
Um ensaio experimental sobre o conceito de kayfabe e a confusão entre realidade e ficção.
Quanto mais eu observo o atual contexto político, mais eu penso na obra do filósofo francês Guy Debord, A sociedade do espetáculo (1967). A pós-realidade não é sobre a imagem se tornando mais importante que o real, e sim sobre a impossibilidade de distinguir o real da imagem. Não é só fake, é deepfake. Engana mesmo os melhores checadores de fatos. Mesmo que exilássemos todos os anunciadores da pós-realidade em outro planeta, isso não nos reconectaria com a realidade. O problema é maior que eles. Será que a reconexão ainda é possível? Sim, esse é mais um daqueles textos. Este ensaio foi inspirado pelo vídeo Kanye and The End of Reality, do canal Wisecrack.
No século XX, nós aprendemos a questionar a mídia e isso foi ótimo. Mas ao mesmo tempo talvez tenhamos inviabilizado o senso de realidade. Como? Aceitando sem questionar a internet como ferramenta para questionar tudo. Acreditando que ela era confiável porque era criada por nós mesmos, que bastava cada um cuidar do seu próprio filtro. Era uma aposta do tipo tudo ou nada, nós apostamos na internet porque ela parecia nos dar esse poder. E nós perdemos.
Nós perdemos porque, esse tempo todo, a grande mídia estava moldando a internet sem que soubéssemos, e coletando informações de valor inestimável sobre como nós pensamos. Os especialistas em manipulação de massas não permaneceram nos velhos meios de comunicação. Eles vieram para a internet junto com a gente, e eles começaram a observar e anotar e a fazer experimentos. E descobriram que, embora a lógica seja diferente, as possibilidades são incríveis. E eles aprenderam a usar, como aprenderam. Neste ponto eu recomendo bastante as reflexões de Bruno Torturra e concordo com ele que a internet deve ser compreendida como ciberespaço. Meu argumento, infelizmente, é que esse espaço se encontra definitivamente dominado.
Quando se trata de globalizar narrativas, ninguém supera os Estados Unidos. De lá se espalham quase todas as ideias que dominam o mundo, e principalmente o Brasil. Os EUA detém um monopólio cultural global sobre nós. Praticamente tudo que conhecemos geralmente passa pelos EUA antes de chegar até nós, até mesmo a crítica ao capitalismo e ao imperialismo.
Há uma cultura popular nos EUA que pode nos ajudar a compreender a pós-realidade: o WWE ou luta livre profissional. Todo mundo sabe que essas lutas são coreografadas, os lutadores seguem um script e fingem ser inimigos dentro e fora do ringue, quando na verdade são parceiros de atuação. O termo em inglês para esse segredo aberto é kayfabe. A emoção da luta é assistir um drama entre o bem e o mal que foi criado para parecer espontâneo. Quebrar o kayfabe é moralmente condenável. O kayfabe vai além da suspensão da descrença que ocorre nos truques de mágica. Não é apenas um estado lúdico em que o público acredita temporariamente no que está vendo, até acabar o show. É uma filosofia sobre a verdade daquilo que os indivíduos SENTEM. Mais do que acreditar sem prova, é a certeza de que não é possível provar nada. A verdade não é acessada senão por meio do espetáculo, ou seja, ela não passa de uma narrativa vencedora.
Se falar sobre o kayfabe na luta livre é um tabu, imagine na política. E ainda assim, todo mundo sabe que acontece. E sabe quem é muito fã de WWE?
Trump não é o primeiro presidente a fazer algo do tipo. Não se esqueça que Ronald Reagan, o pai do neoliberalismo americano, era estrela de Hollywood. Mas Trump vai ser lembrado como o político que se elegeu na base do kayfabe.
No Brasil nós temos o nosso Trump, não é? E por que acreditamos tanto nele? Seus defensores e opositores parecem cair como patinhos em tudo que ele diz, pois tratam tudo como se fosse sério.
Segundo Adam Curtis, em seu documentário HyperNormalisation (2016), a esquerda fugiu da política real e foi para o campo do virtual, onde ela pode viver a cômoda ilusão de lutar pela democracia por meio da internet. As peças desse quebra-cabeça não se encaixam facilmente, mas eu vou tentar entender como isso aconteceu.
A culpa é das estrelas
Esta é uma história de como a política se tornou WWE e mesmo a esquerda passou a fazer política de kayfabe, ou seja, fingir que ficções são reais e encenar conflitos que não existem visando apenas o espetáculo.
O primeiro personagem dessa história é o movimento Anonymous. Ele cresceu da ideia de que a anonimidade uniria as pessoas numa inteligência coletiva, e essa inteligência teria o poder de desafiar governos. A ideia de que um grupo de nerds seria o terror da classe dominante fazendo ativismo pela internet pode parecer ridícula quando dita assim, mas foi levada a sério por muita gente. Esse fenômeno é basicamente um produto de uma cultura propagada por Hollywood, em filmes como The Matrix e V de Vingança, produzidos e roteirizados pelas Wachowski. Estes produtos de entretenimento se apropriaram de uma mensagem política radical para justificar um discurso não tão político nem tão radical assim: a luta contra a “corrupção”.
Quantas vezes você já viu uma referência a tomar a pílula vermelha? Essa é uma metáfora para descobrir uma verdade sobre o mundo, mas diferentes grupos interpretam essa verdade de modos diferentes. Para o Movimento pelos Direitos dos Homens, tomar a pílula vermelha significa perceber que o mundo está dominado pelo feminismo, e que os homens são ainda mais oprimidos do que as mulheres. Trata-se de um movimento de reação ao feminismo que existe desde os anos 70 nos EUA, e que ganhou nova força na internet na última década.
As Wachowski são duas mulheres trans, nerds, fãs de Dungeons & Dragons, videogames, quadrinhos e animes. Lana fez a transição em 2012 e Lilly em 2016. Em 2010, estavam gravando no Iraque com Jesse Ventura, lutador de WWE aposentado, ator e ex-governador de Minnesota pelo Partido Reformista, uma espécie de “centro” da política americana, que agrega conservadores e liberais. Não que as Wachowski defendam essa visão política. Essa é apenas uma “estranha coincidência”.
Vamos falar também de Jacque Fresco, um futurista autodidata que trabalhou com design industrial em Hollywood e sonhou transformar a sociedade por meio de seu projeto de engenharia social, o Projeto Vênus. Se tornou conhecido depois que Peter Joseph, um cineasta também desconhecido na época, viralizou nas redes com seu documentário Zeitgeist, dando início a um movimento que, segundo o próprio Peter, é uma alternativa tanto ao capitalismo quanto ao socialismo. Fresco participou do movimento mas se decepcionou com ele. Tentou, sem sucesso, patentear o conceito de “economia baseada em recursos”, usado também por Peter Joseph. Suas referências vem da tecnocracia, um movimento que foi popular nos EUA e no Canada nos anos 30. Fresco diz ter sido expulso de um grupo comunista por discordar de Marx, além de ter participado de um evento do Ku Klux Klan para “mudar suas ideias sobre raça” com uma palestra na qual empregava técnicas de engenharia social. Ele exibiu um vídeo sobre como ensinou um porco a limpar a própria jaula. Isso, segundo ele, era pra convencer os supremacistas a deixarem de ser racistas. Suas ideias são levadas a sério por uma legião de seguidores.
O último personagem dessa história é o ciberativista australiano Julian Assange e seu WikiLeaks. Considerado um herói da luta contra o governo, ele é um defensor do liberalismo que já foi premiado pela revista The Economist. O que essas pessoas tem em comum? Cada uma ao seu modo colaborou com a criação de uma cultura imune à realidade.
A filosofia de Assange está centrada no conceito de conspiração. Sua estratégia política para atacar a corrupção dos governos consistia não em expor irregularidades, mas em criar uma cultura do “vazamento” que, segundo ele, acabaria por fim com a própria possibilidade da conspiração. O ponto não era apoiar pautas políticas específicas. Segundo Assange, isso seria cortar uma cabeça da hidra de cada vez, o que não funciona porque crescem mais duas no lugar. O ponto era tornar inviável o sistema de informação conspiratório, tornando os conspiradores tão paranoicos que seriam obrigados a parar de conspirar.
O que conecta nossas quatro personagens é justamente a substituição da ideia de luta política pela teoria da conspiração: sair da matrix. A luta de classes é substituída pela disputa de narrativas, que Marx de certo modo já criticava nas suas teses contra Feuerbach. Nessa ciberguerra, a polícia do pensamento, instalada por “think tanks”, opera ocupações do espaço mental. A arma mais eficiente para isso é o apelo ao desejo individual. É por isso que eles precisam dos seus dados. Eles precisam saber quem você é. E você concede isso para poder participar das redes sociais e fazer seu ativismo contra eles também.
Assim como Anonymous e WikiLeaks, o Projeto Vênus considera a política como um entrave, um meio ineficaz de mudar as coisas. A culpa é do dinheiro, que limita o potencial das soluções técnicas e científicas para os problemas humanos. O WikiLeaks se sustenta no sonho de mudar as regras do jogo pelo acesso científico à informação. O Projeto Vênus, na mitologia do progresso científico que finalmente criará a civilização e dará acesso a tudo: tudo será de graça e tudo será para todos.
