Sobre a naturalidade da desigualdade

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Um ensaio de filosofia sobre desigualdade social.

O termo “naturalidade” remete a algo comum, algo que normalmente se encontra no mundo. Por exemplo, um pé de feijão naturalmente cresce bem rápido, mas tal afirmação não justifica a ocorrência de um pé de feijão que cresce até as nuvens, como na fábula João e o Pé de Feijão. Tais feijões mágicos não são naturais. Outro sentido para “naturalidade” é “aquilo que provém da natureza”, mas esse conceito depende do sentido que damos para “natureza”. Se aceitarmos uma dicotomia entre natureza e cultura, por exemplo, poderíamos afirmar que casamentos não são naturais. Mas se aceitarmos a natureza como o conjunto total de ocorrências mundanas (tudo é natureza), tudo que conhecemos seria natural.

Sobre o conceito de “desigualdade”, consideremos ingênua a posição de que a desigualdade social é sempre natural e não há nada de errado com ela, dado que pessoas nascem desiguais. A constatação que sempre houve alguma desigualdade entre as pessoas não justifica a desigualdade social presente na atual civilização.

Até que ponto o grau atual de desigualdade social é uma ocorrência natural na história da humanidade? Os modernos pensadores da filosofia política costumavam a explicar a origem do Estado por certa necessidade imposta por um estado de natureza insustentável. Para Hobbes, por exemplo, o estado de natureza é um estado de guerra de todos contra todos. É preciso um Estado para instaurar o estado civilizado. Mas por quanto tempo durou este estado de guerra natural? Como a humanidade sobreviveu por centenas de milhares de anos em constante guerra uns contra os outros? Se havia uma relativa estabilidade populacional, podemos julgar que havia adaptabilidade ao meio. Mas é preciso que não se confunda estado de guerra com um estado onde a guerra é plena, assim como não se pode confundir o estado de civilizado com um estado onde a paz é plena. De fato, encontramos muito mais guerras massivas nas culturas civilizadas do que em povos originário que supostamente ainda vivem num estado de guerra.

Hobbes é geralmente mal interpretado nessa questão. Ao falar do estado de guerra, ele apenas especula sobre um estado onde a natureza é a única lei, e a possibilidade de guerra, pela falta de um poder centralizado, faz com que cada homem seja igualmente responsável pela preservação de sua vida, seus interesses, e consequentemente, da paz. Um estado de paz é um estado onde o contrato é a lei. A oposição é entre contrato e natureza. Assim, os homens em estado de paz firmam contratos e centralizam o poder, tornando ilícita certa violência de uns contra os outros, criando aparatos para conter e punir a violência ilícita, e ao mesmo tempo tirando de cada homem a responsabilidade pela paz. Este contrato entre membros de grupos maiores é também requisito para a guerra entre Estados, que são muito mais mortais e violentas que qualquer guerra entre pequenos grupos. Um grupo pequeno não consegue centenas de milhares de pessoas para uma causa comum. Isso diminui a escala dos conflitos, e torna impossível um conflito de larga escala. Um estado de guerra, portanto, não é um estado voltado para a guerra tal como a compreendemos hoje, mas sim para a manutenção de uma paz abrangente por meio de conflitos locais e temporários. Já um estado de paz é necessário para que haja guerras internacionais e duradouras em nome de interesses nacionais, religiosos ou econômicos.

Um estado de guerra é, portanto, sustentável. Hobbes pode ter acreditado, assim como muitos pensadores de sua época, que o crescimento populacional é inevitável, e por isso um estado de natureza seria insustentável e o contrato social seria inevitável. Mas o interessante de se notar aqui é a perspectiva segundo a qual a desigualdade social em grau elevado é uma ocorrência natural para seres humanos. Em outras palavras, seres humanos, diferente de outros animais, têm um modo de vida estranhamente desigual. A origem da desigualdade é vista de duas maneiras distintas: para alguns está na própria natureza humana, para outros está no desenvolvimento da cultura. Mas ambas as visões sobre a origem da desigualdade social tem algo em comum.

No estado de natureza cada homem é igualmente livre para defender seus interesses e sua vida, mas por natureza um homem tem interesse não só em sua vida, como também na de outras pessoas. A organização social comunal é inteiramente baseada em laços afetivos e não em interesses individuais. Pessoas se reconhecem como parentes por afinidade. Grupos fazem alianças por interesses comuns. Existem tabus e limitações. Esta forma de organização é resultado de um desenvolvimento cultural complexo. Ela permitiu a sobrevivência das sociedades de primatas, incluindo humanos, por pelo menos 2 milhões de anos. Se esta sociedade era sustentável, e ainda assim dizemos que a criação do Estado era necessária para a sobrevivência, devemos apontar o fator que a torna necessária. Se esse fator não é a evolução da espécie humana nem uma mudança ambiental, a única opção que nos resta é a adaptação cultural. Mas não foi o surgimento da capacidade humana de gerar sociedades que trouxe esta sociedade à existência, pois afirmar isso implicaria em determinismo. Nossa sociedade pode ser vista como uma criação cultural específica. Logo, tanto a visão que culpa a natureza humana pela desigualdade, como aquela que culpa a cultura humana em geral negam a especificidade da cultura da desigualdade.

O crescimento da desigualdade em sociedades humanas apresenta um padrão semelhante ao do crescimento populacional. Se a desigualdade humana estava crescendo gradualmente, por que apresentou uma estabilidade relativa durante todo o tempo que antecede o estouro populacional humano? A complexidade das sociedades modernas é muito diferente das sociedades anteriores. Na primeira temos uma complexidade quantitativa, resultado direto da expansão numérica da população. Na segunda temos uma complexidade qualitativa, que não resulta da expansão numérica da população, mas é resultado da adaptação do ser humano ao meio, e apresenta adições lentas e duradouras de complexidade.

A simples duração do “estado de natureza” no tempo seria suficiente para nos fazer repensar os conceitos políticos modernos. Dizer que uma sociedade sem Estado funciona não significa que nelas a vida era perfeita. Pensadores contemporâneos tem se baseado nesse tipo de dado para criar novas críticas a respeito do Estado e das mudanças sociais que seriam necessárias para diminuir a desigualdade. Para uma platéia que não imagina seres humanos vivendo sem Estado, esse discurso parece realmente absurdo. Porém, realmente absurdo é reformar um modelo social que fundamentalmente nega a naturalidade humana, pretendendo-se superior a tudo que funcionou para durante a maior parte da história humana. O estado de natureza não está no passado do homem, ele não foi historicamente superado por um estágio superior, pois o que tomamos por estágio é apenas uma forma cultural possível.

Autor: Janos Biro

Filosofista, anarquista, bicicleteiro, tradutor, zineiro e joguista.

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