Um questionamento sobre a crítica à autoridade numa sociedade de indivíduos.
Todos nós nos revoltamos contra a autoridade em algum momento de nossas vidas, seja a autoridade dos pais, dos professores, dos sacerdotes, dos bancos, dos empresários, dos juízes, dos policiais ou dos governantes. Existe um potencial anárquico na sociedade, mas ele é assimilado pelo capitalismo e transformado em potencial de consumo. Uma das vias de assimilação da anarquia é o discurso liberal que enaltece o trabalho autônomo: “seja seu próprio patrão, trabalhe com o que ama e no horário que preferir”. Iniciativas descoladas, ecológicas, solidárias, alternativas e passionais que na verdade, apenas o acomodam de modo um pouco mais confortável na prisão. Elas rejeitam a autoridade do Estado apenas na medida em que radicalizam a obediência às leis de mercado, idolatram a iniciativa privada como se ela representasse uma emancipação real. Mas essa ilusão de liberdade é sustentada por uma estrutura extremamente autoritária e injusta.
Acredito no anarquismo como uma perspectiva política que integra o individual, o social e o biológico. O discurso liberal é uma posição antipolítica e individualista. Ela “atomiza” a política em iniciativas individuais, fazendo tanto o individual quanto o social perderem o sentido. Margaret Thatcher expressou isso da forma mais direta possível numa entrevista em 1987. Ela disse: “Não há isso de sociedade, o que existem são indivíduos”[1]. A popularização da internet nos anos seguintes apenas reafirmou essa tese. Indivíduos agora se organizam em redes, numa “inteligência coletiva”, como definiu Pierre Lévy. Essa inteligência coletiva não é individualista no sentido vulgar, mas também não é propriamente social. Ela é algo novo na história da humanidade. E por um lado isso parece uma coisa boa, um avanço, certo? Não necessariamente. Ela pode muito bem ser demais para nossa capacidade. Este novo poder de selecionar as pessoas com quem queremos socializar não vem com instruções. A facilidade de fazer amigos distantes vem junto com a facilidade de excluir quem está próximo de você, e embora isso pareça ótimo, os efeitos na sociabilidade podem ser desastrosos.
A facilidade de gerenciar suas conexões e desconexões possibilitou um incrível alcance de discursos que colocam a culpa de tudo em imigrantes, homossexuais, negros, mulheres, enfim, na marginalidade e tudo aquilo que está fora do padrão. Zygmunt Bauman chamou isso de mixofobia. O conservadorismo contemporâneo ganhou força não apenas por causa da crise econômica, mas também por causa da internet e das novas tecnologias da informação. Não simplesmente porque um pequeno grupo de pessoas teria tomado conta do ciberespaço, mas porque a estrutura das redes sociais nos ensina a pensar de um modo que torna natural a afirmação de Thatcher. A internet acaba servindo como modelo de uma sociedade de indivíduos.
Os coletivos anarquistas deram pouca ou nenhuma atenção a esse fato. Eles se deixaram empolgar com todas as possibilidades dessa nova ferramenta de comunicação. Isso foi tão intenso que mesmo concordando que a tecnologia não seja neutra, criticar a internet hoje parece de algum modo errado ou exagerado. Mas aos poucos a desilusão com a internet vai cresce e os assuntos antes evitados agora se tornam pautas importantes, como aconteceu com todos os outros meios, incluindo a televisão. A ficção científica tem um papel importante na produção dessa consciência. Produtos como o seriado Black Mirror podem contribuir com esse questionamento, apontando para as implicações assustadoras de conceder tamanho poder à estrutura informacional.
A força assimiladora do capitalismo, na sua forma liberal/conservadora, parece arrastar inevitavelmente uma nova geração de anarquistas para um tipo de autoridade difusa. A estrutura das redes sociais dificulta a crítica social que seja menos do que espetacular. Quando todo mundo parece estar competindo num show de calouros para decidir quem é o melhor, a reflexão se torna mercadoria, mais um capital cultural do que qualquer outra coisa.
Na medida em que a economia global caminha na contramão dos velhos paradigmas econômicos e em direção à chamada “economia criativa”, o moralismo que condena as ações diretas “violentas” pode se tornar cada vez mais acentuado. Este é apenas um indicativo de um problema maior: uma preocupação distorcida com a ordem das coisas.
Nesse exato momento, em algum lugar, pessoas discutem como irão vender serviços e produtos para esses novos jovens que não se adaptam ao mercado de trabalho convencional, que não comem carne, que andam de bicicleta, que não querem trabalhar em escritórios, que preferem trabalhar com alimentação orgânica ou saudável, com reciclagem, com geração de renda alternativa, com projetos ambientais e culturais, etc… A ilusão de que tudo isso representa uma passagem para fora do sistema foi criada pelo próprio sistema.
O capitalismo não está “se adaptando” a essas novas condições sociais, ele as está criando. Ele fomenta essas mudanças, incluindo as novas demandas ecológicas, por seus próprio motivos. Cabe à crítica anarquista desocultar essa alienação implícita no discurso da autonomia econômica via mercado alternativo. A internet e outras inovações não nos tornam mais independentes ou autônomos, e os que ainda se agarram a essa ideia acabam se afundando numa espécie de paixão cega pela mediação, como única via que sobrou para formação de identidade, memória, significado e afeto.
