isso é, das mercadorias com valor de troca? A discussão aqui é sobre como esse tipo de mercadoria poderia existir sem nenhuma forma de coerção social ou exploração do trabalho. Essa discussão tem vários níveis e atravessa várias concepções econômicas e políticas diferentes.

        Um dos pontos principais do artigo é que atacar o Estado não significa necessariamente defender o livre mercado, e vice-versa. As opções não se limitam a monopólio coercitivo do Estado ou a livre competição de mercado. Kropotkin foi um dos anarquistas que teorizou sobre uma economia sem Estado e sem mercadoria no sentido capitalista.

        “Se a sua ideia é melhor que a minha, por que a sua é imposta na base da força, da agressão?”. Onde você vê minha ideia sendo imposta na base da força e da agressão? Como você sabe qual é minha ideia? A discussão aqui é sobre anarcocapitalismo, não sobre “minha ideia”, que eu mal citei aqui. Ainda assim, não faria sentido defender uma ideia simplesmente atacando outra. Eu não falei simplesmente da minha ideia, mas sim da minha pesquisa.

        Eu conheço razoavelmente bem a teoria de Weber e consigo ver em que sentido ela pode ter influenciado Mises: Weber abriu caminho para uma metodologia da subjetividade. O empirismo nas ciências sociais é um pouco diferente do empirismo nas ciências naturais, porque o próprio pesquisador é parte do objeto que ele estuda (a sociedade), não podendo se colocar completamente acima desse objeto, como um observador neutro, portanto sendo obrigado a considerar diferentes interpretações sobre o mesmo fenômeno. Isso não significa, porém, que não tenhamos métodos para qualificar essas interpretações em termos de confiabilidade. Chamar Karl Marx de “charlatão que nada acertou” é tão errado quanto tratá-lo como um deus. A contribuição dele é limitada, mas não inexistente. Querer ver “algo muito errado com as ciências sociais” só pelo suposto peso que Marx adquiriu nessa área é besteira. Quando fiz mestrado em sociologia, por exemplo, quase ninguém era marxista. Além disso, os marxistas são desunidos, vivem brigando entre si. E tem um péssimo hábito de chamar tudo que discordam de liberal ou pós-moderno. Acho que as pessoas de fora dessas áreas tem uma ideia bastante equivocada sobre a “elite acadêmica de humanas”. De todas as críticas que podemos tecer à academia, ser “demasiadamente marxista” é a menor delas. A empolgação com Marx é mais comum entre alunos fazendo estágio de licenciatura, e geralmente estes estão apenas começando a compreender as teorias marxistas. Acreditam que falar sobre socialismo dará maior capacidade crítica aos alunos, pois fazer uma crítica à ideologia dominante é melhor do que apenas reproduzi-la para adequar os alunos ao mercado. O problema é que a ideologia liberal prega que a ideologia dominante na verdade é o comunismo. Eles geralmente se utilizam de um discurso anticomunista criado durante a guerra, para diminuir a influência do bloco soviético. No Brasil, por exemplo, a direita trata professores que simplesmente estão apresentando uma crítica ao status quo como se fossem doutrinadores. A precarização do ensino público piora a situação.

        Apesar disso, diferente do que você afirmou, o Brasil está muito longe de ser irrelevante para a produção científica mundial. É um dos mais significativos, inclusive na área de humanas. Chamar pesquisadores de humanas de “pós-modernos” é uma crítica extremamente rasa. Dizer que “a imbecilidade não tem limites nessa área” é uma crítica vazia, não adiciona nada significativo ao seu argumento, é uma simples ofensa, está no nível mais baixo da escala de relevância argumentativa. Isso faz com que seu discurso ganhe tons sensacionalistas, dando ainda menos credibilidade às suas opiniões. Ao invés de atacar meus argumentos, você ataca minha formação. Achar que as ciências naturais “são imunes a tudo isso graças ao método científico que separa o joio do trigo” é extremamente ingênuo. Se você admite que as ciências naturais não estudam os fenômenos sociais, então onde você quer chegar com isso? Que tipo de contribuição à análise do anarcocapitalismo pode vir de uma perspectiva que ignora as ciências humanas?

        O problema de nos ater a esse discurso do Hayek em específico é que, apesar de ser realmente interessante em termos de epistemologia, ele não implica necessariamente numa defesa do anarcocapitalismo, nem sequer do liberalismo de mercado. Hayek se baseia em alguns dos avanços que já estavam presentes na área da filosofia da ciência, e você pode ter razão se disser que a escola austríaca como um todo avançou mais no estudo da epistemologia contemporânea do que a maioria dos marxistas. Mas, ainda assim, isso não adiciona argumentos a favor do anarcocapitalismo. Discutir a importância da escola austríaca na crítica epistemológica é entrar num outro assunto, pois a economia anarcocapitalista não é uma consequência direta de uma determinada compreensão lógica ou epistemológica. Se o que está tentando afirmar é que a economia pode analisar a sociedade com um método superior ou independente do resto das ciências humanas, como se a economia fosse uma ciência social mais exata ou tivesse métodos mais próximos das ciências naturais, então entramos numa discussão sobre reducionismo econômico, determinismo econômico, positivismo econômico e assim por diante.

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  9. Cara, eu amei seu texto, que foda!

    Acompanhei bastante das suas respostas nos comentários também, muito bom.

    Bem bacana, de verdade! Vou salvar esse texto para ler em outros momentos e usar em algum momento oportuno.

    Eu vim parar aqui pq tava puto com anarcocapitalistas, ai pesquisei no google em tom de ironia “pq anarcocapitalistas existem?” e daí me deparei com esse seu texto e comecei a ler e me surpreendi com a qualidade e com a sua ótima análise, curti bastante.

    Me pegou bastante a questão deles analisarem e basearem sua teoria numa realidade inexistente, meio que ignoram como as pessoas realmente se comportam na sociedade e como é a verdadeira lógica do capital, do dinheiro, etc… Por exemplo: o dono do meio de produção/propriedade vs. os trabalhadores empregados na sua fábrica.

    Colocam o individualismo como algo maravilhoso mas simplesmente esquecem que na verdade o dono quer mais é dinheiro e tá pouco se fudendo pros seus trabalhadores. Não tem como as coisas serem 100% privadas, pq só vai gerar mais exploração e acúmulo nas mãos dos mais ricos.

    Bem bacana o trecho do “Por que as pessoas se tornam anarcocapitalistas?” e achei interessante tb a suposição que você fez de elas terem sofrido algum trauma psicológico ou algo do tipo. Queria ser psicólogo pra estudar individualmente os anarcocapitalistas e ver se dá pra traçar um paralelo entre eles.

    Mas sei lá, os caras vivem em uma outra realidade, não enxergam a sociedade como ela realmente é.

    Enfim, desculpa pela minha escrita esdrúxula e nada enriquecedora e profunda, comparada aos outros comentários, mas resumindo:

    Amei o texto, excelente, fiquei admirado. E parabéns por “tankar” os comentários dos carinhas e ir dialogando bonitinho com eles e argumentando tudo certinho, respondendo à altura com ótimos pontos e teorias.

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  10. Janos, antes de mais nada, parabéns pelo texto e pelo alto nível das discussões. Embora eu discorde da maior parte do seu pensamento (já que sou um “quase-anarcocapitalista”), queria que todas as pessoas debatessem respeitosamente desse modo, ao invés de apenas trocarem ofensas.

    Eu acho que a maior parte dos pontos que me incomodaram no seu texto já foram comentados por outras pessoas, então não vejo necessidade de abordá-los. Vou tentar me concentrar apenas no que acho que vale a pena me aprofundar um pouco mais.

    Uma das coisas que gosto de dizer às pessoas quando me fazem perguntas sobre como uma sociedade anarcocapitalista poderia funcionar, é deixar claro que governo e Estado são coisas diferentes. É claro que pode haver inúmeras definições para um mesmo termo, não quero aqui impor a minha. Meu único objetivo é transmitir a ideia que está na minha mente. Se as pessoas entenderem isso, então as palavras terão cumprido seu objetivo, ainda que haja discordância sobre qual seja definição mais correta para elas.

    Qualquer associação de duas ou mais pessoas, necessariamente, precisa de regras para poder funcionar corretamente. À medida que o número de pessoas cresce, aumenta a pressão para que haja especialização das funções, incluindo as administrativas. Logo, eventualmente, um governo irá se formar. A existência de um governo não é um problema para os anarcocapitalistas. O problema surge quando esse governo perde a legitimidade ao passar a usar meios coercitivos para obrigar pessoas a participarem de atividades com as quais elas não concordaram previamente.

    Um Estado, no fundo, nada mais é do que um governo que passou a agredir (ou que sempre agrediu, o que é mais comum) os membros de sua jurisdição. O Estado é um governo monopolista que não admite competição, eliminando-a a qualquer custo, incluindo pelo uso da força. Assim, para implantar o anarcocapitalismo, a grosso modo, a única coisa que precisaria ser feita é quebrar o monopólio Estatal sobre a governança de uma região. Isto é, basta permitir que todos os que não concordam com as leis existentes e que não queiram continuar participando delas, sejam livres para aderir ou criar novos sistemas de lei e governos. É claro que, para que isso pudesse funcionar, precisaria haver um reagrupamento das pessoas que pensam de forma semelhante. Imagino que a melhor maneira de fazer isso seria permitindo o surgimento de cidades privadas, como já existe em muitos países

    A ideia de uma cidade privada é ter uma empresa, ou mesmo um grupo de pessoas, que construa uma cidade e tenha completa autonomia para geri-la da forma que julgar melhor. Essa empresa (ou grupo) estabeleceria um conjunto de regras que formaria uma espécie de constituição da cidade, com seu próprio sistema de justiça, polícia e até prisões. Todos os que concordarem com essas regras, se mudariam para ela. Por uma questão de eficiência, muitos serviços nessas cidades (como iluminação, limpeza e pavimentação das ruas, segurança, justiça, etc.) seriam oferecidos de forma coletiva. Não há uma forma muito eficiente de individualizar a segurança das ruas, por exemplo. Se um criminoso é capturado e preso, isso beneficia toda a cidade (externalidade positiva) logo, todos deveriam pagar por esse serviço. Isso seria feito através de uma taxa, semelhante à cobrada nos condomínios de hoje.

    Neste ponto, muitas pessoas me perguntam se essa taxa não seria exatamente o mesmo que um imposto. A resposta é não. A grande diferença é que, diferentemente do imposto, as pessoas que moram nessa cidade concordaram com a existência dessa taxa antes de se mudarem para ela. Ela estava claramente descrita no contrato de compra do imóvel. Além disso, diferentemente do que ocorre nos países de hoje, ainda que 95% dos moradores de um cidade concordassem, a empresa que a gerência não pode elevar essa taxa ou criar taxas novas, porque isso violaria o contrato inicial e feriria o direito dos 5% que não concordaram com a mudança. Se uma alteração no contrato se mostrar muito vantajosa, ela só pode ser feita por meio de um acordo. Os outros 95% dos moradores poderiam, por exemplo, oferecer uma indenização aos 5% restantes. Se eles concordarem, então tudo certo. Isso valeria não apenas para a taxa, mas para qualquer outra mudança nas regras que violasse o que foi acordado durante a compra. Certamente, situações assim já estariam até previstas no contrato original.

    Isso é muito diferente do sistema democrático atual em que se os governantes escolhidos pela maioria decidirem dobrar a tributação ou alterar qualquer outra lei, quem não concorda não pode fazer nada a não ser se submeter à vontade da maioria ou ir embora do país sem receber nenhum tipo de compensação. No fundo, mesmo numa democracia ideal em que os governantes representassem fielmente a vontade da maioria, o que haveria ainda seria um sistema despótico em que a maioria manda na minoria. Já nesse sistema de cidades privadas, cada pessoa só irá se associar à governos com os quais concorde. Ninguém é obrigado a viver sob um governo que abomina simplesmente por ter sido voto vencido. Evidentemente, haveria cidades para vários níveis de renda diferentes. Mesmo dentro de uma mesma cidade, haveria regiões mais valorizadas e regiões mais acessíveis, como já ocorre nas cidades atuais.

    Esse modelo permitiria, inclusive, que socialistas pudessem criar suas próprias cidades, onde seria, por exemplo, proibido ter a posse individual de meios de produção, apenas coletiva na forma de cooperativas. Nessas cidades, os moradores poderiam dividir sua renda em partes iguais, criando uma sociedade igualitária. O comércio com outras cidades não-socialistas poderia ser proibido (para evitar o que eles entenderiam como “competição injusta”). O único critério é que tudo isso precisaria estar previsto em contrato, sendo que ninguém poderia ser obrigado a se mudar para a cidade nem impedido de sair dela. Particularmente, eu acho que sem poder obrigar as pessoas a ficarem nas cidades contra a vontade, ela acabariam falindo em questão de meses por falta de moradores assim que começasse a faltar comida e outros recursos básicos. A não ser que fossem comunidades muito pequenas, ou mesmo clãs familiares. Aí poderiam funcionar, caso as pessoas tivessem o perfil adequado para isso, já que sociedades assim existiram no passado e existem até hoje. Não vejo problema em deixar que as pessoas tentem se associar desse modo desde que, novamente, não haja coerção de nenhuma maneira.

    Aproveitando que comentei novamente sobre coerção, quero aproveitar para entrar no segundo tópico que acho interessante: A questão da “exploração capitalista”.

    Uma das diferenças cruciais entre os defensores de um mercado de trabalho desregulado (sejam anarcocapitalistas, minarquistas ou apenas liberais no sentido clássico) e os que acreditam que precisa haver proteção para os trabalhadores (seja através de regulação Estatal ou mesmo abolindo completamente o sistema capitalista) é a crença na existência da exploração da mão de obra dos empregados pelo patrão. Para o primeiro grupo (em que estou incluído) a ideia de exploração através da mais-valia está errada porque não acreditamos que haja nada de imoral na propriedade privada dos meios de produção. Para nós, ser dono de uma fábrica não é diferente de ser dono de um imóvel. Pagar um salário para que pessoas possam trabalhar nessa fábrica permitindo que elas produzam mais do que conseguiriam sem os meios dos quais o dono da fábrica dispõe e, posteriormente, receber uma parte dessa produção adicional não é explorar os empregados. É uma troca que é vantajosa tanto para o dono da fábrica, quanto para os funcionários.

    Alguém nos comentários acima fez uma descrição muito boa disso como sendo um tipo de aluguel. O dono da fábrica aluga seu espaço, logística e máquinas para os funcionários em troca de uma parte da sua produção assim como o dono de um imóvel aluga sua casa para um inquilino. Porque ao invés de pagar aluguel, o inquilino não compra ou constrói sua própria casa? Pode ser que ele não tenha dinheiro para isso ou, como ocorre frequentemente, ele até poderia comprar sua própria casa, mas simplesmente não julga que vale a pena. Poderia se tratar, por exemplo, ser uma pessoa que vivesse trocando de emprego e se mudando de cidade, de modo que comprar uma casa não faria sentido para ela. Ou, pode ser que seja mais vantajoso investir o dinheiro e pagar o aluguel do que gastá-lo comprando uma casa. Do mesmo modo, os funcionários poderiam se juntar e montar uma cooperativa para trabalhar por conta própria ou mesmo abrir sua própria empresa mas, ao invés disso, preferem, vender sua mão de obra para uma empresa já existente porque julgam mais vantajoso para eles. Talvez eles até preferissem abrir sua própria empresa, mas não tenham o capital para isso e não estejam dispostos a se arriscar com um empréstimo. Talvez não acreditem que tenham as habilidades corretas para gerir a empresa ou, simplesmente, não gostem do trabalho administrativo. Ou, talvez, eles estejam dispostos a correr o risco de um empréstimo ou mesmo tenham o capital para iniciar um negócio e as habilidades necessárias para tal mas não tenham a paciência de esperar os muitos anos que serão necessários até que essa empresa comece a dar um retorno maior do que o salário que podem ter no presente.

    O ponto chave é que se a relação de trabalho não foi estabelecida de forma coercitiva, então ela só existirá se for vantajosa para ambas as partes. Pode ser mais vantajosa para uma do que para a outra (às vezes para o patrão, às vezes para o funcionário) mas, necessariamente, é vantajosa para ambos. Ainda que o funcionário esteja em uma posição em que ele precise daquele trabalho para sobreviver e, naquele momento, por alguma motivo muito específico, não possa procurar um outro melhor, isso não faz com que haja exploração por parte do patrão. Isso causa confusão nas discussões porque muitas pessoas enxergam a possível falta de opção do funcionário como um argumento para defender que a escolha dele de trabalhar nessa empresa não foi livre. Logo, a ideia de que a relação de trabalho só existe ser for vantajosa para ambos deixaria de valer, já que ele não tinha outra escolha. Mas é aí que está o equívoco.

    Quando os liberais/libertários usam o termo “liberdade”, eles não querem dizer que a pessoa fará tudo o que quer. Eu gostaria de poder voar, mas não posso porque não tenho asas. Eu gostaria de ser astronauta, mas não posso porque não tenho as habilidades necessárias para isso. Eu queria ter uma Ferrari, mas não posso porque não tenho dinheiro para comprá-la. Isso quer dizer que eu não sou livre? Desde que nenhum outro indivíduo esteja me coagindo a fazer algo, então eu sou livre, ainda que fosse cego, surdo, mudo e tetraplégico. Isso porque, nesse contexto, liberdade significa apenas poder viver sem ser coagido por outras pessoas. Isso nada tem a ver com o que posso ou não fazer dadas as minhas restrições financeiras, físicas ou mesmo mentais.

    Mas, vamos supor que, originalmente, a fábrica pertencia a um grupo de pessoas. Era uma cooperativa criada por elas que funcionava na região já há muito tempo. Certo dia, uma empresa chega ao local e começa a competir com a cooperativa. Essa empresa dispunha de uma logística melhor, máquinas mais avançadas e uma capacidade maior de expansão. Por ser mais eficiente, ela conseguia vender os produtos a um preço menor. O resultado final foi a falência da cooperativa. Os antigos donos dela passam a trabalhar na empresa, ganhando menos do que ganhavam na cooperativa antes. Neste caso, há exploração? Novamente, a resposta é não. O motivo é que não há nada de errado em competir com outra empresa (seja ela uma multinacional ou uma pequena cooperativa) e em ser mais eficiente que ela. Pelo contrário, isso é desejável. Apenas o aumento de eficiência da produção é capaz de elevar o padrão de vida geral. Para os antigos donos da cooperativa, a chegada na nova empresa pode não ter sido vantajosa, mas para todo o restante da população que consome os produtos, a queda no preço elevou o seu padrão de vida. Qual seria a alternativa? Proibir a empresa de vender para a região preservando a cooperativa e os ganhos dos donos dela ao mesmo tempo em que priva todo o restante da população de poder desfrutar de um padrão de vida maior? Onde estaria a ética nisso?

    Alguém poderia perguntar: Mas e se esse processo estiver acontecendo em todos os setores da região, de modo que os demais moradores, que antes também eram donos de outras cooperativas ou eram artesãos, também tenham se visto obrigados a abandonar seus antigos ofícios para agora trabalharem em empresas que estejam se mudando para o local porque não conseguiram competir com elas? Neste caso, todos os moradores não estariam empobrecendo enquanto os donos das empresas enriqueceriam? Mais uma vez, a resposta é não. Se os moradores não conseguiram competir com essas empresas porque elas eram mais eficientes, então a produtividade geral aumentou e, junto como ela, o padrão de vida. A renda nominal das pessoas pode ter caído, mas os preços, obrigatoriamente, caíram mais. Logo, necessariamente, houve aumento geral da renda real.

    Uma última contestação: E se muitas dessas novas empresas não sejam necessariamente mais eficientes, sejam apenas empresas maiores praticando dumping? É justamente nesse ponto que entra a importância do livre mercado. Havendo livre competição, mesmo que uma empresa praticasse dumping e conseguisse dominar o mercado, assim que ela elevasse os preços estaria novamente abrindo espaço para a concorrência. Obviamente, ela não pode fazer dumping para sempre, ou ficaria constantemente dando prejuízo. O mesmo vale para cartéis, holdings e outras práticas monopolistas. Sem proteção e privilégios fornecidos por um Estado, nenhuma dessas estruturas se sustenta por muito tempo e todas acabam se esfacelando por causa da competição externa.

    Acho que eram esses os pontos que queria abordar. É certo que, de um ponto de vista filosófico, é possível contestar qualquer coisa. Pode-se contestar o que de fato é ético e justo, bem como o que é melhora no padrão de vida, o que constitui uma agressão, etc. Meu desejo apenas é deixar clara a forma como penso e porque não acho válida a ideia de que o capitalismo seja exploratório. Tenho certeza de que muitas pessoas (provavelmente a maioria delas) irá discordar de mim, mas ao menos elas precisam entender do que estão discordando. Me parece que o autor do texto entende bem do que está falando. Ao menos, a qualidade de sua argumentação é muito boa, ainda que eu discorde da maior parte do que você disse por achar as premissas ou o raciocínio estejam equivocados. Seja como for, estou convencido de que não se trata apenas alguém atacando um espantalho, que é o que vejo em 99% por cento das críticas ao anarcocapitialismo e ao próprio capitalismo, de maneira geral.

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    1. Obrigado por considerar meus argumentos dignos de uma resposta elaborada, Augusto. Embora eu realmente discorde do que você diz, você demonstra compreender o raciocínio anarcocapitalista, e o expõe de um modo que julgo ser sincero, isso é, você realmente acredita no que está dizendo e parece ter interesse real pelo debate, por isso espero que acolha meus contrapontos como eu acolho os seus. Assim creio que teremos uma discussão saudável. E parabéns pela coragem de expor suas ideias, sabendo que elas são controversas, para alguém que você considera capaz de fazer boas argumentações.

      Seus argumentos tem certo sentido. Eu pretendo apenas deixar nítido o motivo pelo qual discordo, e quais são as premissas, raciocínios ou conclusões que considero equivocadas, e assim possibilitar que você também entenda melhor a crítica anarquista ao capitalismo e porque anarquistas partem da premissa que não existe capitalismo sem exploração do trabalho.

      Seu raciocínio parte de um determinado conceito de governo que se confunde com as ‘regras’ para que a ‘associação’ entre um grande número de pessoas ‘funcionem’. Você começou apresentando uma distinção entre governo e Estado. Pelo que eu entendi, você vê o governo como um mal necessário, algo que infelizmente se forma eventualmente na história humana, por causa do crescimento populacional, que aparentemente você considera ser uma tendência natural em todas as sociedades humanas: “À medida que o número de pessoas cresce, aumenta a pressão para que haja especialização das funções, incluindo as administrativas”. Você não citou referências, mas essa é uma ideia que aparece, por exemplo, em Hobbes. Uma das premissas que fundamentam o conceito de Estado para Hobbes é que o homem não é um animal político por natureza, como julgava Aristóteles. O homem é um animal carniceiro, que precisa de um soberano absoluto para conseguir viver em sociedade. A teoria política de Hobbes conclui que a sociedade necessita de uma autoridade central forte o suficiente para evitar a guerra de todos contra todos. Mesmo Locke, o “pai do liberalismo”, acreditava que a vida sem governo produziria um “estado de natureza” indesejável ou insustentável. Para referência: https://plato.stanford.edu/search/searcher.py?query=Political+Philosophy

      O anarquismo em geral é contra toda forma de governo e entende o Estado não como um tipo de governo, como você descreveu, mas como aquilo que governa. Logo, onde há governo, há Estado, e vice-versa. Se você acredita na necessidade de governo, a questão se reduziria a que tipo de Estado você quer ter: absoluto, democrático, etc… Mas existem basicamente duas posições anarquistas sobre a organização política:

      Anarquistas sociais acreditam que a auto-organização social, ou autogestão, não implica em Estado, pois não implica em hierarquia, embora possa implicar em formas de administração pública com especializações de funções que lembram governos participativos, democracia direta ou gestão por conselhos. Não negam que a associação entre pessoas precisa de regras, mas distinguem as regras necessárias para manter formas organizacionais complexas das leis criadas e mantidas pelas formas organizacionais autoritárias, onde existe autoridade política de uns sobre outros. Essa autoridade diminui a autonomia ou autodeterminação dos indivíduos em nome de interesses particulares, e eles acreditam que os interesses coletivos e individuais podem ser alcançados sem que existam pessoas mandando e outras obedecendo. A organização anarquista implica em ‘regras’ que não são impostas, mas não seguem leis de mercado ou da propriedade privada. A ordem social libertária não surge da livre competição entre indivíduos, nem de uma ética da propriedade ou de uma dedução lógica e a priori sobre a ação humana. Toda organização social humana é produto de um determinado tempo histórico, criado a partir de certas condições materiais, seleção de valores e interpretações que podem mudar com tempo. Não derivam de algo abstrato, imutável ou apriorístico, mas sim de condições materiais e sociais transitórias e incompletas, mas que são observáveis na experiência. A complexidade da realidade social humana é impossível de ser completamente compreendida pelo pensamento lógico-dedutivo. A teoria política socialista não é redutível à filosofia, à ética, à economia, à metafísica ou ao direito. Assim, anarquistas sociais acreditam que a organização social complexa pode existir sem Estado, sem governo (autoridade política) e sem propriedade privada dos meios de produção, por meio da autogestão. Kropotkin é a principal referência nesse ponto.

      Outros anarquistas questionam a necessidade de uma organização social complexa. Emma Goldman, por exemplo, tentou combinar o anarquismo social com o individualismo de Stirner. Mas a teoria anarquista como um todo questiona a necessidade de governo, justamente porque o governo não surge espontaneamente a partir de algo que seria necessário para lidar com o crescimento populacional ou aumento da complexidade social. Antes, é o governo que produz esse aumento populacional ou da complexidade, pois esse crescimento espantoso só é possível a partir de um modo de produção que possibilite o acúmulo e a propriedade privada, e que levam à criação do mercado e do capitalismo. Goldman diz que o governo e a anarquia são como duas forças que sempre existiram: uma representa o desejo de dominar, e a outra, o desejo de ser livre de toda forma de dominação.

      A questão aqui exige que se pergunte qual é a origem do fenômeno da “curva J” da população humana (o crescimento exponencial repentino dos últimos séculos). Segundo a dinâmica populacional, a população humana oscilou por centenas de milhares de anos dentro do limite de capacidade de carga do seu meio, como qualquer outra espécie. Há uma mudança relativamente repentina para um crescimento exponencial que possibilitou os aglomerados urbanos. Não foi o desenvolvimento das sociedades ou aumento da qualidade de vida humana que produziram esse crescimento. Ele pode ser considerado, em termos de ecologia humana, como um crescimento fora da escala ecológica, o que em qualquer outra espécie só acontece quando há uma desadaptação da população ao seu meio. Na anarquia verde, entendemos isso como uma consequência da alienação entre humano e não-humano. Quando uma espécie é tirada do seu habitat natural e introduzida em outro bioma, ou a população despenca ou ela cresce demais, consome todos os recursos e então despenca. De todo modo, não estar adaptado ao seu meio é sempre insustentável. Em algum ponto, criamos um modo de vida que não se adapta ao meio no qual sempre vivemos. Sua frase, “à medida que o número de pessoas cresce”, sugere que tal crescimento teria acontecido espontaneamente. A antropologia coloca isso em questão: tal crescimento populacional que torna a sociedade “ingerenciável” pelas ‘regras’ anteriores não surge do nada, nem é um produto evolutivo. Ele surge dentro de um projeto político de colonização do espaço geográfico, que chamamos de “acúmulo primitivo”.

      Então, embora tais sociedades dependam de especialização do trabalho, criando novas necessidades sociais, elas não surgem espontaneamente. O crescimento populacional extraordinário nem sequer ocorreu na espécie humana como um todo, mas sim nos povos que adotaram modos de vida expansionistas, isso é, esse crescimento é resultado da violência inerente ao processo de acúmulo original de propriedade provada nas mãos dos primeiros “governantes”. Inicialmente esse acúmulo foi possibilitado pela escravidão de povos conquistados em guerras. Se a existência de um governo não é um problema para os anarcocapitalistas, ela não pode deixar de ser um problema para anarquistas. Não existe governo legítimo porque não existe autoridade legítima. Sem opressão não haveria governo. Por isso a antropologia do Pierre Clastres é considerada como uma das bases da teoria anarquista contemporânea: ele trocou a ideia de que povos originários vivem em sociedades sem Estado, onde o anarquismo não faz sentido, para a ideia de que vivem em sociedade CONTRA o Estado, portanto são anarquistas. Seguindo também o conceito de Mauss, são sociedades sem mercado. O anarquismo enquanto modo de vida contra o Estado e a propriedade é o modo de vida humano mais sustentável que já existiu.

      Embora a antropologia anarquista mais recente tenha revisto a ideia de que as sociedades anarquistas precisam necessariamente ser comunidades de pequeno porte, como você pode ver em Dawn of Everything, de David Graeber e David Wengrow, ela continua afirmando que o modo de vida humano sempre foi anarquista, sem governo (porque sem autoridade) e sem mercado (porque sem propriedade).

      Então, quando você define Estado como um governo ilegítimo, você parece recorrer a um conceito muito diferente daquele usado na maioria das teorias anarquistas, sem explicar porque essa definição seria melhor. Para aceitá-la, seria preciso aceitar que existem governos legítimos, o que contradiz o básico da teoria anarquista. Além disso, basta não agredir os membros de sua jurisdição para ser legítimo? E quanto aos de fora? E quanto aos não-humanos? E quanto ao solo, rios e oceanos? Essas problematizações precisam ser feitas também.

      Distante da sua definição, anarquistas buscam a ausência de governo, e enxergam outras possibilidades além da escolha entre competição e monopólio. Não queremos apenas a liberdade de escolher livremente nossos próprios senhores feudais, sistemas de leis ou governos. Queremos o fim da autoridade. Ao invés de cidades privadas, com polícia e prisões, queremos comunidades sem donos, sem polícia, e sem prisões. A Cruz Negra anarquista é uma das organizações anarquistas mais antigas que existem, e defende o abolicionismo penal desde o século XIX. Sem compreender o abolicionismo penal e a crítica às prisões, à polícia e ao direito positivo, fica difícil compreender o anarquismo.

      A criminalidade urbana não tem uma solução real dentro de um regime proprietário. É a propriedade que produz o roubo. Sem propriedade não há roubo, sem roubo não há propriedade, e sem uma limitação para o roubo, que na prática implica em Estado, também não há propriedade. Se todos pudessem roubar sem consequência, a propriedade perderia o sentido. Por isso não existe propriedade privada numa sociedade fora da lógica penal. Sem autoridade/governo não há propriedade. Capturar criminosos não beneficia a sociedade porque apenas alivia o efeito, não atinge a causa. A polícia não mantém a paz, a polícia mantém a guerra de classes. Ela é um exército em guerra permanente contra aquela parte da população que não se adequa ao modelo social centrado na propriedade privada. Não há sustentabilidade social numa sociedade que precisa de um exército para coagir uma parte das pessoas a conviver com a outra. Onde há polícia, há guerra de classes. Onde há guerra de classes, necessariamente haverá revolução, revolta ou genocídio. A violência não pode ser evitada pela polícia. Ela existe para proteger a classe proprietária. A esquerda convencional concorda que todos deveriam pagar pela polícia. Anarquistas acham que a polícia deveria acabar.

      A proposta de cidades privadas parece neo-feudalismo. Se as pessoas nessa sociedade ideal irão concordar com a existência de uma taxa para manter a polícia porque existe um contrato, isso implica em Estado. Como garantir a validade do contrato se você não tem uma instância superior para recorrer caso uma das partes não cumpra sua palavra? Você levantou apenas alguns dos problemas que poderiam ocorrer. Quando você tenta resolver todos os problemas sociais gerados pela propriedade, é questão de tempo até que suas soluções se tornem instituições equivalentes ao Estado. Num plano ideal todo mundo estaria concordando com o contrato inicial. Mas com o passar do tempo, quando os que assinaram o contrato original morrerem e surgir outra geração que não assinou o contrato, mas que precisou se adaptar a ele, esse contrato funcionará do mesmo modo que o “contrato social” da teoria política moderna, que dá origem ao atual conceito de Estado.

      Nem todos os anarquistas concordam com a democracia. Veja, por exemplo, o livro Da Democracia à Liberdade: A Diferença entre Governo e Autodeterminação, lançado em 2019 pelo coletivo Crimethinc. Trata-se de uma crítica anarquista ao governo da maioria, que no entanto passa longe da proposta proprietarista do Hoppe em sua crítica à democracia (que no fundo é uma apologia à monarquia). Concordamos que a “vontade da maioria” também pode ser despótica. A solução anarquista, porém, não é privatizar o governo, mas deixar de depender dele.

      Uma cidade privada jamais poderia ser socialista porque o socialismo não é um modo de organização de cidades. Socialismo é uma proposta que implica numa mudança global, de todas as sociedades do mundo. Não faria sentido proibir o comércio com cidades não-socialistas, porque o socialismo não é um modo de produção nem um tipo de governo (embora nem todos na esquerda concordem com isso, alguns acham que a China é socialista, por exemplo, mas nunca vi anarquistas defenderem isso). Para você talvez o problema se limite à existência de um governo mantido pela “coerção”. Para anarquistas, porém, o problema é a existência do governo em si.

      A exploração da mão de obra dos empregados pelo patrão é uma teoria sociológica e uma realidade histórica, não é uma crença ideológica. Não é fácil compreender o conceito de mais valia, é preciso estudar com as referências corretas. A existência de mais-valia não tem nada a ver com moralidade ou imoralidade da propriedade privada dos meios de produção. É sobre a tendência econômica de acúmulo de capital e eficiência da produção, no qual o valor que fica com o trabalhador tende a cair na medida em que o lucro do dono sobe. Existem críticas anarquistas às teorias econômicas marxistas, mas elas também passam longe do ideal de liberdade de mercado. Portanto, se você quer criticar essa teoria, é preciso primeiro conhecê-la.

      Existem dois tipos de mais-valia: a absoluta e a relativa: “A produção de mais valia absoluta gira exclusivamente em torno da duração da jornada de trabalho; a produção da mais valia relativa revoluciona totalmente os processos técnicos de trabalho e as combinações sociais.’’ (MARX, O Capital, Livro 1, Vol. 2, p. 586). Marx não ignora o benefício que o aumento da eficiência da produção poderia gerar para a sociedade, mas esse benefício não justifica os efeitos que a acumulação de capital produz. Böhm-Bawerk às vezes é citado como um autor que teria refutado a teoria da mais-valia de Marx, dizendo que quando trabalhadores investem uma parte do seu salário em empreendimentos que geram lucro (deixando o dinheiro render na poupança, por exemplo), estão concordando com o lucro capitalista. A resposta marxista é que os trabalhadores mais pobres não têm a opção de poupar uma parte do salário porque precisam dele todo para sobreviver. O lucro capitalista que vem do investimento na bolsa, por exemplo, depende do crescimento do lucro de algum grande proprietário, o que não pode ocorrer sem envolver a exploração do trabalho das pessoas mais pobres e mais sem opção em alguma parte do processo, porque elas são a mão-de-obra mais barata. A origem de toda riqueza é a produção de bens materiais necessários para a vida. No fundo, todo lucro é feito de mais-valia.

      Ser dono de uma fábrica não é diferente de ser dono de um imóvel. Mas a maioria dos anarquistas é contra a propriedade privada de imóveis, por isso apoia a tática de ocupação de imóveis abandonados. Especulação imobiliária também implica em mais-valia. Proudhon, por exemplo, não considerava válido manter a propriedade de um terreno ou casa que você não está usando enquanto outras pessoas não têm onde morar. Cobrar aluguel vai totalmente contra a proposta anarquista.

      Não é o dono da fábrica que permite que as pessoas produzam mais, são os trabalhadores que permitem que o dono exista. Eles pagam tanto o próprio salário quanto o lucro do patrão com o próprio trabalho. Ninguém acumula capital a partir do próprio trabalho, todo capital é fruto do trabalho de outras pessoas. “Capital, por isso, não é apenas comando sobre trabalho, como dizia A. Smith. É essencialmente comando sobre trabalho não pago. (…) O segredo da auto expansão ou valorização do capital se reduz ao seu poder de dispor de uma quantidade determinada de trabalho alheio não pago.” (MARX, O Capital, Livro 1, Vol. 2, p. 617). Se alguém tem uma fábrica, é porque outros trabalharam para ele. A noção de que o dono é um indivíduo extraordinário que compartilha o que tem com outros para gerar riqueza social é totalmente ideológica. Não é preciso ser socialista para entender porque isso é falso, basta estudar sociologia do trabalho.

      Na sociologia do trabalho, o discurso que você está reproduzindo é um discurso de justificação da exploração. O ponto é que a fábrica não tem valor em si. Sem trabalhadores, qualquer negócio gera prejuízo, e a pandemia nos deu uma comprovação inegável disso. Os trabalhadores não dependem nem um pouco do dono, mas o dono depende absolutamente dos trabalhadores. Não é o dono que dá emprego, é o empregado que gera lucro para o patrão, com o qual ele monta o negócio. Seu raciocínio supõe que, sem o dono, não haveria inovação nem aumento da eficiência da produção. As cooperativas e a inovação em sociedades sem propriedade privada provam que isso é falso. Tanto cobrar aluguel quanto pagar salário necessariamente implica em exploração do trabalho, não importa quão baixo seja o aluguel ou quão alto seja o salário. Para entender isso, é preciso olhar para o modo de produção capitalista como um todo, não somente para interações entre agentes econômicos particulares.

      Se você olhar para a sociedade e ver somente indivíduos com interesses particulares tentando maximizar sua vantagem comparativa, não é possível compreender a crítica ao capitalismo, porque não tem como entender o capitalismo. Por exemplo, Marx não estava lutando por salários melhores. O socialismo não é sobre melhorar as condições de trabalho. É sobre acabar com o capital. O capital é o problema, não a ganância do patrão. O patrão pode ser a pessoa mais generosa do mundo. A questão é estrutural, não individual. Por isso não pode ser resolvida por ações individuais. A questão de classes não é sobre pessoas que pagam mal seus empregados. É sobre uma estrutura social que se impõe sobre os indivíduos, todos eles, independente do caráter de cada um. Compreender a diferença entre problema moral/individual e problema político/estrutural é fundamental para entender a crítica ao capitalismo.

      Me parece que, por não considerar essa diferença, você gasta tempo tentando resolver falsos problemas, como por exemplo explicar porque alguém prefere pagar um aluguel do que comprar um imóvel, sem considerar que, na proposta anarquista, ambas as coisas seriam impossíveis, porque terrenos e casas seriam de todos, não poderiam ser vendidos ou alugados. Assim como acontece em sociedades originárias, onde você não é dono de nada. Tudo é emprestado pela comunidade. A oca é meramente um abrigo, sua casa real é a terra, que não tem dono porque ela é uma pessoa, ela tem subjetividade, tem mente, tem espírito, assim como o rio, a floresta e os animais. As estruturas materiais que possibilitam a existência de uma sociedade são criações comunitárias, elas permanecem sendo de todos que viveram e morreram para torná-la possível, assim como de todos que ainda nascerão e viverão nela. Esse “todos” inclui seres humanos e não-humanos também. Essa é a teoria social mais antiga que existe. Novamente, nem todos na esquerda pensam assim, muitos são desenvolvimentistas e não conseguem dialogar com o movimento indígena, por exemplo, porque consideram, mesmo que implicitamente, esses modo de vida como “atrasados”. Porque acreditam no conceito iluminista de razão e de progresso.

      Para nós, anarquistas verdes não tem como estabelecer uma relação de trabalho de modo não coercitivo, porque o trabalho só pode existir num regime proprietário, e a propriedade depende de coerção para existir. O proprietário não pode se virar sozinho, isso é, precisa de trabalhadores para viver. O trabalhador tudo produz, inclusive a fábrica em que trabalha e as máquinas que usa, e o dono depende absolutamente dele. Somente um sistema coercitivo pode colocar ambas as partes numa condição de negociação, pois sem coerção, não há nada que alguém possa possuir que outro não possa possuir. Não há vantagem a ser oferecida num mundo em que não há trabalho sendo explorado. Faz sentido negociar com quem não tem o que oferecer? Como alguém pode acumular algo para oferecer em troca do trabalho? Toda moeda de troca precisa vir da exploração do trabalho alheio. Num mundo em que todos têm livre acesso aos meios de produção, não há como acumular o suficiente para pagar pelo trabalho alheio. É sempre mais vantajoso “trabalhar” para si mesmo e compartilhar o que sobra com todos. A propriedade privada dos meios de produção nem sempre existiu, ela é relativamente recente, e ela é a única coisa que possibilita a relação de trabalho capitalista, e esta só existe porque em algum ponto existiu escravidão e colonização, isso é, acúmulo primitivo de capital, governo e forças armadas limitando o acesso das pessoas aos recursos e meios de produção.

      Ninguém precisa de patrões para viver. É o patrão que precisa de trabalhadores para viver. Se há trabalhadores em dificuldades por falta de emprego, é somente porque a polícia protege a propriedade. Sem isso, não há vantagem a ser negociada. Portanto, do ponto de vista anticapitalista, a negociação com o patrão é sempre coercitiva, pois a coerção da polícia está implicada nela. O dono só negocia porque há um homem armado pronto para agredir quem tentar viver sem vender sua força de trabalho aos donos dos negócios. Por que você acha que a polícia bate em moradores de rua, tira pessoas de imóveis que estavam abandonados, confisca o material do camelô, humilha o cara que roubou uma caixa de leite enquanto trata o deputado que roubou milhões da merenda das crianças como se fosse um deus, prende o maconheiro preto e pobre mas é parceiro dos grandes traficantes de cocaína? Mata indígenas que só querem viver nas suas terras? Não é falha de caráter, não é porque a polícia é mal treinada ou corrupta, é porque ela existe pra isso. O capitalismo não pode se sustentar sem oprimir pobre. Basta deixar a favela em paz para o capitalismo entrar em crise. Quando a periferia se organiza e deixa de depender dos exploradores de trabalho, os lucros despencam, e os ricos se jogam dos seus prédios, afundados em dívidas. Esse é o capitalismo real. Para não ver a exploração do trabalho é preciso não olhar para a realidade social do trabalho.

      É lógico que ser livre não é ser deus. Somos limitados porque somos seres vivos. Mas a liberdade que anarquistas buscam é uma que existia antes do Estado e do capitalismo. Mesmo a pessoa mais rica do mundo não tem essa liberdade. Aquilo que você possui acaba possuindo você. Para ser rico, é preciso obedecer ao sistema capitalista. O próprio ideal de progresso é fruto da alienação. Por que precisamos de aumento constante da eficiência? Por que precisamos de máquinas cada vez mais avançadas? A lógica do sistema capitalista nos torna escravos da eficiência, escravos das máquinas, acabamos servindo a elas, como componentes de uma máquina gigantesca e fora do nosso controle. O avanço se torna um fim em si mesmo, e seu retorno social é um grande prejuízo. Temos acesso à internet, mas estamos extinguindo a vida marinha. O preço do progresso é muito mais alto que seus benefícios.

      Isso não é uma questão moral. Não se trata de certo e errado. Se trata do que funciona. A competição capitalista só parece funcionar quando analisada de modo parcial, ideológico, enviesado, abstrato, fora da realidade material e ignorando boa parte do que sabemos sobre política econômica, ciências sociais e história. Essa é a contradição. Você acha que o aumento de eficiência da produção elevou o padrão de vida geral. Elevou mesmo? Se você reduzir tudo a uma questão do que é mais eficiente, você perde a noção da realidade, passa a olhar para um modelo matemático bastante lógico porém inaplicável na realidade concreta. Quem produz comida de modo mais eficiente: povos forrageadores ou o agronegócio? Superficialmente, parece que o agronegócio é muito mais eficiente, pois produz muito mais comida com muito menos trabalho humano. Na lógica do mercado, o agrotóxico e a agricultura industrial diminuíram o preço dos alimentos, aumentaram a disponibilidade e salvaram o mundo da profecia malthusiana, alimentando uma população que cresce exponencialmente. Mas quando você leva em consideração todos os custos ocultos da produção de alimentos, a coisa se inverte. Essa “eficiência” depende da exploração de petróleo, uma fonte não renovável de energia barata. Para cada caloria que o agronegócio produz, ele queima várias calorias de combustível fóssil, que precisaram de séculos para serem produzidos, liberando gases poluentes, esgotando os nutrientes do solo, acabando com a água, extinguindo espécies, produzindo mudanças climáticas, pandemias e guerras. Na análise profunda, que a economia convencional geralmente não faz, o que perdemos é muito mais do que ganhamos. Povos forrageadores conseguem produzir o que precisam com um custo total muito menor. O capitalismo não é apenas baseado na exploração de trabalho humano, é baseado na exploração e destruição sistemática de seres vivos. Ecocídio, em outras palavras.

      Então, se o melhor argumento que existe em defesa do capitalismo é que ele está melhorando nosso padrão de vida ao produzir coisas de modo mais eficiente, esse é um argumento extremamente frágil, que depende de uma crença ideológica no progresso da civilização em relação aos modos de vida originários, por exemplo. E aí, esbarramos numa questão central da antropologia: o etnocentrismo. O ganho com a eficiência produtiva é um ganho relativo, que só é real no contexto fechado de uma sociedade que não teria outra opção senão criar leis para a propriedade privada e seguir o imperativo do avanço tecnológico constante e do trabalho automatizado, ignorando todos os custos humanos e ambientais desse processo como se eles fossem inevitáveis. Mas, assim como o governo, não são. É esse detalhe que faz toda a diferença, porque descarta a única vantagem que o capitalista teria para barganhar. O capitalismo só pode oferecer solução para os problemas que ele mesmo criou, mas sempre criando novos problemas, novas necessidades e novas dependências.

      Anarquistas não são anticapitalistas por ideologia. Eles o são porque, como você mesmo demonstrou, não existe capitalismo sem governo. E anarquistas são contra o governo por definição. Essa é a base do anarquismo. Se opor ao Estado enquanto tipo de governo que agride ou interfere na economia não é suficiente para ser anarquista. A teoria anarquista não abre espaço para se pensar numa forma legítima de governo, seja de poucos sobre muitos ou de muitos sobre poucos. Isso é o que o diferencia das demais propostas socialistas. Assim como não existe capitalismo sem propriedade, não há governo sem autoridade, e a anarquia é necessariamente o contrário de autoridade.

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      1. Cara, acho que você não percebeu, mas quando diz que “o trabalhador tudo produz” está invalidando completamente o seu argumento de como a propriedade privada permite que haja exploração. Se os trabalhadores produzissem tudo, incluindo as máquinas e a fábrica onde trabalham sem precisarem do patrão para nada, então mesmo no sistema atual, onde há propriedade privada, o poder de barganha do patrão já seria zero e eles não teriam nenhum incentivo para vender sua mão de obra ao invés de abrir uma cooperativa.

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      2. O poder do patrão seria zero se o Estado não protegesse seus interesses. Sem doutrinação e polícia, o que o patrão poderia fazer para impedir greves, sindicatos, coletivização dos meios de produção e revolução social? Uma coisa não invalida a outra: o trabalhador tudo produz, mas a propriedade privada dos meios de produção impede que ele seja dono daquilo que produz. Não há “incentivo” para vender sua mão de obra, o que há é coerção.

        Patrão é uma criação da sociedade de classes. Os proprietários dos meios de produção nunca foram necessários para a produção, pois nem sempre existiram. Essa é uma condição relativamente recente da história humana, relacionada ao Estado. Quando Marx diz “Se o trabalhador tudo produz, a ele tudo pertence”, ele está dizendo que aquele que produz é o dono legítimo daquilo que produz. Porém, o capital é feito de exploração do trabalho. No capitalismo, aquele que produz deixa de ser dono daquilo que produz. O trabalho é trocado por salário, que é sempre menor do que o valor daquilo que se produz. Ninguém é livre para sair do capitalismo, assim como não é livre para viver sem o Estado. Há uma dependência criada por um sistema de coerção. Trabalhadores são educados para acreditar no capitalismo, e coagidos a não questionar essa estrutura. O corporativismo não prejudica apenas pequenos negócios, ele também destrói qualquer iniciativa anticapitalista. A estrutura dessa sociedade é que dá vantagem para o capitalista, mas a estrutura é mantida por violência.

        A crítica ao capitalismo exige que questionemos a ideia de que indivíduos agem somente em vista de incentivos. É preciso considerar as condições materiais e sociais que mantém as pessoas reféns de uma relação de trabalho que aumenta a desigualdade econômica: os ricos ficam mais ricos vendendo o produto que não é fruto do trabalho deles, enquanto os pobres ficam mais pobres porque recebem um salário menor do que o valor daquilo que produzem.

        Por que os trabalhadores aceitam? Primeiro, porque são educados para acreditar no capitalismo mesmo que os dados sociológicos demonstrem que ele é injusto. O discurso econômico dominante tem o mesmo papel que a igreja tinha na idade média: manter a “fé” das pessoas no sistema. Segundo, porque se eles se revoltam contra essa estrutura, serão massacrados pelo Estado. A crítica ao capitalismo visa o fim da exploração do trabalho e da sociedade de classes, o que implica no fim da propriedade privada dos meios de produção, o que acabaria com os privilégios da classe dominante, logo esta classe faz de tudo ao seu alcance para impedir que as pessoas compreendam o funcionamento do capitalismo e se oponham a ele. Eles investem uma boa parte de seu poder econômico e para adquirir influência cultural, mantendo trabalhadores reféns de uma ideologia que justifica a exploração, assim como a religião justificava o poder dos reis, e os soldados puniam quem se revoltasse.

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      3. Eu tentei responder sua mensagem diretamente, mas o botão “responder” não aparecia nela, então estou respondendo usando a mensagem inicial.

        O Estado não protege os interesses dos capitalistas, ele os viola. Não apenas os deles, mas de todos na sociedade ao roubar sua propriedade. Ninguém precisa de Estado para ter propriedade privada. Sem polícia Estatal, haveria (como já há) polícia e segurança privadas. Além disso, a existência da propriedade privada é o que permite que cada pessoa fique com aquilo que produz. Sem ela, tudo o que alguém criasse pertenceria a todos (que seria o mesmo que não pertencer a ninguém), não a quem criou.

        A ideia de que os trabalhadores recebem menos do que produzem está fundamentada sobre uma teoria de formação de preços errada. Há mais de 100 anos já se sabe que o valor de um item é igual à sua utilidade marginal e não ao número médio de horas de trabalho necessárias para produzi-lo, como acreditava Adam Smith. A distinção entre “valor de troca” e ” valor utilidade” não faz sentido e é um conceito há muito superado em economia. Procure por “Marginal Revolution (Economics)” no Google. Os trabalhadores não recebem menos do que produzem, recebem mais. Esse excedente é o motivo de eles trabalharem para alguém que oferece a eles máquinas, logística e infraestrutura ao invés de tentarem trabalhar sozinhos. Se comprar ou construir a própria fábrica fosse sempre mais vantajoso para eles, então já não haveria mais empresas, apenas cooperativas. Se o patrão não agregasse valor aos produtos, ele seria um peso morto tanto quanto um funcionário que não produzisse nada e a própria competição do mercado faria com que as empresas falissem frente às cooperativas, já que essas últimas seriam mais eficientes.

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      4. O Estado é um dos objetos de estudo das ciências sociais e das ciências políticas. Nessas áreas, temos algo chamado Teoria Geral do Estado (TGE), uma disciplina que estuda a origem, a estrutura, a organização, o funcionamento e as finalidades do Estado. A TGE nos informa sobre a relação entre Estado e capitalismo. O Estado é imprescindível para o avanço do capitalismo. Pesquise autores como Meszáros e Antunes, que identificam o papel do Estado na regulação e desregulação das relações sociais capitalistas. Sua afirmação de que o Estado simplesmente viola os interesses dos capitalistas contradiz as conclusões das principais referências no assunto, assim como sua afirmação de que ninguém precisa de Estado para ter propriedade privada. Historicamente a propriedade privada foi legitimada pelo poder estatal. Há pouca controvérsia na área quanto a isso. Então minha dica é que procure verificar a confiabilidade das referências que você está usando para fazer essas afirmações.

        Quando você sugere que segurança privada pode substituir a polícia estatal, está contradizendo uma compreensão comum entre pesquisadores de segurança pública e sociologia da violência. Max Weber, por exemplo, demonstra que o monopólio estatal do uso da violência é uma condição de possibilidade para o capitalismo. Se não fosse pelo policiamento público, a propriedade privada seria facilmente expropriada por milícias privadas, e a propriedade se concentraria nas mãos daquele que controlar o maior exército, como de fato ocorreu na Antiguidade e Idade Média. A vida na sociedade moderna exige o policiamento público. A ideia de policiamento privado substituindo o policiamento público sem que haja um sistema que garanta a igualdade econômica implica na impossibilidade de evitar o monopólio ilimitado da economia, que no fim funciona como um Estado.

        A propriedade privada precisa ser legitimada por uma instância acima dos indivíduos e interesses particulares. Além disso, a crítica à propriedade privada dos meios de produção não implica em ter que dividir tudo que você tem com todo mundo (quem defendeu isso foi Jesus, não Marx). Essa é uma concepção equivocada. O marxismo defende a propriedade coletiva dos meios de produção, mas não necessariamente elimina o conceito de propriedade pessoal. Além disso, é impossível produzir os meios de produção sozinho, por isso eles não podem ser propriedade privada. A maioria dos produtos é resultado de cooperação entre vários trabalhadores. A ideia é que cada um trabalhe de acordo com sua capacidade e receba de acordo com sua necessidade.

        Afirmar que “a ideia de que os trabalhadores recebem menos do que produzem” está equivocada é bastante problemático. Há várias respostas a essa ideia e várias críticas à teoria da utilidade marginal disponíveis. Além disso, temos diferentes críticas à teoria do valor-trabalho, vindas das mais diversas correntes econômicas, incluindo liberais, marxistas, neomarxistas e anarquistas. O conceito de mais-valia permanece em desenvolvimento: há várias formas de mais-valia. Não falta no meio marxistas análises sobre os argumentos de Carl Menger, Ludwig von Mises, Böhm-Bawerk, Hayerk e Rothbard. Ver por exemplo a crítica de Nikolai Bukharin, ainda 1919, e de muitos outros que vieram depois dele. Isso quer dizer que a existência de uma corrente econômica que considera inválida o conceito de mais-valia (de acordo com sua própria lógica) não necessariamente invalida o conceito. Sendo que a economia não é uma coisa só, há espaço para diferentes correntes coexistirem.

        Há muitos argumentos explicando porque a utilidade marginal não pode eliminar a teoria do valor-trabalho tão facilmente. Dizer que a distinção entre valor de troca e valor de uso é ” um conceito há muito superado em economia” também é controverso. Há muitos economistas atuais que a defendem, ainda que tenham desenvolvido os conceitos para além de Marx. Por exemplo: https://revistas.pucsp.br/index.php/rpe/article/view/11757:

        “O objetivo deste artigo é ressaltar a relevância teórica da categoria valor de uso na teoria de Marx. Este conceito é entendido em sua significação econômica que aparece na relação com as condições sociais de produção, tanto quando é influenciado por elas, como quando influi nessas condições. Neste sentido, chama-se de formal ao valor do uso que não restringe o seu significado às propriedades materiais da mercadoria. Sua importância pode ser percebida pelo fato dele ser o responsável pelas especificidade do que se chama de mercadorias especiais.”

        Não é a primeira vez que alguém me responde citando esse argumento de que na verdade os trabalhadores recebem mais. A outra pessoa no caso citou a questão da taxa de lucro. Mas esse argumento é frágil, porque você precisa pressupor que a propriedade privada dos meios de produção é legítima, ou seja, não questiona como os donos das máquinas adquiririam as máquinas. Isso despreza a exploração do trabalho a priori. Você mesmo admite que “construir a própria fábrica” não é vantajoso. Oras, como as fábricas surgem então? Se você ignorar as questões sociais da acumulação primitiva que tornam os trabalhadores reféns de um sistema que os explora, não vão mais estar fazendo uma análise histórica e sociológica do fenômeno do capitalismo. Será uma análise idealista, que parte de uma realidade abstrata onde todo mundo tem liberdade de escolha plena, podendo escolher entre trabalho assalariado ou criar sua própria empresa. Mas a realidade não é assim, criar sua própria empresa nem sequer era possível até nem pouco tempo, e mesmo hoje é algo extremamente complexo, que exige muito capital, e isso é justamente o que os trabalhadores não tem. Sem contar com os argumentos que os próprios liberais usam sobre como o Estado não incentiva a criação de pequenas empresas, valorizando o corporativismo, isso é, a aliança entre grandes empresas e o Estado.

        “Se o patrão não agregasse valor aos produtos, ele seria um peso morto tanto quanto um funcionário que não produzisse nada e a própria competição do mercado faria com que as empresas falissem frente às cooperativas, já que essas últimas seriam mais eficientes”.

        Precisamente. Novamente, se estivéssemos num modelo ideal onde o sucesso dependesse somente da eficiência da produção, e o único fator que determinasse o poder do patrão fosse sua capacidade de “agregar valor aos produtos”, você poderia estar certo. Mas não é assim que funciona no capitalismo real. O suposto valor que é agregado pela organização hierárquica do trabalho é artificial, é criado por mecanismos de proteção do próprio sistema corporativo, que precisa garantir o controle sobre os trabalhadores. Você está a um passo de concluir que patrões só existem por causa da aliança entre capitalismo monopolista ou oligopolista e o poder estatal. Só falta ligar os pontos.

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      5. A resposta para seus questionamentos sobre segurança privada foi dada pelo Augusto. O problema é que você confunde propriedade privada com propriedade individual. Segurança privada não implica necessariamente cada indivíduo contratando seus próprios policiais. Também inclui modelos de segurança coletiva oferecidos por cidades privadas ou, até mesmo, associações de cidades privadas. Governos privados podem atender a um número enorme de pessoas, tanto quanto qualquer Estado. A diferença é que um governo privado precisa convencer as pessoas a participarem dele ao passo que um Estado se impõe pelo uso da violência.

        E claro, se você procurar, vai encontrar economistas que contestam a teoria da utilidade marginal até hoje. Entre os que não têm conhecimento de economia então, irá encontrar uma multidão. Nenhuma teoria, jamais, é universalmente aceita. Mas o fato de ainda haver pessoas que não aceitam o heliocentrismo e a evolução das espécies não significa que não haja um amplo consenso na comunidade científica sobre essas teorias e que as críticas a ela devam ser levadas a sério. A teoria do valor-trabalho está para a economia hoje quase como o geocentrismo está para astronomia.