O sonho de Assange é um mundo em que os governos não vão mais poder oprimir as pessoas porque os vazamentos não permitirão que conspirem ou escondam seus planos. Mas ao fazer isso, ele ajudou a deslegitimar toda forma de organização política. O acesso à informação não tem potencial político em si. O inimigo nunca foi a “corrupção” ou “falta de transparência” ou a “imprecisão da informação”. A consequência de uma cultura de vazamentos não é o fim da corrupção, mas o fim da política. Os vazamentos não precisam ser contidos para se manter o poder, eles podem ser usados de modo ainda mais eficiente para manter o poder nas mãos “certas”. É o caso da estratégia de firehousing, que consiste não em segurar a informação, mas em tornar os fatos irrelevantes inundando as pessoas com excesso de informação. A cultura dos vazamentos, ao erodir a confiança das pessoas em tudo que era sólido, incluindo as instituições que nos davam acesso à informação, abriu espaço para o avanço da pós-realidade.
De modo semelhante, o sonho de Fresco era acabar com os problemas sociais tornando tudo acessível a todos por meio da abundância de uma produção automatizada. A resposta da classe dominante são bilionários criando um capitalismo de renda básica nos países desenvolvidos, celebrando o trabalho criativo e a urbanidade sustentável, enquanto compram bunkers pra sobreviverem ao iminente colapso global. O empreendedorismo vem no mesmo pacote que a precariedade do trabalho. Entregadores de comida que permanecerão trabalhando e sem dinheiro para comprar uma casa pelo resto de suas vidas. E acho que não preciso falar nada sobre a pessoa que “envia amor” para os indígenas sendo massacrados no Brasil e se irrita quando recebe uma resposta como: “Suas preces são bem-vindas, mas o que precisamos mesmo é de ação política”, porque acha que já está fazendo sua parte ao divulgar fatos nas redes sociais.
O fim da história
Não estou apontando inimigos. Estas são as vítimas, como fãs de um WWE onde as pessoas são roubadas pelos mesmos lutadores que veneram, gritando o nome deles com uma paixão e sinceridade emocionantes, capazes de chorar copiosamente se por acaso o seu lutador favorito estiver no chão, aparentemente derrotado. Os hackers heróis, os YouTubers que nos tiram da matrix e os criadores de memes políticos estão todos do lado de dentro do ringue. É uma performance interativa, as pessoas que assistem podem entrar no ringue e interagir com os lutadores a qualquer momento. O que acontece no ciberespaço não mais atinge o espaço público, porque o ciberespaço substituiu o espaço público. A história se tornou fenômeno cibernético.
A internet é a nova Igreja Católica. E não precisamos de um novo Lutero, não precisamos de uma reforma nem de teses expondo como os inimigos da internet estão sentados no trono da internet. A sociedade não deveria depender do resultado da luta na arena central para poder se mobilizar. A internet abriga de fato manifestações de conflitos políticos concretos, mas ela também está lotada de confrontos meramente espetaculares. E o ponto principal é o seguinte: você não tem como saber qual é qual a não ser que tenha acesso a uma fonte FORA DA INTERNET. O segundo ponto é: como você acessa algo “fora” da internet numa cibercultura que define tudo que pode ser considerado real?
Numa cibercultura que cresce até se confundir com a cultura humana, como distinguir entre um fenômeno de internet e um fenômeno social? Não há mais distinção, porque a realidade está em extinção. A realidade é uma construção social. Sem política não há sociedade, e sem sociedade não há realidade. O sociólogo Ulrich Beck fala sobre como a modernidade reflexiva reinventa a política como uma subpolítica, matando-a e trazendo-a de volta à vida num formato individualista. Não é só que a confusão entre o que é real ou não complica a política, o fim da política também relativiza a realidade a ponto de dissolvê-la. Isso é pior que o autoritarismo ou a inversão ideológica da realidade. O fluxo acelerado de inversão e reinversão torna tudo confuso, arriscado e sem sentido.
Não estou dizendo que você deveria boicotar a internet. Eu admito, como um viciado consciente, que eu pessoalmente não vou parar. Eu tenho que manter o kayfabe. Tenho que torcer por esses lutadores-atores, porque essa é a arte que me resta. A outra opção é morrer de excesso de verdade. O kayfabe me mantém vivo.
