Necro-consumo

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Um ensaio curto sobre o consumismo em tempos de catástrofe.

Thorstein Veblen foi um precursor da crítica ao consumismo. Ele estabeleceu a ideia de que o consumo tem um significado social, não é apenas uma necessidade material. As pessoas nem sempre consomem o que precisam, o consumo também pode ser feito para conquistar um status social. Sua crítica ao consumismo estava relacionada à sua compreensão da psicologia humana. Apesar de ter sido revistada e relida, a teoria de Veblen é muito simplista e deixa muito a desejar. Veblen é também influenciador de um movimento chamado eco-tecnocracia, que relaciona desenvolvimento sustentável com a ideia de “democracia” tecnocentrada. O seguinte texto é uma introdução à crítica desta interpretação sobre a psicologia e a antropologia do consumo encontrada em autores como Veblen e seus seguidores.

Antes do consumismo assumir sua forma atual, a ideia que se tinha é que o problema do consumismo era a ostentação das chamadas “classes ociosas”, ou seja, aquelas que não precisavam trabalhar para se sustentar. Como uma reformulação de um ideal iluminista burguês, a “crítica ao capitalismo” de Veblen depende da defesa de um ideal de produtividade e eficiência (presente no discurso tecnocrata). Uma visão que tem a ciência e a tecnologia como os poderes “mágicos” (superiores à natureza comum) que levarão ao engrandecimento da espécie humana.

A teoria da classe ociosa era institucionalista e pretendia oferecer uma alternativa tanto ao marxismo quanto ao neoclassicismo. Veblen partiu de uma abordagem evolutiva da economia, influenciado pelo trabalho de Charles Darwin e pela psicologia pragmática dos instintos de William James.

Como tal, ela se centra na análise das instituições ao invés de indivíduos. A “classe ociosa”, ou classe improdutiva, é uma instituição. O seu conceito central é a “emulação”, o hábito de se comparar com outras pessoas, o desejo de ser reconhecido por um grande número de pessoas. Segundo a professora Isleide Arruda Fontenelle, “A teoria do consumo conspícuo, proposta por Thorsten Veblen, não escapa da crítica aos limites explicadores da teoria econômica para o fato de consumirmos, pois, embora Veblen tenha avançado sobre a teoria utilitária para sustentar que o ato de consumo teria uma significação social, teria sido responsável por uma ideia generalizada e simplista da emulação.”.

O consumo após a segunda guerra mundial se torna intrinsecamente ligado ao individualismo. Ao invés de uma emulação condenável, o consumo adquiriu um sentido existencial. Por meio de um processo de feedback positivo, seu sentido se tornou muito mais profundo que uma inveja instintual, que poderia ser combatida com alguma disciplina racionalizante ou “científica”. Ele se torna um alívio para as dores provocadas pelo próprio modo de vida contemporâneo. A nova valorização do consumo tem mais a ver com a insegurança do consumidor do que com suas necessidades psicológicas, sejam elas elevadas ou supérfluas. O consumidor é “aterrorizado” a consumir, como diz o documentário Surplus: Terrorized Into Being Consumers, parcialmente inspirado por Kalle Lasn, do Adbusters Media Foundation, um dos criadores do Buy Nothing Day (Dia de Não Comprar Nada), uma reação anticapitalista ao Black Friday e ao Natal.

Neil Postman, autor de Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia, também compreende que o consumismo não está necessariamente ligado a uma necessidade de reconhecimento ou ganho pessoal. Comparando Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley e 1984 de George Orwell, Postman chega à conclusão que a nova cultura do consumo realizou algo diferente das duas famosas ficções distópicas. Quando o ímpeto tecnológico se sobrepõe à cultura, a produção acaba por determinar personalidades. Ao invés de ser determinada por valores sociais, a produção e o consumo determinam o ambiente social e cultural no qual vivemos.

O desejo de fugir da coisificação, do tédio e da ansiedade também encontra expressão no consumo. A vida anunciada pela publicidade pode ser uma aventura intensa e apaixonada. Não estar apaixonado significa ser arrastado pelo peso de uma realidade concreta que não pode ser confrontada diretamente. É preciso estar sob o “efeito alucinógeno” da paixão para suportar o que o mundo se tornou. As ilusões behavioristas de uma sociedade controlada, científica e eficiente caem por terra. A inoperabilidade da disciplina individual contra os efeitos globais atinge seu ápice na contemporaneidade, como todo o trabalho de Zygmunt Bauman buscou demonstrar. As promessas ideológicas não podem mais nos salvar se elas se fixam somente nas ações de indivíduos. Por outro lado, influenciadores sociais resgatam discursos institucionalistas, nacionalistas, racistas, puristas e excludentes. A nova onda conservadora se dá justamente nesse contexto.

É a partir dessa análise que propomos o conceito de necro-consumo, que tem uma relação distante com a necro-política. É o consumo como necromancia que mantém animados os corpos em busca de sentido, como mortos-vivos. A própria vida está sendo drenada e reduzida a uma versão comercial ou virtual. Nossa relação com ela está cada mais mediada por uma cultura simbólica e tecnológica. Sua versão eco-tecnológica não melhora muito as coisas, pois não restabelece essa relação, apenas redesenha a mediação para um formato mais eficiente diante da necessidade de “sobrevivência material” frente à catástrofe ambiental provocada pelo capitalismo.

O necro-consumo inaugura a prevalência de uma “pulsão de morte” dialeticamente associada ao consumo, isto é, consumimos mais não por “concupiscência” simples (busca do prazer imediato), mas porque uma parte do ego está mergulhada num processo social e cultural que é autodestrutivo, e por isso ele deseja inconscientemente uma forma de autodestruição contínua, ou a manutenção da “morte em vida”, já que buscar a vida obrigaria a encarar responsabilidades acumuladas que a contradizem: por exemplo, o genocídio de pessoas pobres e não-brancas, o domínio sobre a mulher, a repressão das sexualidades não-normativas, etc… A solução para o necro-consumo precisa ser algo muito mais profundo que um capitalismo sustentável ou um suposto pós-capitalismo de abundância pela via da automação e da produção eco-eficiente. Ela precisa encarar o beco sem saída ao qual o desenvolvimento cultural civilizado nos conduziu, em termos existenciais. Sem isso, iremos apenas repetir os erros do passado.

Autor: Janos Biro

Você não existe, e eu também não.

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