A necessidade básica de relações humanas não pode ser suprida pela internet, mas o tempo para estabelecer tais relações tem sido substituído por mais tempo nela. Nós defendemos a internet pelo mesmo motivo que defendemos o chuveiro elétrico, a privada do banheiro ou o supermercado: porque não conseguimos imaginar como seria a vida sem isso. Nós perdemos contato com as fontes originais de nossas necessidades básicas, não apenas físicas como água, comida e abrigo, mas também afetivas, sociais e cognitivas. É possível sentir que nossa sociabilidade vem das redes sociais. E se sentimos que uma necessidade vital vem uma determinada estrutura, nós a defenderemos até a morte.
Algumas dessas mudanças já estavam sendo previstas e discutidas muito tempo antes de se tornarem realidade. Crises desse tipo, assim como as crises econômicas, também podem ser planejadas, criadas pelo interesse de grupos poderosos. A “inteligência de mercado” preparou terreno para a economia “alternativa” de modo estratégico, a partir de estudos sobre tendências de mercado, usando conceitos da psicanálise e da antropologia. Os dados coletados não mostram apenas tendências de consumo, mas também tendências de pensamento, e não mostram apenas como se dá tal movimento, mas também como influenciá-lo e dirigi-lo por meio da formação de opinião[2]. Esta é também a tese de Jaron Lanier, cientista de computação e um dos precursores da realidade virtual.
As pessoas tendem a acreditar que há liberdade suficiente para uma mudança sem necessidade de oposição direta. Que você pode lutar contra o poder vigente sem ser visto como um inimigo pelos agentes desse poder. “Mudar as coisas por dentro”, como se diz. Ter uma posição política mais concisa não é o mesmo que acreditar no voto, apoiar um partido ou coisa parecida. Mas assim como as pessoas param de consumir certos produtos quando descobrem como eles são produzidos, desocultar a engenharia do consenso pode levar as pessoas a repudiar o status quo e a democracia, que são necessariamente representativas numa sociedade de massas? O que seria preciso para desocultar o processo de produção dessa falsa consciência, a ideologia das redes? Será que ocupar canais influentes no Youtube seria um meio para isso?
Nós estamos agora vivendo um tempo em que pessoas comuns parecem ter tomado a frente dos canais de comunicação global. Onde youtubers são extremamente influentes, onde o que eles escrevem sobre política tem mais alcance do que o que pesquisadores dessa área escrevem. Seus seguidores acreditam que vivemos num mundo onde ninguém mais tem tempo para perder lendo “autoridades no assunto”. Nós preferimos consumir infinitas opiniões uns dos outros. Onde textos como esse só se tornam realmente relevantes quando alguém o traduz para a linguagem da “opinião”. Como se você não pudesse fazer isso com seu próprio cérebro. Nós nos tornamos dependentes da imaginação de profissionais da criatividade. Perdemos o interesse e a disposição de criar as imagens em nossa mente quando lemos um texto. Sendo assim, é óbvio que os textos se tornaram enfadonhos. Não é que agora temos acesso a técnicas superiores que permitem uma comunicação mais rápida e prática. Estamos perdendo a capacidade de usar nossa própria imaginação. Nós agora consumimos a imagem criada pela imaginação de outra pessoa.
A crença de que uma boa comunicação depende de uma transmissão sintética e rápida da mensagem não tem o menor sentido. A busca por uma mensagem curta que poderia transmitir toda informação deste texto seria criticável em si mesma. Acreditar que você pode estabelecer uma boa comunicação sobre um assunto tão complexo sem ocupar uma boa parcela do tempo e sem exigir muito esforço cognitivo é absurdo. Uma sociedade em que tudo precisa ser tratado em poucas palavras, e com uma apresentação cativante, que chame a atenção, é completamente inviável. Por detrás da substituição de textos “longos” por vídeos do Youtube existe uma visão liberal e antissocial de mundo, e por isso não é nenhuma surpresa que incels e a internet nasceram um para o outro.
Nesta perspectiva, você pode esperar que o anarquismo torne-se uma fatia de mercado tão promissora quanto o veganismo está se tornando agora. O capitalismo tem assimilado o potencial anárquico da sociedade e transformado em mercadoria porque temos sido incapazes de apresentar uma crítica à autoridade que não recaia num tipo de liberalismo. Porque nosso foco na “física do poder” do Estado tem ocultado a cultura do poder em nossas relações cotidianas. Porque não conseguimos nos decidir como afinal vamos lutar ao lado das minorias e lidar com diferenças em nossos grupos na prática. Porque ainda não nos organizamos para combater de fato o inimigo. Ainda estamos discutindo quem é o inimigo; onde ele está; como ele se parece; o que ele quer; como ele age… Estamos inseguros porque eles possuem vários de agentes infiltrados entre nós, enquanto nossos agentes não conseguem chegar nem na porta de uma instituição sem serem identificados.
O futuro da anarquia não parece promissor se não encontrarmos outra forma de nos reunir e de nos comunicar. Esta nova estratégia de comunicação, seja ela qual for, precisa ser abrangente e viável sem depender da internet, ela precisa ocorrer dentro das redes sem ser assimilada pela “inteligência coletiva”, pela ditadura do algoritmo e do big data. E precisa ocorrer fora das redes sem se tornar elitista ou isolada. Esta é uma questão vital com a qual anarquistas deveriam estar se preocupando.
Notas:
[1] Interview for Woman’s Own (“no such thing as society”). Disponível em: https://www.margaretthatcher.org/document/106689
[2] Adam Curtis, The Century Of the Self, documentário. Disponível em: https://www.ovelhaeletrica.com/blog/2018_10_12_the-century-of-the-self-legendado.html