Este é um ensaio experimental porque eu o escrevi para ver o quão longe eu poderia ir com o conceito de kayfabe. Acho que aqui é longe o bastante, podemos voltar para a realidade. Mas voltar pra qual realidade? O que estou fazendo, senão disputa de narrativas? Essa luta também não é coreografada? Sabemos que o bem vai vencer no final, sabemos que é assim que a narrativa funciona, conhecemos a estrutura da jornada do herói. Tudo parece perdido, então surge uma luz. Se o autor do texto não der essa luz até o final, é somente um texto incompleto. A narrativa NÃO PODE terminar com uma derrota definitiva, ou pode? Tal pessimismo é paralisante, desmobilizador, apolítico e não produz um bom espetáculo. Se eu não der uma solução, eu vou ser só um hipócrita… Ninguém quer ver esse filme chato de novo. Se eu der uma solução, vai ser somente para seguir o script, avançar minha narrativa e providenciar um bom show.
Qual será o desfecho escolhido? Que tropo vamos escolher para terminar essa narrativa? Dizer que a educação vai nos salvar? As novas gerações? Pessoas melhores na política? As novas tecnologias? Que mentira você prefere? Qual a tendência esse ano, o que tá na moda defender? Pode ser um remake do bom e velho marxismo? Talvez mais uma tentativa de um anarquismo que funcione? Independente do que seja, você sabe a verdade. Você não quer olhar pra ela, mas sabe. Manter o kayfabe.
O que foi a realidade?
A questão não é como voltar ao real, mas entender o que foi a realidade. A realidade tem condições muito especiais, e surpreendentemente frágeis. Ela depende de critério, fonte e confiança. O avanço da cibercultura destrói permanentemente essas três condições. O critério, como a autoridade, vinha da tradição e a da religião. Mas ainda somos muito religiosos e tradicionalistas, certo? Bem, não exatamente. O detalhe sobre o critério de realidade é que ele não pode ser imposto, mas não pode ser individual. Ele precisa ser coletivo porém espontâneo, orgânico, naturalmente consensual. Se temos que debater demais sobre o critério do critério, se não temos uma instância superior aos indivíduos que estão argumentando para definir permanentemente os casos duvidosos de modo que ambos concordem ou respeitem, basicamente perdemos acesso ao critério. E hoje, praticamente tudo é debatível. Construímos critérios coletivos só em comunidades fechadas, o que significa dizer que não o temos de fato, ele não é mais um porto seguro que nos acompanha pela vida inteira, e isso apenas eleva nossa ansiedade.
A fonte se perdeu porque estamos alienados de nossa sensualidade. As pessoas podem passar uma vida inteira alternando entre três espaços confinados: o apartamento, o carro e o trabalho. Elas não tem condições nem tempo de ir conhecer pessoalmente os fenômenos sobre o quais conversam no cotidiano. Se fossem falar somente sobre o que conhecem experiencialmente, seria uma conversa entediante. É por isso que vão falar sobre outros planetas, sobre super-heróis, sobre videogames, sobre fantasias. Quanto mais alienado da natureza, mais alto você precisa sonhar para se sentir vivo e ter algo interessante para compartilhar com outros. A fonte, a coisa em si, seria a matéria-prima da produção de critérios comuns. Mas, sem acesso comum às fontes, só nos resta confiar em relatos.
A erosão da confiança é um fenômeno já bastante documentado na sociologia. As bases de nossa confiança estavam todas soldadas a instituições que, na modernidade, começam inevitavelmente a falir. A família, por exemplo, se torna lugar de suspeita assim que o feminismo ganha espaço (e ele precisa ganhar espaço, não me entenda mal), justamente porque ela tinha uma base patriarcal. Tentamos reconfigurar a família, reabilitá-la como espaço de amor e confiança, apenas para descobrir outros conflitos, como o conflito geracional. Mesmo famílias que desafiam os padrões patriarcais podem ser tóxicas e abusivas. Descobrimos que a esquerda, antes um lugar seguro para críticos da sociedade capitalista, sempre esteve infestada de esquerdo-machos e racistas. A cibercultura ajudou a revelar que mesmo seus amigos, a família que você escolheu, não são tão confiáveis, não estão lá quando você precisa porque também estão em depressão, ansiosos, ocupados, isolados pelas camadas de bolhas sobre bolhas cujas paredes se engessam com o tempo. Seus amigos viram seus haters. Até uma transa casual ou uma interação frívola se torna um acontecimento complicado demais. Cheio de burocracia, missão, corre, canseira…
Se a exigências da vida moderna, e mais recentemente a ameaça de colapso global e fortalecimento de ideologias fascistas, transforma amigos em inimigos e parceiros em competidores, quem ainda tem tempo pra ouvir o que um estranho tem a dizer? Ele pode ser um minion, ou mesmo um discurso bonito pode estar beneficiando o fascismo se não for preciso. Do mesmo modo que a vida em metrópoles lotadas de pessoas morando na rua erode nossa empatia porque é impossível viver se preocupando com a vida de alguém e dando moedas de 10 em 10 minutos, a vida na cibercultura erode nossa compaixão interpretativa, porque é impossível viver preocupado em compreender o que comentadores diversos estão querendo dizer, exigindo 5 centavos da sua atenção de 10 em 10 segundos.