        Você está usando um raciocínio circular para justificar porque existe exploração. Sua lógica é: Existe exploração porque a propriedade privada dos meios de produção é ilegítima e propriedade dos meios de produção é ilegítima porque eles foram adquiridos com base na exploração do trabalho alheio. Você acredita que o patrão não tem direito sobre as máquinas porque as máquinas foram adquiridas na base da exploração e usa essa suposta ilegitimidade da propriedade das máquinas para justificar porque as relações de trabalho são exploratórias. É como dizer que o céu é azul porque reflete a cor do mar e o mar é azul porque reflete a cor do céu. Além disso, eu não disse que nunca vale a pena começar o próprio negócio. Só disse que isso nem sempre é o mais vantajoso para todas as pessoas em todos os momentos. É óbvio que muitas vezes vale a pena, tanto que novas empresas surgem todos os dias. Apple, Amazon, Google, Disney, Nike e YouTube começaram em garagens. Conheço gente que começou uma empresa literalmente do nada. Sua afirmação de que é sempre necessária uma grande quantidade de capital é simplesmente falsa. Não é necessária nenhuma “acumulação primitiva de capital” e muito menos colonialismo e escravidão para iniciar o modo de produção capitalista. Basta que haja poupança e investimento. Comece a conversar com alguns empresários e pergunte como eles começaram seus negócios. Veja quantos deles já começaram grandes investindo um fortuna herdada de algum tataravô escravocrata. Se esse número chegar a 1% eu ficaria bastante surpreso.

        Mesmo se você considerar heranças legítimas, adquiridas com base no trabalho dos antepassados, ainda verá que a grande maioria dos empresários não herdou nenhuma fortuna, começaram pequenos. Isso é verdade até mesmo entre os bilionários:

        https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2014/09/23/maioria-dos-bilionarios-fez-a-propria-fortuna-veja-perfil-dos-muito-ricos.htm

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      6. De onde você tirou a distinção entre propriedade privada e propriedade individual? E onde eu confundi uma coisa com a outra?

        “A resposta para seus questionamentos sobre segurança privada foi dada pelo Augusto”.

        O Augusto apresentou uma abordagem sobre o assunto. Na minha resposta a ele, não me foquei em problematizar a segurança privada, e sim em distinguir a abordagem dele da abordagem anarquista. Existem muitas camadas na crítica à propriedade, desde a crítica à propriedade privada dos meios de produção até a crítica ao conceito de propriedade em si (incluindo a propriedade coletiva). A maioria dos marxistas não critica a propriedade pessoal, e a distingue da propriedade privada. Já Stirner, por exemplo, vai mais longe na crítica à propriedade, assim como na crítica à coletividade.

        Se você admite que a segurança precisa ser coletiva, como isso se diferencia da ideia de Estado mínimo? Essa segurança coletiva não seria, no fundo, um serviço público? Quem fiscaliza o trabalho das agências de segurança privada? Se elas fossem totalmente desreguladas, ou reguladas somente pelo mercado, a consequência seria a mesma: quem tivesse mais força poderia se impor sobre as outras. A maioria dos liberais também rejeita tal ideia. A crítica central é que esse tipo de proposta levaria necessariamente a um novo contrato social, que funcionaria como Estado.

        Anarquistas são contra toda forma de governo. Se os donos dessas cidades privadas cobram uma taxa para manter uma agência privada de segurança protegendo a propriedade das pessoas que vivem lá, isso na prática é Estado mínimo, já que a taxa funciona como um imposto, e o serviço da agência conta como um serviço público. E quanto ao dono da cidade, como ele poderia estar sujeito às mesmas leis? Se os agentes fazem o que ele quiser, então é uma ditadura. Se a polícia serve ao bem coletivo, isso implica em instâncias superiores para proteger as pessoas dos abusos que os agentes de segurança podem fazer em nome de interesses particulares (essa é a função do Estado democrático). Se a polícia privada serve ao interesse privado do dono da cidade, então é uma autocracia, já que ele está acima da lei e pode fazer o que quiser. De qualquer modo, nenhuma dessas propostas pode ser considerada anarquista.

        Se a cidade privada é basicamente uma cidade-estado, como havia na idade média, ela não pode ser anarquista. Meu ponto na discussão com o Augusto era esse. Por isso eu disse a ele: “Distante da sua definição, anarquistas buscam a ausência de governo”.

        Por isso a maioria dos anarquistas defende o abolicionismo penal e acredita que o problema da criminalidade é uma consequência da propriedade privada dos meios de produção. Não existe propriedade privada onde o Estado está ausente. A propriedade privada só pode ser mantida por instituições que funcionam como o Estado, mesmo que sejam “agências de segurança privada” ou “tribunais privados”, como proposto por alguns. Se funciona como Estado, então o anarquismo é contra.

        Como eu disse para o Augusto, quando você tenta resolver todos os problemas sociais gerados pela propriedade, é questão de tempo até que suas soluções se tornem instituições equivalentes ao Estado. Daí voltamos à afirmação básica do artigo: poder econômico é poder político.

        “Governos privados podem atender a um número enorme de pessoas, tanto quanto qualquer Estado. A diferença é que um governo privado precisa convencer as pessoas a participarem dele ao passo que um Estado se impõe pelo uso da violência.”

        Então você não é contra o Estado. Você é contra um Estado que se impõe pelo uso da violência. Você é favor de escolher seus próprios governantes? Então o que você defende é democracia representativa, não anarquia. Seja pelo “convencimento” ou pela força, continuaria implicando em poder político hierárquico, e o anarquismo é incompatível com isso. O capitalismo historicamente se sustentou com base na violência. A violência só é substituída pela dominação ideológica em pequenas bolhas de privilégio. Esse privilégio continua sendo mantido pela violência como, por exemplo, as guerras para controlar países que tem grandes reservas de petróleo.

        Você tentou comparar a “teoria da utilidade marginal” com o “heliocentrismo” e “evolução das espécies”. Essa é uma falsa equivalência. A economia não é uma ciência comparável à física ou à biologia. A economia é uma ciência social aplicada, ela está limitada pelos mesmos fatores que limitam as ciências humanas. Ao contrário do que você afirmou, a teoria da utilidade marginal não se sobrepõe à teoria do valor-trabalho nas ciências econômicas. Ambas tem suas aplicações. E, diferente do que você disse, o heliocentrismo e a teoria da evolução encontram sim um amplo consenso na comunidade científica. O consenso científico não funciona do mesmo modo nas ciências sociais. Não teria como a teoria do valor-trabalho “estar para a economia hoje quase como o geocentrismo está para astronomia”, porque economia e astronomia não tem o mesmo tipo de metodologia, onde uma explicação tem um grau de generalização suficiente para superar as explicações anteriores. Para confirmar isso, basta ler qualquer boa introdução à discussão sobre a cientificidade na economia. Por isso é importante estudar também economia política.

        Você reduziu meu raciocínio a um raciocínio circular. Existe uma relação dupla entre exploração do trabalho e manutenção da propriedade privada dos meios de produção. Mas em nenhum momento eu disse que uma coisa explica a origem da outra. De um ponto de vista histórico-materialista, a exploração do trabalho humano deu origem à sociedade de classes, à propriedade privada dos meios de produção e ao Estado. O capitalismo apenas inaugura uma nova fase da exploração do trabalho. As primeiras propriedades privadas foram a terra, a mulher, os animais e os escravos. Só depois são criadas máquinas. A única instância capaz de garantir o “direito” do patrão sobre as máquinas é o Estado. Essa propriedade é “ilegítima” porque sua origem remete à expropriação original de algo que não era propriedade privada.

        E a questão não é se “vale a pena” começar um novo negócio. A questão é que isso não é uma opção para todas as pessoas. No caso das cooperativas, é muito pior. Sobre o mito da garagem, recomendo ver o vídeo https://www.youtube.com/watch?v=VS3jaWC8HOc. Minha afirmação não foi que SEMPRE é necessário uma grande quantidade de capital, mas que essa é a regra. Quanto à sua afirmação de que a acumulação primitiva de capital, o colonialismo e a escravidão não foram necessárias para dar condições ao modo de produção capitalista, isso tem base em que? Você diz que basta poupança e investimento, mas está se esquecendo que para haver poupança e investimento é preciso já haver propriedade privada. Numa economia de subsistência não há como “poupar” ou “investir”. É uma economia de consumo imediato, onde tudo é compartilhado, não há acúmulo de excedente. O acúmulo de excedente se origina com a expansão de territórios, domesticação de animais e escravismo. Ou você acha que um homem do paleolítico tem como “poupar” aquilo que coleta para gerar escassez e adquirir lucro? É um pensamento totalmente anacrônico.

        Ao invés de conversar apenas com empresários, converse com antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos… Pessoas que estudam sobre capitalismo. Empresários podem ser muito bons em gerir seus negócios, mas eles não tem a formação necessária para compreender os aspectos históricos e sociais do capitalismo. Eles são apenas os operadores. Pra compreender o capitalismo enquanto processo histórico e social você precisa estudar as referências vindas das ciências que estudam os fenômenos sociais e humanos. Ao me pedir pra conversar com empresário, seu discurso deixa de ser embasado e se torna apologético.

        “Se Pedro construir uma máquina usando seu próprio trabalho e economias….”

        Essa máquina é feita de que? Qual é a fonte de renda do Pedro? Se você ignora essas questões, vai chegar a conclusões equivocadas. Na teoria marxista, os meios de produção são compostos dos meios de trabalho e dos objetos de trabalho. Tudo aquilo que media a relação entre o trabalho humano e a natureza é meio de produção.

        A máquina é só o meio de trabalho. Os recursos naturais (a matéria-prima) processados por ela também fazem parte do que Marx chama de “meios de produção”, assim como o trabalho de quem vai operar a máquina. A força de trabalho humana e os meios de produção formam as forças produtivas. As forças produtivas e as relações de produção formam o modo de produção. A cada modo de produção corresponde uma organização social diferente. Ao modo de produção capitalista corresponde a sociedade de classes, na qual a propriedade dos meios de produção é da classe dominante.

        Para socializar os meios de produção não basta tomar conta da fábrica. A socialização dos meios de produção implica numa mudança total do modo de produção e da estrutura social. No caso, a estrutura de classes e o Estado precisam ser superados. Por isso, estatização de empresas não tem nada a ver com socialização dos meios de produção. Para que a socialização/coletivização dos meios de produção aconteça, é preciso destruir/superar o Estado e a divisão de classes. Embora alguns marxistas defendam a estatização como transição para um estágio sem classes, anarquistas rejeitam Estado e capital ao mesmo tempo.

        O marxismo distingue propriedade privada de propriedade pessoal. O seu raciocínio está baseado na legitimidade da propriedade privada. Eu teria que concordar que tem como Pedro ser o único dono de um meio de produção para concordar com a legitimidade do lucro que ele obtém com ela. Mas isso implicaria em ser dono de tudo que é necessário para se criar e fazer funcionar uma fábrica. Porém Pedro não pode ser dono da terra nem de todo trabalho necessário para que a fábrica funcione. A fábrica precisa de água para funcionar, por exemplo? Precisa de empregados? Precisa de matéria-prima que é extraída da natureza? Como é possível se declarar dono dessas coisas? O resumo é que não é possível criar uma fábrica numa sociedade onde não há Estado para proteger seu interesse de exclusividade do uso de um recurso. O lucro só é possível quando o Estado impede o acesso livre a um recurso, seja um rio ou um terreno fértil. Sem Estado, o máximo que você poderia acumular é aquilo que qualquer outra pessoa pode acumular. Para acumular coisas que outros precisam e mas não podem produzir tão facilmente quanto você produziu, é preciso que você tenha algum acesso exclusivo às técnicas ou aos recursos necessários para a produção. Isso implica no fim do modo de produção de subsistência e da organização social que corresponde a ele.

        “Mas se ao invés de ter comprado a máquina, João a tivesse roubado de Pedro, então, obviamente, seus lucros são ilegítimos”.

        Se você concorda com isso, basta ligar os pontos: a primeira propriedade privada precisa ter sido expropriada. Se não houvesse expropriação e negação do acesso a algo que era coletivo, não haveria “incentivo” (pra usar um termo familiar ao seu vocabulário) para que alguém escolha comprar uma fruta que alguém colheu, por exemplo, ao invés de simplesmente colher a fruta. Para que a fruta se torne mercadoria, é preciso criar escassez, por exemplo, impedindo o acesso de outros às árvores que as produzem. Como você vai fazer isso, senão pelo uso da força? Você não tem como convencer pessoas que vivem numa economia da dádiva, onde tudo era compartilhado, que de agora em diante você é o dono das árvores que plantou, e tem acesso exclusivo a elas, porque elas são fruto do seu trabalho. Ninguém respeitaria isso. Você não teria força pra impedir que as pessoas continuassem tratando as árvores que você diz ser dono do mesmo modo como tratam todas as outras. Não importa o quanto você se esforçou, isso não faz delas sua propriedade nessas culturas. Para que as pessoas respeitem sua “propriedade”, você precisa mudar a estrutura dessa sociedade. Para poder acumular, você primeiro teria que proteger fisicamente sua “mercadoria” dos “saqueadores”. Essa é a violência original da propriedade privada, ela está implicada na própria condição material do acúmulo, que é o uso da força.

        Do mesmo modo, o dono da fábrica só consegue ganhar mais que seus empregados porque o Estado o protege da revolta dos trabalhadores que, na ausência do Estado, não tem nenhum “incentivo” para continuar aceitando essa relação de produção. Porque eles escolheriam trabalhar mais e ganhar menos se podem simplesmente roubar sem consequências? Mesmo na lógica da “vantagem”, o trabalho assalariado só parece vantajoso porque a opção do crime ou da socialização forçada do capital e dos meios de produção é reprimida pelo Estado. Então, de todo modo, é o Estado que possibilita a propriedade privada.

        Além disso, não se trata de ter igual direito aos lucros, nem de igualdade de salário. Marx não defendeu salários mais justos nem divisão igual dos lucros (que é o máximo que uma cooperativa pode oferecer), e os anarquistas muito menos. Mesmo que fosse possível pagar mais aos trabalhadores do que o valor do que eles produzem, isso ainda seria capitalismo. A crítica ao capitalismo é bem diferente da proposta socialdemocrata, que visa apenas garantir os direitos dos trabalhadores e diminuir a desigualdade econômica pela vias institucionais, sem revolução social, sem socialização dos meios de produção, sem acirramento do conflito de classes. A proposta de partidos como o PT, por exemplo, não é anticapitalista. A proposta política deles é conciliação de classes e Estado de bem-estar social. A proposta marxista é a revolução social. E a proposta anarquista segue na mesma direção, porém sem tomar o poder do Estado.

