O cicloativismo em Goiânia

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Um relato sobre o cicloativismo em Goiânia e uma chamada para reconstruir esse movimento.

Bicicleta é política. Locomover-se usando uma bicicleta é um ato político. E todo ato político pode ser deslegitimado, apropriado e transformado no seu contrário. Infelizmente é o que tem acontecido em Goiânia, e não é muito diferente do que acontece em outras cidades. A organização de “bicicletadas”, manifestações que reúnem diversas pessoas pedalando pelas ruas, ocorreu em diversos momentos em Goiânia, parou e retornou várias vezes.

A bicicleta é o principal meio de transporte individual acessível pela classe social mais baixa. É a primeira coisa que alguém compra quando passa ter uma renda mínima. Mas a quem serviram as ciclovias e todas as ações de governos e de empresas supostamente valorizando as bicicletas? Serviu a uma classe para quem bicicleta é esporte, é saúde, é beleza, é natureza, é sustentabilidade, é simplicidade, enfim, é apenas capital cultural. É algo que conta no seu currículo de classe média consciente, te faz parecer mais humano e menos capitalista. É gestão da imagem.

A mentira da mobilidade urbana vai muito além das ciclovias mal construídas. As bicicletas se tornaram símbolo do aburguesamento, da elitização, da higienização, da gentrificação. A classe média não gosta de bicicletas, ela consome “bikes”. Uma bike boa, bonita, que dure e que seja confortável é um investimento significativo. Há bicicletas de 40 mil reais sendo vendidas nas lojas mais populares de Goiânia.

Ao mesmo tempo, você não encontra mais bicicletas acessíveis. Por que uma loja iria continuar vendendo uma coisa comum pra pobre se pode vender um produto “diferenciado” pra quem pode pagar mais? Até as bicicletas compartilhadas são para quem tem Smartphone, cartão de crédito e não vive contando moedas pra comprar um pão. Quem tem a sorte de ter uma bicicleta não consegue mais pagar pela manutenção dela. Os mecânicos agora só sabem consertar bikes. Bikes têm peças importadas, que são indexadas, cromadas, leves, duráveis, de qualidade. E exigem outro procedimento para montar e fazer manutenção. Bicicletas são velhas, são ruins, são difíceis de regular. Quer dar uma revisão geral na sua bicicleta? Ih, não fazemos isso aqui, dá trabalho demais, olha esse câmbio antigo, não dá pra regular, esse freio é ruim assim mesmo, essa coroa é peça de museu, isso aqui só vai te dar dor de cabeça, vai estragar rápido… O preço da revisão geral tá quase o preço da bicicleta, não prefere comprar uma bike?

Quem mexeu a vida inteira com bicicletas sabe do que elas são capazes. Os donos de estabelecimentos para bicicletas fizeram a transição para a “era moderna” das bikes por motivos econômicos, não porque elas são melhores. Por que continuar trabalhando para pobres se você pode trabalhar para burgueses? Essa é a lógica do capitalismo.

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As bicicletas foram roubadas dos pobres. Isso foi realizado com a cooperação dos ciclistas de domingo, que pedalam protegidos por cones de sinalização; os ciclistas de passeio; os ciclistas que se fantasiam de homem-bala como se bicicleta fosse algo muito perigoso; os ciclistas que se dividem em níveis: iniciante, amador, profissional… Que pedalam como se fossem um regimento militar, guiados por apitos e gritos de “vai vai vai”, seguindo caminhos definidos, na velocidade definida por uma autoridade que organiza tudo com o patrocínio de uma marca. Todos de capacete, câmara reserva, luva, garrafa térmica e pisca-pisca. Tudo seguro, separado do trânsito, separado do mundo real.

Faça um experimento mental e imagine um pedreiro que anda todo dia de bicicleta tentando participar de um desses passeios. E quando nós criticamos os ciclistas e defendemos os bicicleteiros, dizem que nós é que criamos divisões? Hipócritas. Eu tenho asco de ciclistas. Desses que levam a bike no carro pra fazer trilha. Desses que sonham com uma bike de dez mil reais. Que acham que bike combina com velocidade. Vocês me dão asco. É isso que a bicicleta se tornou, um meio para a classe média fingir que está na Europa.