O ciberespaço cria, por sua própria estrutura, um resguardo natural da disposição de conhecer ideias novas, ao mesmo tempo em que nos dá acesso sem precedentes a elas, por mais paradoxal que pareça. A ansiedade do excesso de opções, como nota Zizek, afeta nossas escolhas de consumo, as relações humanas e a troca de ideias. Onde antes você era forçada a casar com um modo de pensamento pelo resto da vida, agora você é forçada a ter um relacionamento aberto com diversas ideias ao mesmo tempo. Mas relacionamentos abertos podem ser abusivos de modos totalmente novos, o que pega você de surpresa e machuca muito mais que a velha monogamia, porque machuca de um modo que você não esperava e não estava preparada. Por isso a geração nascida depois da virada do milênio está reinventando o conservadorismo. Não são simples vítimas de manipuladores muito eficazes. O ambiente virtual também colaborou com isso, o que significa que, sim, a internet em si tem uma parcela de culpa, não somente o uso que se fez dela.
Quando havia realidade, mesmo num conceito idealista como em Platão, ainda era possível sair da caverna. Era difícil, inicialmente seus olhos iriam doer e você ficaria um tempo atordoado até voltar a enxergar, mas tudo isso valeria a pena porque no final você poderia ter CERTEZA de que está olhando para algo REAL. Na pós-realidade, não comemoramos mais esse momento, porque nunca saímos de fato da caverna, só entramos num outro nível dela. Sabemos que logo virá outra revelação bombástica, nos veremos em outra caverna da qual precisamos sair, que será somente mais uma camada de uma cebola infinita. Todo dia é uma pílula vermelha nova pra engolir, já não tem mais graça nenhuma sair da matrix dentro da matrix dentro da matrix dentro da matrix… A única saída desse tormento é eleger uma ideia, colocá-la num pedestal, pausar a criticidade e defender essa ideia com unhas e dentes, porque se você tiver que sair da caverna de novo, quem sabe onde isso vai parar?
Nossa produção cultural reflete isso: a metalinguagem cínica, autoconsciente de sua futilidade, refletindo infinitamente como um espelho em frente ao espelho, produzindo uma vertigem acelerada, uma náusea absurdista. Todo dia isso maluco, sai fora. E como um rato sendo esmagado por uma cobra, nosso único conforto é nosso próprio devorador: nós nos confortamos com os memes que nos destroem de dentro pra fora, porque são eles que vão estar todo dia renovando nossa fé na humanidade, apenas para destruí-la de novo no momento seguinte. Pesquise sobre técnicas de tortura psicológica e você verá que a internet aplica muitas dessas técnicas pela sua própria estrutura. Dizer e desdizer e redizer e redesdizer deixa qualquer um maluco.
Rir de nervoso e passar a noite em claro assistindo cenas de vergonha alheia que induzem ao coma… São sintomas de que nós entendemos nosso fracasso como sociedade. Estamos lutando para manter o kayfabe e ao mesmo tempo a sanidade. Enlouquecendo pra poder sobreviver. Se matando aos poucos pra não enlouquecer de vez. Precisamos do kayfabe para viver, porque na cibercultura a quebra do kayfabe é sair do jogo, é o fim da linha. Se acaba o espetáculo que simplifica a vida e torna ela vivível, acaba a vida, porque a vida agora é espetáculo e o espetáculo é o único caminho para a vida.
A realidade acaba quando desistimos de entendê-la. Enquanto sociedade, será que ainda estamos tentando entender alguma coisa? Embarcamos num mundo pós-real, o único que uma sociedade informacional de complexidade crescente permite entender, o único no qual nós podemos cognitivamente viver. Então é isso, estamos na pós-realidade. O que fazemos agora?
Não me pergunte, eu estou aqui só pelo show. Pode parar de ler agora.
Quando os donos do show conseguem fazer com que você pague o ingresso pra assistir e participar da incrível luta entre a narrativa A e a narrativa B, significa que eles venceram. Entre sem pagar. Subverta a luta. Roube o show e depois acabe com ele.

Uma consideração sobre “Pós-realidade”