        Espero ter demonstrado meu ponto central: o anarcocapitalismo pode ser muitas coisas, mas ele não é anarquista. O anarquismo é incompatível com a ideia de governo, cidades privadas, lucro e trabalho assalariado. Numa sociedade sem classes não há venda da força de trabalho. A força de trabalho deixa de ser mercadoria, isso é, não há mercado de trabalho. A própria mercadoria pode ser abolida. Alguns defendem a abolição do trabalho, outros a reintegração do trabalho à vida, num modo de produção com relações sociais igualitárias, ou fim do trabalho alienado. O fim do capitalismo implica num modo de produção e organização social totalmente diferente daquele que caracteriza a sociedade capitalista atual.

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      7. A propósito, algo que esqueci de mencionar é que mesmo num caso em que a propriedade dos meios de produção fosse ilegítima, isso não bastaria para que houvesse exploração dos operários.

        Se Pedro construir uma máquina usando seu próprio trabalho e economias, então ele tem propriedade legítima sobre ela. Se ele abrir uma fábrica e nela usar a máquina, terá direito legítimo sobre os lucros da produção feita com ela bem como sobre futuras máquinas compradas ou construídas com esse lucro. Ele também pode transferir essa propriedade para alguém vendendo-a, doando-a ou deixando-a de herança. Se João compra máquina de Pedro usando dinheiro adquirido como seu trabalho (ou herdado de alguém que trabalhou), passa a ser o novo legítimo proprietário dela. Assim, João teria igualmente direito legítimo sobre os lucros da produção. Mas se ao invés de ter comprado a máquina, João a tivesse roubado de Pedro, então, obviamente, seus lucros são ilegítimos. Entretanto, isso em nada altera a situação dos operários.

        Se eles trabalham para Pedro ou para João (tendo comprado ou roubado a máquina), a parte dos lucros que lhes cabe não muda em nada. Se João roubou a máquina de Pedro, então os lucros que estão indo para João pertencem legitimamente a Pedro, não aos operários. O fato de a propriedade de João ser legítima ou ilegítima em nada altera o que os operários devem receber. Os operários só teriam direito aos lucros de João se eles próprios tivessem construído a máquina ou se tivessem pago por ela. Mas esse, obviamente, não é o caso. Se os operários foram trabalhar na fábrica é justamente porque não eram donos da máquina ou não pagaram por sua construção. Os meios de produção necessariamente precedem os operários.

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      8. Mas quando foi que eu disse que o anarcocapitalismo era anarquista? Anarcocapitalismo é uma proposta de sociedade sem Estado, não necessariamente sem governo. Se anarquistas são contra qualquer forma de governo, polícia hierarquia, não importa para os anarcocapitalistas. A proposta do anarcocapitalismo é uma sociedade sem coerção, onde apenas acordos voluntários são legítimos. Então não, um governo privado não tem nada a ver com Estado e com democracia. Democracia é só mais uma forma de ditadura onde a maioria decide a vida da minoria. Só se muda para uma cidade privada quem concordar com o contrato dela. Se você não concorda, então se muda para outra cidade ou funda sua própria.

        É a competição entre as cidades que as força a cumprir os contratos. Se uma cidade quebra um contrato, os consumidores perdem a confiança nela, vão embora e ela vai à falência. É como qualquer outro mercado onde a melhor proteção ao consumidor é a concorrência. Criar uma instância superior para fiscalizar as cidades só o troca um problema por outro pior: quem fiscaliza os burocratas da instância superior? Aí você cria mais burocracia, mais regulação, que leva a mais burocracia, etc. E, no fim das contas, toda essa montanha de burocracia não protege o consumidor, protege apenas os empresários corruptos que ficam amigos dos burocratas (se é que dá para chamar esses parasitas de “empresários”), que é o que acontece hoje. O capitalismo não precisa de burocracia. Para cada empresário parasita que se beneficia do corporativismo gerado pela burocracia há outras cem empresários que são prejudicados.

        “E, diferente do que você disse, o heliocentrismo e a teoria da evolução encontram sim um amplo consenso na comunidade científica.”

        Eu disse exatamente o oposto:

        “Mas o fato de ainda haver pessoas que não aceitam o heliocentrismo e a evolução das espécies não significa que não haja um amplo consenso na comunidade científica sobre essas teorias e que as críticas a elas devam ser levadas a sério.”

        Uma vez eu debati com um rapaz que usava o mesmo argumento de que “o método científico não pode ser aplicado à ciência X da mesma forma que à ciência Y” para tentar invalidar toda as evidências suportando a evolução das espécies. Sim, cada ciência funciona de um modo diferente, mas isso não muda o fato de que teoria do “valor-trabalho” já caiu completamente em descrédito dentro da ciência econômica e que o marginalismo é quase universalmente aceito entre os economistas modernos. As evidências é métodos que levaram a essa transição são diferentes das da física e biologia, mas não menos conclusivos.

        Sobre a questão da máquina, Pedro poderia ter diretamente feito todas as etapas do processo de fabricação, desde a extração da matéria-prima, fundição, forja, etc. Ele poderia também ter comprado parte dos insumos ou mesmo pago para outras pessoas construírem tudo usando dinheiro que ele ganhou com seu trabalho ou que pegou emprestado de alguém que trabalhou e poupou. O fato de ele ter feito sozinho ou ter pago para outras pessoas o ajudarem ou mesmo fazerem por ele não muda nada. Se você realmente acredita que mesmo construindo a máquina com as próprias mãos ou pagando para outras pessoas construírem com dinheiro que ele ganhou com seu trabalho ele não tem direito legítimo sobre o lucro obtido com ela, então eu realmente não entendo como você pode achar que os funcionários da fábrica que não fizeram absolutamente nada para construí-la teriam direito a toda a produção. Eles apenas operam a máquina, mas não a construíram nem a compraram. Só uma parte do que produzem usando a máquina deve ficar com eles, o resto pertence ao dono dela.

        E mesmo que o que você diz fosse verdade. Vamos supor que o início do capitalismo tivesse sido completamente exploratório e usado de violência. Vamos fingir que as primeiras fábricas tivessem sido construídas usando apenas dinheiro vindo de escravidão e que os funcionários delas eram coagidos a trabalhar sob ameaça de morte. Mesmo que para o capitalismo começar tivesse sido necessário haver “acumulação primitiva de capital através de escravidão e colonialismo” (não foi e nunca será, mas vamos fingir que fosse) isso não implicaria automaticamente que o capitalismo agora também seria exploratório. Se um funcionário de uma empresa trabalha anos juntando o dinheiro do seu salário e depois usa suas economias para abrir um negócio (ou se ele poupa em um banco e alguém toma esse dinheiro como empréstimo para abrir esse mesmo negócio), a propriedade sobre essa nova empresa é legítima independentemente de a empresa onde ele trabalha ser ou não. A propriedade do dono da empresa original pode ser ilegítima sem deslegitimar o que os operários que nela trabalham ganham. A “ilegitimidade” do capital não vai sendo propagada ao longo da história de forma automática. Então, ainda que você estivesse certo sobre o capitalismo ter começado de forma violenta, isso não diz necessariamente nada sobre o capitalismo hoje ser violento ou ilegítimo. Além disso, novamente, mesmo que uma máquina fosse fruto de roubo, isso não implica que o funcionário que trabalha nela esteja sendo explorado. O único lesado é quem teve a máquina roubada. Se o funcionário não construiu ou comprou a máquina, então não há como ele querer ser dono de tudo o que produz com ela.

        Sim, há culturas onde não se define propriedade privada da mesma forma que na nossa e onde a ideia de alguém trabalhar em algo não o torna automaticamente dono daquilo. E daí? Como isso prova que propriedade privada precisa de coerção para existir? Eu posso ter uma ilha com dois moradores. Em certo momento eles brigam porque querem usar os recursos da ilha de forma diferente. Então eles dividem a ilha ao meio e concordam um em não invadir a metade do outro com a condição de não terem suas respectivas metades invadidas. Pronto, você tem propriedade privada numa sociedade com apenas duas pessoas, sem precisar de polícia, violência ou coerção. Poderiam ser dez pessoas na ilha, cem pessoas na ilha, dá no mesmo. A necessidade de proteger sua propriedade só surge porque algumas pessoas resolvem não respeitar as propriedades já definidas. São os ladrões e invasores de propriedade que iniciam a agressão e que criam a necessidade de os proprietários se defenderem criando instituições como a polícia. Não é a propriedade privada que se forma na base da violência, são os que não respeitam a propriedade alheia que a usam para tentar subtraí-la.

        Ao invés de olhar para o mundo real, ver que o socialismo é incompatível com ele e concluir que ele está errado, vocês fazem um malabarismo retórico para distorcer os fatos e fazer eles se encaixarem nas teorias socialistas. A todo instante você faz afirmações que são objetivamente falsas e que contradizem as estatísticas e teorias econômicas mais básicas e ainda pergunta de onde elas vieram. Não importa quantos dados econômicos, estudos ou análises te mostrem de que as premissas, afirmações, previsões e conclusões do socialismo não condizem com a realidade, você realmente acha que citar estudos de antropólogos, filósofos, historiadores e sociólogos de esquerda pode ressignificar e reinterpretar tudo para concluir que o capitalismo é exploratório. É um direito seu mas, francamente, já perdi tempo demais nessa discussão. Até mais ver.

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      9. “Mas quando foi que eu disse que o anarcocapitalismo era anarquista?”

        Meu ponto central na conversa com o Augusto foi demonstrar que o anarcocapitalismo não é só diferente do anarquismo, como são incompatíveis. A implicação é que o anarcocapitalismo não apenas ignora como nega a crítica anarquista ao Estado. Do ponto de vista anarquista, anarcocapitalistas não se opõem de fato ao Estado.

        O Augusto começou o argumento dele dizendo: “Uma das coisas que gosto de dizer às pessoas quando me fazem perguntas sobre como uma sociedade anarcocapitalista poderia funcionar, é deixar claro que governo e Estado são coisas diferentes”. E quando você diz “sem Estado, não necessariamente sem governo”, você parece estar concordando com ele. Governo e Estado são diferentes, mas não é preciso ser anarquista pra entender que governo implica em Estado. Essa é a definição básica da filosofia política, presente de Locke, Hobbes e Rousseau aos teóricos contemporâneos. Todos eles definem governo como “grupo político que está no comando de um Estado”. Estado é o conjunto de instituições políticas. Governo é uma das instituições que compõem o Estado. O Estado é o poder impessoal, enquanto o governo é o grupo de pessoas no controle momentâneo do Estado. Procure qualquer referência básica sobre o assunto e você vai encontrar essa definição. Não são apenas referências “de esquerda”, mesmo liberais a favor do capitalismo ou do livre mercado concordam com essa definição.

        A ideia de um governo sem coerção, composta de “acordos voluntários” é problematizada pelo anarquismo, pelo marxismo e pelo próprio liberalismo. Então sim, um governo privado depende de um Estado, embora você não reconheça isso. Não há “acordos voluntários” se houver desigualdade de poder. O que impede o dono da cidade de usar seu poder para impedir que as pessoas saiam ou fundem outras cidades, prejudicando seu investimento? Em outras palavras, o que impede a criação de monopólios numa sociedade anarcocapitalista?

        É ingênuo achar que o dono de uma cidade simplesmente assistirá passivamente seu negócio ir à falência quando pode pagar um exército para conter uma crise, por exemplo, obrigando as pessoas a aceitarem as relações nos termos que ele estabelece, criando dependência. Esse é o mecanismo básico de qualquer governo autocrata.

        E você tem total razão: criar uma instância superior para tentar impedir que isso aconteça cria um problema ainda maior. Então temos dois problemas: de um lado autocracias em que quem tem mais dinheiro está acima da lei, e do outro você tem um Estado se impondo sobre todos. As opções então são autocracia ou burocracia, ou seja, fascismo ou fascismo. Chute no estômago ou soco na boca. E, novamente, se você eliminar o corporativismo, como vai conter a revolução socialista? Somente o Estado em aliança com os grandes capitais consegue impedir a classe trabalhadora de se organizar contra os interesses dos donos dos meios de produção.

        “Mas o fato de ainda haver pessoas que não aceitam o heliocentrismo e a evolução das espécies não significa que não haja um amplo consenso na comunidade científica sobre essas teorias e que as críticas a elas devam ser levadas a sério.”

        Eu entendi errado o que você disse. Mas ainda implica no mesmo problema. O conflito entre a economia marginalista e a economia marxista é um conflito teórico da economia. Existe uma diferença entre conflito teórico e negacionismo. Físicos e biólogos não trabalham em conjunto com negadores de teorias básicas. Você comparou pessoas que “não aceitam” a teoria da utilidade marginal com negacionistas científicos. Mas o que eu disse não implica em negar absolutamente a teoria da utilidade marginal. Implica em criticar o uso ideológico dessa teoria, como se ela “refutasse” a mais-valia, o que oculta a exploração do trabalho. A economia não nega o valor subjetivo nem a mais-valia. Ao contrário, ambas as teorias podem ser aplicadas em conjunto.

        O “argumento” de que o método das ciências naturais é diferente do método das ciências humanas na verdade é um pressuposto básico da epistemologia. Se alguém usa esse pressuposto para negar a evolução das espécies, isso é um equívoco da pessoa. Quando você afirma que a teoria do valor-trabalho “já caiu completamente em descrédito dentro da ciência econômica e que o marginalismo é quase universalmente aceito entre os economistas modernos”, isso não quer dizer que defensores de outras teorias econômicas são negacionistas científicos, porque a ciência econômica não é capaz de fazer o mesmo grau de generalização que as ciências naturais. Significa que o marginalismo não é uma “lei econômica” no mesmo sentido que a gravidade é uma lei da física. Você não encontrará nenhum GT de “criacionismo”, por exemplo, no encontro nacional de pesquisadores de biologia. Negar a evolução é negar a ciência. As teorias anticapitalistas continuam tendo validade econômica, existem vários economistas criticando o capitalismo no mundo e colaborando com o avanço das ciências econômicas. O fato de que o curso de economia está dominado pela ideologia capitalista não significa muita coisa. Os departamentos de economia não são neutros. A economia em si é mais ampla que aquilo que é ensinado nos cursos de economia. E o mesmo é válido para todas as disciplinas. A questão aqui não é de superioridade teórica de uma ou outra teoria.

