A construção simbólica do homem moderno

pumpman

Um ensaio sobre masculinidade tóxica, poder simbólico e modernidade.

A modernidade é fundamentalmente patriarcal

A modernidade valorizou características que foram simbolicamente associadas à masculinidade: racionalidade, independência, iniciativa e objetividade. As mulheres cis, mulheres trans e homens afeminados foram consideradas moral, cognitiva, emocional e fisicamente frágeis e tendendo à vaidade. A sociedade moderna caracterizou pessoas afeminadas como inaptas ou infantilizadas. Quando reage a essa caracterização, a pessoa é considerada histérica, impulsiva e descontrolada. O esteriótipo da afeminada não possui as características necessárias para ser considerado confiável, seguro, diligente e com capacidade de liderança e resolução de conflitos. As relações entre transfobia, homofobia e misoginia são mais do que contingentes.

Esta violência simbólica foi promovida pelo moralismo burguês, e o tipo de masculinidade que ela procura impor é que chamamos de masculinidade tóxica. A modernidade valorizou o trabalho como dever moral e, como consequência, a preocupação com a “virilidade” que seria condição para o trabalho qualificado.

Na antiguidade, os homens eram em geral os únicos proprietários de bens, enquanto a mulher era uma de suas propriedades. No patriarcado moderno, o porte viril se torna símbolo de status. O que antes garantia o direito à herança, hoje garante o sucesso profissional, mesmo que agora se trate de uma gestão da imagem, um capital simbólico.

O feminismo ameaça o homem moderno

A mulher cis e o homem trans que adquirem independência econômica ameaçam a estrutura simbólica da masculinidade ao realizar com sucesso a mesma atividade produtiva que o homem, revelando que a “virilidade” é performática, e não fruto de determinada configuração biológica. De modo semelhante, o homem afeminado e a mulher trans que se dão bem na vida revelam que a masculinidade não é necessariamente saudável para todos que nascem com um pau.

Ao rejeitar os padrões de relacionamento e a sujeição do feminino, as mulheres e afeminadas independentes se tornam ameaças simbólicas. As mulheres que não se sujeitam ao marido passam a ser atacadas. Não podem mais ser vistas como mães responsáveis ou mulheres respeitáveis. Afeminadas são vistas, de modo parecido, como inferiores e desviantes.

Tal comportamento seria danoso à sociedade porque influenciaria meninos a se desviarem do caminho da masculinidade padrão, o que produziria uma série de prejuízos a eles. Em último grau, a insubmissão ao caráter masculino ameaça os casamentos, e por sua vez a família. As “famílias desestruturadas” se tornariam mais comuns, criando dificuldades escolares e profissionais para as crianças criadas nelas. Pois elas tenderiam a questionar os padrões sociais e de relacionamento, o que produziria uma vida mais conturbada e pessoas “metidas com política”.

Tal lógica nem sempre é admitida explicitamente, mas pode ser deduzida. O conservador teme que a ausência de uma relação tradicional, em que marido e mulher submetem-se à estrutura burguesa de família, produza uma desestruturação das relações, gerando o fracasso escolar e profissional. Quanto menor a estabilidade profissional dos membros de uma família, tanto mais imoral é sua “desestruturação”. A capacidade de seguir uma carreira profissional é um dos critérios com que se julga a moralidade de uma pessoa na sociedade do trabalho.

A modernidade não aliviou, mas sim radicalizou o machismo, associando virilidade, potência, autonomia e respeitabilidade profissional, pois a dominação econômica substituiu em parte a dominação religiosa. O bom cristão de antes é hoje o bom trabalhador, enquanto o santo é o herdeiro abençoado com a riqueza.

A crítica científica ao capitalismo também se fundou na modernidade

As estruturas simbólicas mais tradicionais estão agora sob ameaça. O capitalismo global produz uma insegurança subjetiva devido à instabilidade das instituições fundadas na política local. A austeridade é uma reação à derrota anunciada dos valores tradicionais. O motor desse movimento é moral e simbólico, não necessariamente religioso. O fundamentalismo econômico se transveste de religiosidade para ganhar força simbólica contra os inimigos do capital, que se aproveitam da instabilidade para construir alternativas ao capital e à falência de suas instituições.

A incapacidade de suportar a falência das instituições afeta também os críticos mais ortodoxos do capitalismo. Os novos movimentos sociais, que sugerem ações para além da questão de classes e afirmam que o pessoal também é político, criam uma situação incômoda nos velhos esquemas epistêmicos da crítica científica e materialista ao capital. Afinal ela ainda está fundada em ideais iluministas, que hoje estão sendo questionados pela decolonialidade, a crítica ao patriarcado e a teoria de gênero, por exemplo. Tudo que era sólido se desmancha no ar, inclusive a sólida formação econômica, histórica ou jurídica que compreende a crítica ao capitalismo como, antes de tudo, uma compreensão da teoria do valor, lei da tendência de queda da taxa de lucro, processo de circulação da mercadoria e crítica ao estado de direito burguês… