Um resumo da teoria da identidade de Dubar e sua aplicação na sociologia do trabalho em relação ao desemprego.
Trabalho e identidade são duas categorias muito importantes para a sociologia atual. Existem diversas abordagens para ambas. As questões de identidade dizem respeito aos processos pelos quais indivíduos se identificam, ou deixam de se identificar, como participantes de um determinado grupo social, ou como um grupo se identifica como diferente de outros. O que faz você dizer que é ou não anarquista, ou artista, ou ciclista, ou punk, por exemplo? A maioria das discussões sobre identidade na sociologia dizem respeito ao velho problema entre individual e social. Ou seja, sua identidade é uma produção individual sua ou é algo atribuído pelo meio em que vive e independente da sua vontade, ou ambas as coisas?
As teorias da identidade se ligam à sociologia do trabalho por causa de perguntas como: o que faz você dizer que é, foi ou deseja ser professor, engenheiro, empresário? Enfim, são questões sobre a identidade profissional. Vamos usar como exemplo a identidade profissional de quem se encontra sem emprego, fora do mercado de trabalho. Para isso, iremos usar a pesquisa de Marineide Maria Silva, e a teoria de Claude Dubar.
Identidade em dois eixos
A teoria sociológica da identidade de Dubar se destaca por não procurar distinguir entre identidade individual e identidade coletiva. Ao invés disso, ele trata da identidade social enquanto uma articulação entre as transações internas e as articulações externas aos indivíduos e as instituições com as quais interagem. Seu ponto de partida é a dualidade entre o eu e o outro, que é inerente ao social: “identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática” (DUBAR, 1997, p. 135). Ambas constituem o processo de socialização. Assim, existem dois processos diferentes, que não podem ser reduzidos a um mecanismo único: o primeiro diz respeito aos atos de atribuição, que visam definir a identidade do outro, e só pode ser analisado no interior dos sistemas de ação nos quais o individuo está inserido, seu ambiente ou contexto social. O segundo diz respeito aos atos de pertencimento, que visam definir a identidade para si, e só pode ser analisado no interior das trajetórias sociais que os indivíduos constroem para si mesmos, ou seja, aquilo que a pessoa entende sobre ela mesma. Temos então uma transação subjetiva dependente de uma transação objetiva: o que você entende sobre si muitas vezes é uma reação, de aceitação ou negação, ao que outros entenderam sobre você, e quase nunca algo tirado do nada.
Destes dois processos forma-se um campo de negociação identitária. Apesar de diferentes, os dois processos utilizam um mecanismo comum, o da tipificação, implicando a existência de tipos identitários. Os indivíduos de cada geração constroem suas identidades com base em três componentes: identidades herdadas; identidades virtuais (atribuídas durante a socialização primária) e identidades possíveis (ou profissionais, alcançáveis na socialização secundária). Estas últimas estão relacionadas ao trabalho e à formação escolar ou profissional. Ou seja, aquilo que você é desde que nasceu, aquilo que dizem que você é ou vai ser durante a infância/adolescência, e aquilo que você quer ser quando crescer, ou quando se formar. Mas isso não significa reduzir identidades sociais ao status de emprego ou aos níveis de formação. A entrada no mercado de trabalho é um momento importante da construção de uma identidade autônoma, pois nele há uma projeção de si no futuro e a antecipação de uma trajetória: agora que eu tenho emprego, o que realmente eu quero ser, para além da profissão?
Dubar situa quatro posições identitárias a partir de dois pares: individual e coletivo; oposição e aliança. 1. A combinação entre preferência individual e estratégia de oposição caracteriza a identidade do distanciamento. 2. A combinação entre preferência individual e estratégia de aliança caracteriza a identidade fusional. 3. A combinação entre preferência coletiva e estratégia de oposição caracteriza a identidade negociadora. 4. A combinação entre preferência coletiva e estratégia de aliança caracteriza a identidade de afinidade.

Dubar define a identidade como espaço-tempo geracional, isto é:
“A identidade social não é ‘transmitida’ por uma geração à seguinte. Cada geração a constrói, com base nas categorias e nas posições herdadas da geração precedente, mas também através das estratégias identitárias desenvolvidas nas instituições pelas quais os indivíduos passam e que eles contribuem para transformar realmente” (DUBAR, 1997, p. 156).
Dinâmicas históricas das formas identitárias
Dubar faz uma abordagem sociológica das formas identitárias baseando-se na hipótese de que elas podem ser generalizadas pelas grandes teorias sociológicas e estão ligadas a processos históricos de longa duração. Novas formas de individualidade surgem de “processos que modificam os modos de identificação dos indivíduos em consequência das transformações mais significativas na organização econômica, política e simbólica das relações sociais” (DUBAR, 2006, p. 19). Os três grandes processos históricos abordados são: 1. O processo de civilização, descrito por Norbert Elias, relacionado ao aspecto político, representa uma passagem das formas coletivas para formas individualizadas. 2. O processo de racionalização, descrito por Max Weber, relacionado ao aspecto simbólico, representa uma passagem da relação comunitária para a relação societária. 3. O processo de libertação (ou emancipação), descrito por Marx e Engels, relacionado ao aspecto econômico, representa a passagem das sociedades comunitárias pré-capitalistas para as sociedades capitalistas, e dessas para sociedades comunistas pós-capitalistas.
O processo de civilização simplifica uma questão muito complexa, que é a primazia da identidade do Eu sobre a identidade do Nós ao longo do processo histórico. “A teorização de Nobert Elias dificilmente evita as armadilhas do evolucionismo” (DUBAR, 2006, p. 22), já que identifica uma polarização que percorre toda a história humana, partindo da dominação completa da identidade coletiva sobre a individual para uma gradual tomada de consciência individual, ou processo de individualização. Isto é descrito como uma aprendizagem progressiva do autocontrole, mas não há de fato nenhuma evidência empírica que sustente essa especulação. Mesmo nas sociedades mais antigas existem divisões de gênero e de idade, por exemplo. Dubar cita o caso da identidade Samo, estudada por Françoise Héritier, onde existe um choque entre dois mundos: um masculino e socializado, outro feminino e pouco socializado. O que Elias chama de processo de civilização, “baseado na centralização política e na complexidade social” é semelhante ao que Durkheim chama de aumento da densidade material e moral das sociedades, e se trata de um processo inseparável do aparecimento de novas crenças, especialmente as filosóficas e religiosas, mas tende a uma espécie de darwinismo social.
Descartes, ao rejeitar a filosofia escolástica, deu a primeira definição moderna do Eu: o Cogito (penso logo existo). Kant levou isso mais adiante transformando o Eu (das Ich) numa categoria transcendental e uma condição da razão prática. Isto é, não se tratava mais de um conceito empírico, mas de uma consciência moral. Elias relaciona isso à ascensão do Estado absolutista e ao surgimento da sociedade de Corte, que é uma forma societária organizada em torno do Estado moderno e das suas instituições centralizadas. A identidade de Corte é formada a partir de relações sociais que já não se baseiam no respeito coletivo da tradição, mas na competição individualizada. No século XX, o predomínio do Nós societário e a legitimação da identidade nacional provocam também as guerras mundiais e o horror do Holocausto, que foi uma forma racionalizada e burocratizada de eliminação do Outro. “Em nome da pretensa superioridade duma ‘civilização’ sobre todas as outras, é a barbárie guerreira que emerge” (DUBAR, 2006, p. 28). Esta seria uma limitação do conceito de processo civilizatório em Elias.
Já em Weber, a questão é o processo de racionalização. Weber não usa o termo “identidade”, mas parte de uma análise compreensiva da ação humana considerando-a do ponto de vista do seu significado subjetivo. As formas comunitárias são caracterizadas pelas relações sociais tradicionais, enquanto as formas societárias são caracterizadas por interesses racionalizados. Estes podem ser de dois tipos: o primeiro se refere aos valores e o segundo à relação instrumental para atingir um fim. Entre as elites letradas das grandes religiões universais surge uma nova forma identitária, caracterizada pelo que Michel Foucault chama de “cuidado de si”. Este cuidado de si é um individualismo baseado numa moral pessoal e rígida, relacionado ao ‘self made man’: aquela pessoa que se tornou o que é com seu próprio esforço, ao seu próprio modo, por escolha própria. O processo histórico que determinou o surgimento dessa expressão autônoma do Eu manifestou-se em diversos contextos. Por exemplo, em Roma, quando o casamento deixa de ser um contrato entre um pai e um marido e passa a ser um contrato entre dois cônjuges. No contexto político, representa a criação de um espaço público mais aberto, onde o indivíduo pode dizer quem ele é. No contexto econômico, representa o crescimento do comércio, onde alguém fica rico “com o próprio trabalho” (mesmo que explorando outros), ou seja, sem depender de uma herança ou título de nobreza.
Este modo de identificação baseado na introspecção e na procura de um ideal moral é chamado de forma reflexiva. Para os cristãos protestantes, o caminho da salvação se torna uma questão pessoal, dependente da sistematização racional dos mandamentos éticos, e o trabalho foi visto como um meio racional de realizar a salvação. Isto faz emergir uma classe de comerciantes burgueses. O espírito capitalista implica numa conduta de acumulação primitiva em que não é permitido consumir tudo que é produzido, mas é incentivado o reinvestimento incessante do lucro. Isto, por sua vez, conduz à identidade empresarial puritana, uma conduta racional baseada na ideia de Beruf (vocação secular). Com isso, ocorre uma transição da forma reflexiva para uma forma narrativa, onde o princípio é a ação no mundo, e não a reflexão interior sobre si próprio. A identificação é com uma história pessoal, mas voltada para fora, para as realizações práticas como realizações de si: o que você realiza te define. O desencantamento do mundo é o resultado desse processo, no qual uma comunidade cheia de magia (na qual as identidades são definidas em geral desde o momento do nascimento) é substituída pela sociedade racionalizada (na qual as identidades são definidas por conquistas materiais ou status social). Porém, o século XX rejeitou o triunfo completo da racionalidade econômica. A expansão e as crises do capitalismo fizeram emergir a perspectiva de uma nova forma social, e surgiram movimentos sociais e revolucionários.
Chegamos então ao processo de emancipação e a consciência de classe, segundo a análise de Marx e Engels. Tudo começa com o surgimento do proletariado, que não possui nada além da sua força de trabalho. A dominação passa ser vista como exploração econômica, expropriação e exclusão, que resulta numa luta de classes e na possível superação da sociedade capitalista, o que também determina o surgimento de uma nova forma de identidade: a identidade operária comunista. O comunismo seria o resultado final de um processo no qual se desenvolveram as forças produtivas de modo que estas se libertam das relações de produção capitalistas, possibilitando a liberdade dos indivíduos, o fim da divisão de trabalho ou mesmo a abolição do trabalho. Para isto também seria necessário o fim do Estado, substituído pela livre associação de indivíduos. A liberdade pessoal só é possível em comunidade, porém não se trata de restabelecer uma forma comunitária primitiva, e sim a criação de uma forma comunista por meio de uma socialização pós-capitalista que atinge a humanidade como um todo, pela primeira vez na história. Indivíduos e meios de produção seriam coletivizados numa identidade comunista. Por isso, o individualismo foi acusado de ser um resíduo de consciência burguesa. Porém, duas divergências fundamentais atrapalham a definir a forma identitária socialista e comunista: para alguns, a relação com o coletivo (o Nós) é comunitária (coletivista) e para outros é societária ou mesmo individualista (libertária). Formam-se tradições em oposição, como o anarquismo e o reformismo.
Neste ponto, Dubar aponta para a diversidade das trajetórias e identidades operárias. Ele afirma que o pluralismo radical das identidades operárias demonstra que a luta de classes contra o capitalismo não vingou historicamente. Existem movimentos tanto em direção às formas comunitárias ou culturais, em que o Nós modela o Eu, quanto em direção às formas societárias ou narrativas, em que o Nós é modelado pelo Eu. Há também outras duas formas intermediárias: a reflexiva, na qual há um Nós comunitário e um Eu voltado a si mesmo; e a estatutária, na qual há um Nós societário e um Eu voltado para os outros. Sendo assim, as quatro formas (cultural, narrativa, reflexiva e estatutária) são resultado da combinação relações comunitárias ou societárias a trajetórias voltadas para si ou para o outro. “Os três grandes processos abordados neste capítulo fazem emergir essas formas em momentos diferentes da história humana” (DUBAR, 2006, p. 49). O processo de civilização faz surgir a forma estatutária. O processo de racionalização, a forma narrativa. O processo revolucionário de libertação, a forma reflexiva. A forma cultural seria a mais primitiva e tradicional.
Dubar também afirma que “estas formas de identidade são inseparáveis das relações sociais (…). Não existe Identidade sem Alteridade” (DUBAR, 2006. p. 52). Essas relações podem implicar em dominação de um grupo sobre outros. Assim, na forma cultural existe uma dominação do sexo, na forma estatutária existe uma dominação burocrática, na forma reflexiva existe uma dominação simbólica, e na forma narrativa existe uma dominação de classe.

A crise das identidades profissionais
Dubar tenta explicar a crise das identidades profissionais partindo da dinâmica do capitalismo como destruição criativa, ou seja, do processo de modernização. Neste processo, percebido tanto por Marx quanto por Weber, as antigas formas de produção e de troca são continuamente substituídas por outras mais eficientes. A busca incessante pela elevação do lucro e pelo domínio do tempo exige também um agente público regulador, passando a ser não apenas um assunto econômico, mas um assunto político e de Estado. É uma modernização dos capitais, dos saberes e das regras, e leva à busca de um novo indivíduo, capaz de lidar com estas pressões. Isto produz o escoamento dos empregos. Mas uma parte da mão-de-obra não encontra emprego pela falta de mobilidade e de uma política de conversão aos novos empregos, o que gera exclusão.
O imperativo da gestão da empregabilidade (a ideia de que a responsabilidade de se manter empregado é exclusivamente do trabalhador) promove a competitividade e degrada os grupos menos protegidos. As transformações do trabalho aumentam as incertezas quanto ao futuro do trabalho assalariado. Porém, afirmar que a sociedade salarial vai acabar é mais uma utopia do que uma tendência em curso. A tese de Dubar é que essas mudanças são contraditórias. A emergência de uma nova forma identitária está em crise. Para afirmar isso, Dubar recorre a três tendências que dificilmente se realizarão plenamente: o trabalho enquanto resolução de problemas; o trabalho enquanto realização de competências e o trabalho enquanto relação de serviço.
A identidade de ofício supunha uma comunidade na qual se transmitiam maneiras de fazer, de sentir e de pensar que provinham valores coletivos e referências pessoais. Mas agora, trabalhadores desrespeitados por seus clientes e desvalorizados pelos seus chefes sofrem com uma falta de reconhecimento. Os conflitos de classe agora seriam por reconhecimento e reivindicação de identidade. “Estamos na intersecção de dois paradigmas, de duas maneiras de pensar os laços entre construção de individualidade e construção social” (DUBAR, 2006, p. 108). Dubar relaciona os três modelos culturais de Sainsaulieu a três identidades: O modelo fusional relaciona-se à identidade categorial; o modelo negociador relaciona-se à identidade de empresa; e o modelo de afinidade relaciona-se à identidade incerta, individualista ou de rede. Esta última é uma forma voltada à realização de si, num contexto altamente competitivo, em que os indivíduos têm a obrigação de enfrentar as incertezas crescentes e dar um sentido positivo à precariedade. Deste modo, Dubar pergunta: esta forma não estará em crise permanente? A identidade profissional poderá se tornar uma história imprevisível, incerta, em permanente reconstrução. Será, assim, uma identidade de crise e em crise.
O mosaico do desemprego
Partindo da base teórica de Dubar, Marineide Maria Silva apresenta uma tese sobre a identidade de pessoas que se entendem como desempregadas. Embora o trabalho não seja a única fonte de identidade, a privação do trabalho provoca o que Dubar chama de “ferida identitária”, alterando significativamente as relações sociais. Os desempregados em geral são considerados como uma categoria única de pessoas que sentem vergonha e culpa por sua situação, além de sofrerem muito com o desemprego. Mas Silva afirma que isso varia muito de acordo com a identidade herdada e com as expectativas projetadas para o futuro. Assim, o desemprego é considerado como algo mais doloroso para homens mais velhos que tiveram uma boa formação. Silva se utilizou de recortes geracionais, educacionais e de gênero, mas foi além deles, indicando quatro categorias de identidade dos desempregados, de acordo com as combinações entre transações objetivas (reconhecimento social ou dificuldade de projetar o futuro) e subjetivas (relação entre identidade herdada e identidade visada), seguindo o modelo de Dubar. Cada um dos tipos é descrito em três itens: a identidade para o outro, a identidade para si e a transação identitária.
A primeira identidade é do sobrevivente, um sujeito pobre e com baixa qualificação, que não está preocupado em conseguir um bom emprego, mas sim em sobreviver. Ele é menos suscetível a sofrer pela falta de emprego porque sua identidade não repousa no emprego, mas na sua capacidade de lutar para permanecer vivo. A segunda identidade é a do esperançoso, um sujeito pobre e sem muita qualificação, mas cujos pais ascenderam socialmente, e que alimenta a esperança de fazer o mesmo. Não encontrando essa possibilidade, ele sofre com o desemprego. A terceira identidade é a do apreensivo, que mais sofre com o desemprego. É um sujeito com boa qualificação, mas que procura por um tipo de emprego que não existe mais, um emprego estável e seguro, com garantias de ascensão. A quarta identidade é a do otimista, que em geral é mais jovem, está entrando no mercado, e vê o desemprego como um período de reavaliação e busca por oportunidades melhores.
Para Silva, “os desempregados estão forjando novas identidades para sobreviver ao desemprego” (SILVA, 2009, p. 18) que estão relacionadas às formas vividas anteriormente. Os desempregados se diferenciam entre si como forma de se justificarem, buscando ao mesmo tempo uma absolvição e uma responsabilidade. Assim, desenvolvem uma série de estratégias para lidar com o desemprego. Uma delas é buscar oportunidades por meio das suas redes sociais.
Bibliografia:
DUBAR, Claude. A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Porto, 1997.
______. A crise das identidades: A interpretação de uma mutação. Porto: Afrontamento, 2006.
SILVA, Marineide Maria. O mosaico do desemprego. 2009. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Unicamp/IFCH, Campinas. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?down=000448884. Acesso em 12/11/2011
Uma consideração sobre “Trabalho e identidade”