        “Sobre a questão da máquina, Pedro poderia ter diretamente feito todas as etapas do processo de fabricação”

        Parece que você ainda não entendeu o argumento. Se o Pedro extraiu matéria-prima de algum lugar, esse lugar teria que ser propriedade privada dele, certo? Estamos falando sobre a origem da propriedade privada, por isso não tem como começar pela máquina. A primeira propriedade privada é a terra. Como ele vai comprar a terra, se a terra não tinha dono? A terra só começa a ter dono quando surge o Estado. Rousseau: “O primeiro homem que, havendo cercado um pedaço de terra, disse ‘isso é meu’, e encontrou pessoas tolas o suficiente para acreditarem nas suas palavras, este homem foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. A origem do Estado se funde à origem da propriedade privada. Você está ignorando a apropriação original e lidando com um modelo idealista. Eu estou falando da origem histórica e material da propriedade privada.

        “O fato de ele ter feito sozinho ou ter pago para outras pessoas o ajudarem ou mesmo fazerem por ele não muda nada”.

        Só se você já aceita o conceito de propriedade privada. “eu realmente não entendo como você pode achar que os funcionários da fábrica que não fizeram absolutamente nada para construí-la teriam direito a toda a produção”. Eles não tem. A socialização dos meios de produção não implica direito exclusivo à produção. Os meios de produção devem atender às necessidades da sociedade como um todo. Na teoria, todos seriam igualmente beneficiados pelo que a sociedade como um todo produz. Os trabalhadores da fábricas apenas administrariam a fábrica. Se eles precisassem de uma cadeia de comando, ela não implicaria em diferença salarial, por exemplo, porque não haveria salários.

        “Vamos fingir que as primeiras fábricas tivessem sido construídas usando apenas dinheiro vindo de escravidão e que os funcionários delas eram coagidos a trabalhar sob ameaça de morte”. Não precisa fingir, isso é um fato histórico, não dá pra negar isso se você estudar história. Mas ok. “isso não implicaria automaticamente que o capitalismo agora também seria exploratório”. Sim e não. Não é simplesmente porque a fábrica foi criada com capital acumulado pela exploração, mas porque ela depende de exploração para se manter competitiva. O problema não é simplesmente reparar as injustiças históricas do processo de acumulação original. O problema é que a estrutura de classes é insustentável, suas contradições internas levam a uma superação do modo de produção capitalista. A taxa de lucro precisa subir, ela só pode subir acirrando a exploração do trabalho, e a exploração do trabalho tem um limite material. Acredite, eu odeio ter que ficar explicando marxismo aqui. Eu sou um crítico do marxismo. Mas para criticar, você tem que primeiro entender. E parece que você não entendeu como Marx explica o funcionamento do capitalismo. Você acredita que os mecanismos de acumulação do capital são neutros. Que se você se esforçar pode chegar onde o Elon Musk chegou, por exemplo. Isso é ilusão.

        Só o Estado garante a propriedade privada. Não se trata apenas de legitimidade da propriedade, mas das relações de trabalho que possibilitam o acúmulo de capital. Mesmo no caso hipotético de alguém realmente criando uma empresa a partir do nada, somente com o próprio trabalho, ele depende de relações de trabalho injustas, mantidas pelo Estado, para que o lucro seja possível. O capitalismo não apenas começou de forma violenta: sem a violência implícita do Estado, ele não se sustenta por um dia sequer. O capitalista pode achar que ele conseguiu tudo que tem sem nenhum uso da violência. Mas o Estado estava ali o tempo todo protegendo a propriedade e os “direitos” dele. Obrigando as pessoas a “cumprirem o contrato” que o faz acumular capital enquanto seus funcionários muito trabalham e continuam pobres. O que mantém o pobre pagando um aluguel inflacionado pela especulação imobiliária? O que o impede de ocupar um prédio que não está sendo usado pelo dono? O que o impede de saquear um supermercado? O que o obriga a comprar o produto? Não é seu dever moral, é a ameaça de violência caso ele atente contra o “direito de propriedade” do dono do capital.

        “Sim, há culturas onde não se define propriedade privada da mesma forma que na nossa e onde a ideia de alguém trabalhar em algo não o torna automaticamente dono daquilo. E daí? Como isso prova que propriedade privada precisa de coerção para existir?”

        Historicamente, não houve propriedade privada sem Estado. Onde não havia Estado, não havia propriedade privada. Se você acredita que a propriedade privada pode ser mantida sem Estado, então você precisa demonstrar isso. Seu exemplo abstrato não prova nada. Ele depende que as pessoas cumpram um contrato sem que isso seja imposto. O que garante isso? Se duas pessoas querem espontaneamente ficar cada uma do seu lado da ilha, elas farão isso sem precisar entrar em acordo nenhum, como todos os seres vivos fazem na verdade. Cada espécie “respeita” os limites da outra. Propriedade privada é diferente de respeito ao espaço do outro. A propriedade privada não antecede a necessidade de proteção da propriedade. Só há necessidade de proteção onde há acúmulo de excedente e produção de escassez. Por que você precisaria proteger sua maçã se a resistência da macieira é menor que a sua resistência? O esforço para coletar é menor que o esforço de roubar. Pela própria lógica do menor esforço, não faz sentido roubar num modo de produção forrageador, e se não faz sentido roubar não faz sentido proteger também. Aliás, se alguém pegasse sua propriedade, seria mais fácil coletar novamente. Mas não havia “incentivo” pra isso porque a coleta não era simplesmente trabalho, era uma atividade que dá prazer, dá sentido e senso de pertencimento, que é uma necessidade humana. Alguém que se negasse a coletar não formaria laços e ficaria sozinho.

        A propriedade privada se origina numa violência contra a propriedade coletiva. Também se poderia dizer que a propriedade se origina na violência contra a ausência de propriedade. É a quebra de um estado ou condição que foi o caso até então. É impossível estabelecer seu direito a uma coisa a partir do nada. Esse direito é conquistado com base na ameaça do uso da força. Se você falar apenas do desrespeito à propriedade alheia, você já está pressupondo um direito natural à propriedade.

        “Ao invés de olhar para o mundo real, ver que o socialismo é incompatível com ele e concluir que ele está errado, vocês fazem um malabarismo retórico para distorcer os fatos e fazer eles se encaixarem nas teorias socialistas.”

        Isso não é um argumento. É uma acusação vazia. É muito fácil dizer que o socialismo nega a realidade. A questão é demonstrar isso. Você pode me acusar fazer afirmações falsas e que “contradizem as estatísticas e teorias econômicas mais básicas” o quanto quiser, mas se não puder demonstrar isso com argumentos, sua acusação não tem nenhuma validade. Se acha que suas afirmações são sustentadas por “dados econômicos, estudos ou análises”, cite-as.

        “você realmente acha que citar estudos de antropólogos, filósofos, historiadores e sociólogos de esquerda pode ressignificar e reinterpretar tudo para concluir que o capitalismo é exploratório”.

        Não. Eu acho que a relação entre capitalismo e exploração do trabalho vem de uma análise complexa sobre o conceito de capital e de trabalho. Não precisa ser “de esquerda” para concordar com ela. Não há uma conspiração da esquerda em todas essas áreas do conhecimento para afirmar algo que não é verdade. O acontece é bem o contrário, há uma tendência de ignorar essa crítica e minimizar suas consequências. Por isso tantos cientistas sociais ainda acreditam em reformismo. Acreditam em voto, nas instituições democráticas e nos políticos que defendem um capitalismo com responsabilidade social. Poucos, tanto na filosofia como na sociologia, estudam a fundo a crítica marxista ao capital e ao Estado, e menos ainda estudam a crítica anarquista.

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  11. Janos, gostaria de parabenizar e agradecer por sua generosidade em expor com clareza seus argumentos

    cheguei até seu texto a partir de uma pesquisa despretensiosa sobre libertarianismo e individualismo e acabei tendo uma puta aula de economia / sociologia / antropologia / história / filosofia entre outros

    mas o que mais me chamou a atenção foi sua disposição para o debate, acolhendo, desenvolvendo e encorajando uma discussão produtiva

    suas respostas bem elaboradas transmitem um respeito absoluto pela troca de ideias e pelo interlocutor e um verdadeiro amor por seus objetos de estudo

    aprendi muito hoje com o conteúdo do texto e das discussões e mais ainda observando sua retórica e sua postura

    é com certo acanhamento q deixo uma crítica no final, um pequeno detalhe formal, mas q a mim causou distração, q foi o uso do “ao invés” é detrimento do “em vez de”

    muito obrigado mais uma vez e um forte abraço

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    1. Eu agradeço muito pelos comentários de apreciação e ainda mais pela correção. Na verdade, gramática nunca foi meu forte. Obrigado por me fazer atentar para a diferença entre “em vez de” e “ao invés de”, realmente eu cometo esse erro com muita frequência. Vou tentar lembrar disso. Muito obrigado por me incentivar a continuar escrevendo e contribuir com meu desenvolvimento, forte abraço.

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  12. Em primeiro: você usa o termo “capitalismo” como um modo de produção, ao que tudo indica, o que já vai na contramão do entendimento que o Mises faz do termo, que é uma ordem social onde os meios de produção (os bens de ordem superior, pra ser mais exato, e é importante enfatizar que existem diversas “ordens” de acordo com o momento em que os diferentes insumos são aplicados no processo produtivo) são controlados por individuos (o que inclui grupos de indivíduos organizados) livres para exercerem atividades empresariais e que usam a contabilidade financeira (e algumas convenções contábeis) para alocar os recursos (escassos) a sua disposição. De qualquer forma, a propriedade privada (numa acepção sociológica), o intercâmbio, a divisão do trabalho e a contabilidade comercial (especialmente o método de partidas dobradas) são as instituições indispensáveis para a existência de uma economia de mercado funcional. Nesse sentido, a emergência dessas instituições precedem logicamente um a economia capitalista e mercantil, ao invés do contrário, isto é, o Mises não parte da ideia de que as “condições econômicas” são a infra-estrutura de um ordenamento jurídico e do poder político, que seria a ideia marxista de que o Estado é organizado como o aparelho de coerção pelo qual as condições sociais e jurídicas para a reprodução da infra-estrutura (divisão técnica do trabalho + divisão social do trabalho) são preservadas ao longo do tempo pelo uso da força. Se o capitalismo é uma ordem social ao invés de um modo de produção, e só se torna objeto de estudo dentro da catalaxia (o termo que o Mises usou pra definir o ramo da praxeologia que estuda os fenômenos de mercado), então não faz muito sentido sugerir que a “teoria do valor subjetivo” é uma “justificação” para um modo de produção em particular, já que austríacos sequer usam essa noção e a ideia de utilidade marginal serve pra explicar os preços pagos no mercado.

    conversei com um cara sobre esse comentário, ele disse isso: certamente ele aparenta não saber qual o argumento do Menger, do Jevons e do Walras
    Ele é daqueles que parece acreditar que a teoria do valor subjetivo consiste simplesmente em afirmar a utilidade dos bens, e dizer que os preços deveriam ser proporcionais a essa utilidade ponderando alguma influência da “escassez”
    Sendo que na verdade essas ideias existiam bem antes desses 3
    Agora eu não tenho a bibliografia de alguns escolásticos tardios falando sobre essas noções. Mas não é difícil encontra-las nas obras de fisiocratas e de economistas britânicos do século XVIII-XIX, o que inclui o Smith e o Ricardo
    Mas eles trabalhavam com uma distinção entre valor de uso, enquanto a capacidade de uma coisa de satisfazer (plenamente) necessidades humanas, e valor de troca. O “grau” do valor de uso (na definição clássica) seria o que entendemos hoje como a “utilidade total” de uma classe de bens. É mais ou menos nessa concepção que o paradoxo da água e do diamante pode ser erigido e usado contra defensores do “valor subjetivo”. O que esse sujeito parece desconhecer é que essas noções foram reformuladas pelos 3 economistas já citados, e para explicar o valor dos bems, eles rejeitaram as noções de valor-de-uso (ou utilidade total) e as substituíram pela ideia de utilidade marginal.
    Derivar esse conceito não é lá muito fácil, e eu duvido que esse cara saiba definir “margem” e “unidade marginal”, para esses autores
    De qualquer forma, já que pra ele Mises é burro e fácil de entender, bem que ele poderia explicar pra gente o dualismo metodológico, ou caracterizar e diferenciar a praxeologia e a timologia (e mostrar a relação entre as duas na pesquisa sobre economia) e o âmbito e a metodologia da catalaxia,

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    1. Obrigado por comentar aqui. Sim, estou usando o termo “capitalismo” num sentido diferente de Mises. Mises tem uma compreensão muito particular desse termo. Eu só posso usar o termo no sentido que eu aprendi a usar na minha área de estudo, e acredito que esse é o sentido usado pela maioria das teorias anarquistas. O que Mises chama de capitalismo refere-se a algo que se realizou na história? Quando houve uma sociedade onde os meios de produção foram controlados por indivíduos sem coerção?

      Sim, a propriedade privada é indispensável para a existência do mercado. Consideremos, pra não confundir, que uma “economia de mercado” não é simplesmente uma economia onde há mercado (troca de mercadorias), mas uma economia onde o mercado possui um papel central nas relações sociais. Assim como uma economia da dádiva não é economia onde há dádiva, e uma economia socialista não é uma economia onde há propriedade coletiva de alguns meios de produção. Sim, primeiro tem que haver propriedade privada para possa haver uma economia capitalista e mercantil. A sociologia e as ciências políticas, assim como as teorias marxistas atuais, entendem que há uma relação de dupla determinação entre infraestrutura (forças produtivas e relações de produção) e superestrutura (que é basicamente todo resto). A infraestrutura molda e mantém a superestrutura, e a superestrutura mantém e molda a infraestrutura.

      O capitalismo não precisa ser entendido como um modo de produção, mas a crítica sociológica ao capitalismo é uma crítica à exploração do trabalho em sociedades capitalistas (que, para a sociologia, são dominantes hoje). Para Marx, as forças produtivas são compostas da força de trabalho humana e dos meios de produção. O modo de produção é composto das forças produtivas e as relações de produção. O modo de produção capitalista molda e mantém uma organização social de classes, a sociedade de classes mantém e molda o modo de produção capitalista. O que define a sociedade capitalista é que uma classe é dona dos meios de produção e a outra não.

      No meu comentário, eu estava considerando as afirmações do David Gordon, no texto “A teoria subjetivista do valor é ideológica?”. Se as teses do Mises fazem sentido dentro de um ramo da praxeologia que estuda os “fenômenos de mercado”, por outro lado a praxeologia não é suficiente para analisar o capitalismo enquanto fenômeno social. A teoria subjetivista do valor não parte da única teoria válida sobre a ação humana. Nem sequer é a principal. Na verdade é uma teoria extremamente problemática.

      Os teóricos austríacos não podem ser ignorados, mas seus críticos também não. Eu li alguns trabalhos sobre Carl Menger e seus seguidores, como Böhm-Bawerk. Concordo que eles tem suas contribuições. O problema é achar que esses autores “refutam” a teoria marxista. Eu não invalidei a teoria deles aqui, mas eu acho a teoria deles não invalida a teoria marxista, e muito menos a anarquista.