A Massa Crítica surgiu com uma proposta totalmente diferente. Era um movimento anti-globalização que criticava a dependência automobilística, o modelo econômico que privilegia quem tem carro e usa as bicicletas só como diversão e exercício. Era um movimento que visava o pedalar como ação direta contra o capitalismo motorizado, a bicicleta como substituto para o carro (um carro a menos), como forma de se locomover por uma lógica não capitalista, não elitizada, menos dependente de tecnologia, de consumo, de indústria, de poluição.

Estávamos prontos para protestar contra qualquer político que baseasse seu mandato em construir viadutos para “melhorar” o trânsito somente para quem tem carro. Contra políticas que visam incentivar a população a adquirir um carro numa cidade já superlotada de veículos com motor. Estávamos pedalando lado a lado com as rádios livres, com o centro de mídia independente, com as feministas que fazem yoga no parque, com as hortas comunitárias, com veganos, LGBTs e anarquistas…

A Massa Crítica era um experimento de horizontalidade, sem organização centralizada. As bicicletadas eram organizadas por quem estivesse disposto; os trajetos eram decididos por quem aparecesse na hora; nós seguíamos na velocidade do mais lento e ocupávamos as faixas que eram consideradas exclusivas para carros. Nós trazíamos a visibilidade de que bicicleta é um veículo e motoristas opressores não passarão! Não era aceitável um ônibus “tirar um fino”, uma moto querer competir ou um carro tentar invadir nosso espaço. Ao invés do domingo na ciclofaixa, pedalávamos na sexta-feira, no horário de pico, nas vias mais movimentadas, e deixávamos nossa mensagem no caminho. Era uma luta de classes, um conflito por espaço, por direito e por respeito.

Mas tudo isso se perdeu. Iniciativas patrocinadas por bancos e voltadas para ciclistas de domingo se tornaram muito mais interessantes. Afinal elas têm apoio da prefeitura, tem visibilidade positiva na mídia, tem uniformes bonitos, são de utilidade pública, ajudam crianças e adultos a descobrir o mundo maravilhoso das bikes! Quem não iria gostar disso? Eu te digo quem, os anarquistas. Esses são acusados de “abandonar o barco”. O fato é que burgueses nunca estiveram no mesmo barco da Massa Crítica. Nunca compreenderam o que estávamos fazendo. Confundiram, pensaram que estávamos querendo montar um grupinho de pedal “contra cultural”. Nunca se entenderam como ativistas. Tinham medo de parar o trânsito e atrapalhar os motoristas. Não compreendiam que se tratava de um ato político.

O efeito disso foi a dissolução do grupo. Não soubemos dialogar com os bicicleteiros marginalizados. Não soubemos manter a bicicletada sem o apoio dos ciclistas de passeio. Mas este não precisa ser o fim. As bicicletas resistem. Diferente do petróleo, elas não irão acabar tão cedo. Eu me lembro de ver os ciclistas gritando “cadê a ciclovia” durante o discurso de inauguração do viaduto da T-63. Interrompemos o discurso do prefeito por alguns segundos com nossa manifestação. Aquilo foi visto como uma vitória. Sabemos que isso não foi muita coisa, mas agora não temos nem isso. Está na hora de reorganizar.

A vida se organiza em ciclos. Nos vemos nas ruas.

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Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

2 comentários em “O cicloativismo em Goiânia”

  1. Bom artigo

    Acho que com toda essa situação por causa do covid-19, muitas serão as pessoas que decidirão no final trocar o carro pela bicicleta.

    Também agora que a bicicleta elétrica existe, muitas das pessoas que não usavam a bicicleta tradicional para ir ao trabalho porque suavam porque a distância era muito longa agora não têm esse problema.

    Acho que há cada vez mais pessoas que desejam cidades mais limpas e silenciosas.

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