      Eu reconheço a complexidade da teoria do valor subjetivo, e sei que vários outros autores a usaram, inclusive para criticar o capitalismo. A minha afirmação não foi que essa teoria é simplesmente ideologia burguesa (como alguns marxistas afirmam), mas que usá-la para “refutar” Marx, como se ela fosse a resposta definitiva para os problemas trazidos pela teoria marxista, isso é ideológico. E ao meu ver era exatamente essa a linha de raciocínio do Lucian: se você fala de mais-valia, você nega a teoria subjetivista do valor, e por isso você nega um consenso científico da economia. Independente dele se referir à versão do Menger, do Mises ou de Rothbard, a questão é nenhuma delas serve de argumento para dizer que a teoria marxista está totalmente errada sobre a relação entre capitalismo e exploração do trabalho. Esse era o ponto. Eu acho que a teoria marxista deve ser criticada a partir de uma base melhor.

      Minha argumentação também não foi na direção de refutar o valor subjetivo. E não é novidade que eles rejeitaram o valor de uso em nome da utilidade marginal. Seu amigo diz “duvido que ele saiba tanto sobre isso quanto eu”. Com certeza, se ele se focou nisso, ele sabe muito mais sobre isso que eu. E eu também duvido que ele saiba tanto sobre minha área do que eu. Não é uma questão de quem sabe mais. É lógico que as teorias da escola austríaca podem ser bastante sofisticadas também. Não acho que Mises é burro ou fácil de entender, mas acho que ele deu resposta mais fácil de entender do que Marx. Pra entender Marx é preciso entender um monte de outras coisas, e o Mises tem a vantagem de se expressar de modo muito mais simples. Os detalhes porém podem ser trabalhados de modo bastante complexo. Eu estudei e dei aula de metodologia das ciências humanas e sociais, eu posso explicar o que é dualismo metodológico para as pessoas dessa área. Mas eu não estudei a fundo a praxeologia e seus ramos, mesmo porque isso não é no currículo das minhas áreas de formação. Eu estudei etologia, sociologia do conhecimento e filosofia da linguagem.

      Eu acho que antes de entrar em sutilezas teóricas, temos que definir nossas posições sobre os pressupostos mais básicos. Por exemplo, o anarcocapitalismo é compatível com o anarquismo? Acho que devemos nos concentrar nos pressupostos básicos, e só depois falar das ramificações. Por isso eu não falei muito sobre crítica à civilização aqui. Pra mim ela é uma ramificação do anarquismo. Não faz sentido falar de crítica à civilização, algo que eu sei que sei mais que muita gente aqui, se a gente não se definiu ainda sobre a validade do anarquismo ou da crítica ao capitalismo.

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  13. Gostaria de deixar aqui minha experiência pessoal. Eu sou professora de matemática há mais de 20 anos, em minha juventude, fui uma grande defensora do socialismo. Não li todas as obras de todos os autores, mas li muita coisa. Eu ia às reuniões do grêmio no IME, participava das greves e lutava com unhas e dentes pelo que acreditava ser a única possibilidade de um mundo mais justo. Mas tudo começou a mudar quando conheci meu atual esposo. Ele estudava economia no prédio ao lado (FEA) e, pouco a pouco, através dele, eu pude ver o quanto estava enganada. Não apenas porque passei a entender muito melhor de economia mas também porque, por conta do trabalho dele, conheci muitas pessoas que empreendiam. Aos poucos eu me dei conta de que tudo pelo qual havia lutado por tantos anos não passava de uma pilha de mentiras grotescas. O capitalismo verdadeiro era completamente diferente do descrito nos livros. Eu senti como se estivesse saindo da caverna de Platão depois ter passado mais de uma década vendo apenas sombras da realidade. Os erros não se limitavam à economia apenas, a minha própria concepção da história e da natureza das relações humanas, que eu dava como fatos, haviam sido completamente desfiguradas. Hoje eu tenho vergonha das coisas que já defendi e muitas vezes me perguntei como pude acreditar em algo tão bizarro. Eu não era economista, mas estudava matemática. Me considerava e me considero uma pessoa lógica. O socialismo tem tantos erros e inconsistências que não é possível que eu não tivesse percebido antes que algo estava não estava certo. Aí tive que aceitar o óbvio: Eu não queria ver. A caverna era muito mais confortável. Se o socialismo fosse verdadeiro, então eu podia jogar toda a culpa das minhas frustrações no sistema ao invés de admitir que o problema estava em mim. Sair da caverna não foi fácil, mas valeu a pena. Sou grata por haver escapado dela.

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    1. Seu relato é interessante, embora não tenha relação direta com o artigo. Acredito que muitas pessoas podem se identificar com ele. É bastante comum que o contrário também aconteça, por motivos parecidos e gerando as mesmas sensações. É normal mudar de posição em algum momento da vida, especialmente quando há envolvimento emocional com alguém do outro lado. Sabemos que somos bastante influenciáveis, por mais que nos consideremos racionais. Eu digo isso por experiência própria também. Essa sensação de estar saindo da caverna é comum também para pessoas que entram numa religião.

      Embora seu relato não seja exatamente um argumento contra o socialismo, há algumas pistas que podemos usar pra entender sua crítica. O discurso dominante nos departamentos de economia não é necessariamente superior aos demais em termos teóricos. Há uma disputa política entre teorias, não é uma questão de lógica somente. Diferente da matemática (no sentido convencional), nas ciências sociais temos diversas análises possíveis, e igualmente válidas, sobre um mesmo fato ou fenômeno. Talvez você esteja correta sobre muitas de suas críticas ao socialismo. Mas é preciso lembrar que este artigo não é sobre socialismo. Críticas ao socialismo dos grêmios estudantis não implicam numa superioridade do liberalismo econômico. Pela minha experiência, o que geralmente acontece no ambiente acadêmico, tanto entre críticos quanto entre defensores do capitalismo, é realmente bastante grotesco. Mas isso pouco tem a ver com questões teóricas de fato, que são muito mais complexas. Muitas vezes a crítica ao capitalismo é tão mal embasada quanto a defesa, e ambas são resultado de um idealismo ou uma empolgação. A crítica ao capitalismo não se reduz ao que acontece no movimento estudantil, muitas vezes partidário e ideológico.

      Meu objetivo nessa pesquisa foi ler os autores que defendem o anarcocapitalismo, compreender o que eles defendem e indicar algumas respostas válidas às suas posições. Quando você diz que “o capitalismo verdadeiro era completamente diferente do descrito nos livros”, a que livros você se refere? Quais são as fontes pare se conhecer o “capitalismo verdadeiro”? No caso, essas fontes fortalecem os argumentos anarcocapitalistas? Se sim, então isso indica uma falha no meu artigo. O capitalismo que estudamos nas ciências sociais não é o capitalismo de verdade? Isso implica numa acusação bastante grave sobre uma área bastante ampla das ciências humanas. Esse tipo de acusação é uma afirmação extremamente extraordinária, e como disse Carl Sagan, “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”. Acontece que, na revisão de literatura científica sobre o assunto, não cheguei a evidências significativas de que a teoria anarcocapitalista é superior à teoria anticapitalista, em termos de compreensão da realidade social. O que eu percebo é que há uma disputa longa e complexa com argumentos sólidos de ambos os lados. As discussões se estendem para questões bastante complexas e específicas, que são impossíveis de acompanhar na totalidade. Mas permanecem em discussão hoje. Como eu respondi em outro comentário, é um erro acreditar que a economia por si só seja capaz de explicar a totalidade dos fenômenos sociais envolvidos no capitalismo enquanto fato histórico.

      Como você provavelmente já sabe, a economia matemática foi muito importante para a escola austríaca, para os marginalistas e para a economia neoclássica. Isso envolve uma área da matemática na qual eu sou particularmente interessado, a teoria dos jogos. Augustin Cournot, por exemplo, tentou aplicar a teoria para resolver questões de mercado. Léon Walras também colaborou, formulando uma teoria do equilíbrio geral aplicável a mercados. Edgeworth tentou aplicar modelos matemáticos para resolver questões de ética e de comportamento moral. Essas questões, porém, vão para áreas além da economia, e não podem ser reduzidas a questões matemáticas. No mesmo sentido, o discurso econômico dominante busca separar a economia da filosofia e da política. Eu escrevi um pouco sobre isso aqui: https://contrafatual.com/2018/10/22/economia-e-etica/

      Edgeworth, por exemplo, construiu um modelo ideal baseado em conceitos de egoísmo, maximização da utilidade e princípios morais que remetem ao cálculo utilitário de Jeremy Bentham, criando o conceito de “caixa de Edgeworth”. O que eu quero enfatizar citando isso é que, na verdade, existem muitas compreensões diferentes sobre economia e capitalismo. No processo de matematização da economia e surgimento da econometria, houveram aqueles que aplicaram teorias matemáticas para “refutar” o marxismo, e marxistas que se utilizaram das mesmas teorias para defender uma economia mais centralizada (com um papel mais forte do Estado). Ambas as propostas são rejeitadas pelos teóricos anarquistas. O fato é que não há uma solução definitiva para esses problemas, e além disso a questão econômica é em si apenas uma parte da discussão mais ampla sobre capitalismo, que envolve questões sociológicas, filosóficas, antropológicas e históricas, como você mesmo atentou.

      Hayek, por exemplo, criticou as limitações das técnicas matemáticas quando aplicadas a agentes econômicos reais. Karl Popper, que também era um liberal, também questionou a cientificidade da economia, argumentando que ela diminui o papel das verificações empíricas e sobrevalorizou provas e refutações matemáticas, criando suposições infalsificáveis. Milton Friedman concordou com Popper nesse aspecto. E finalmente, Keynes também fez sua crítica aos métodos de análise matemática da economia, dizendo que “Uma grande proporção da economia matemática recente é meramente de misturas, tão imprecisas quanto as suposições iniciais nas quais elas se baseiam, e que fazem o autor perder a visão das complexidades e interdependências do mundo real em um labirinto de símbolos pretensiosos e inúteis” (The General Theory of Employment, Interest and Money, 1936).

      É muito importante corrigir nossas concepções de história e conceitos sobre a natureza das relações humanas. Mas também é importante lembrar que não há uma posição privilegiada para se falar dessas coisas. O que temos são apenas pontos de vista limitados. Quando você diz que “o socialismo tem tantos erros e inconsistências que não é possível que eu não tivesse percebido antes que algo estava não estava certo”, eu me lembro do discurso de diversos supostos críticos do socialismo, que acreditavam terem “refutado” o conceito de exploração do trabalho, por exemplo, sendo que estavam simplesmente reproduzindo um discurso ideológico. Em outras palavras, apenas trocaram pressupostos mal embasados contra o capitalismo por pressupostos igualmente mal embasados a favor do capitalismo. E essa mudança em geral tem a ver com questões pessoais, com mudanças na vida da pessoa. A discussão que realmente me interessa, que é propriamente filosófica, exige um pouco mais de autocrítica. Somente pelo que você disse no seu comentário, é impossível eu entender o que exatamente você está dizendo sobre o socialismo ou sobre o tópico do artigo, que é o anarcocapitalismo. Realmente é possível que parte do discurso anticapitalista seja sobre “jogar toda a culpa das minhas frustrações no sistema ao invés de admitir que o problema estava em mim”. Mas isso não significa que sociólogos e outros teóricos estão completamente errados quando questionam a aplicação desse “individualismo metodológico” na análise do capitalismo, e valorizam, ao invés disso, uma análise mais complexa, considerando também as questões estruturais. Nesse sentido, eu acho difícil negar que existe um enviesamento ideológico disfarçado de “empreendedorismo” nesse discurso sobre “responsabilidade individual”. Escrevi especificamente sobre isso aqui: https://contrafatual.com/2019/02/10/discurso-da-autonomia-no-novo-capitalismo/

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  14. Pessoal, eu juro que não entendo o que estão tentando fazer. Vocês entram na página de um rapaz socialista, tentam convencê-lo de que o socialismo está errado usando conceitos de economia até que relativamente avançados e esperam que ele concorde? E depois ainda ficam surpresos quando ele responde com absurdos? Sejam sinceros, se vocês entrassem numa página da Comunidade Terra Plana e começassem a argumentar com os membros usando dinâmica celeste o que acham que iria acontecer? Que eles iriam ter uma epifania e dizer:

    -Oh! Puxa vida! Como eu estava enganado! Agora que entendemos como a física funciona vejo que tudo isso não passava de um monte de abobrinhas sem sentido! Muito obrigado por terem nos esclarecido!

    Se esperam isso, então lamento, mas vocês é que estão loucos. O infinitamente mais provável é que as pessoas te respondam com argumentos parcialmente ou totalmente sem lógica, apelando para todo tipo de falácias e raciocínios com mais furos do que um queijo suíço que demonstram uma total falta de compreensão das noções mais fundamentais de ciência. E, o mais importante: Elas dirão que vocês é que não entendem nada de ciência e que foram doutrinados para aceitar as mentiras do sistema. Qualquer semelhança com a reação dos socialistas não é mera coincidência. Por favor, não desperdicem seu tempo.

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    1. Me comparar com um terraplanista e sugerir que sou incapaz de responder com lógica, que apelo para falácias ou que não compreendo “as noções mais fundamentais de ciência” é um artifício retórico se você não é capaz de sustentar essas afirmações com argumentos. Isso é prejudicial para o debate porque reduz a credibilidade das críticas respeitosas que recebi aqui.

      Eu não sei de onde você tirou que todo socialista é ilógico ou não entende de ciência. Existem diversos economistas socialistas ilustres, como por exemplo Rudolf Hilferding, Nikolai Dimitrievich Kondratiev, Paul Howard Douglas, Michal Kalecki, Piero Sraffa, Gunnar Myrdal, Raúl Prebisch, Joan Robinson, Oskar Lange, Paul Malor Sweezy, Celso Furtado, Amartya Sen, Joseph Stiglitz, Paul Krugman, Yánis Varoufákis e Thomas Piketty. Sua afirmação implicaria em dizer que todos eles estão equivocados. É preciso lembrar novamente que este texto não é sobre socialismo, mas sobre anarcocapitalismo. Mesmo que o socialismo fosse inválido, o que é uma afirmação bastante controversa, isso ainda não implicaria em nada sobre o anarcocapitalismo. Este texto não foi escrito de uma perspectiva socialista, mas sim de uma perspectiva filosófica e sociológica, e seu objetivo principal foi distinguir entre o anarcocapitalismo e o anarquismo.

      Muitos socialistas consideram que o anarcocapitalismo é tão absurdo que nem vale a pena entendê-lo e respondê-lo. Eu fiz esse texto acreditando no contrário. Mas quando você trata o socialismo como algo absurdo, você comete o mesmo erro. Se ficamos nisso, ao invés de uma discussão produtiva, temos apenas trocas de acusações vazias.

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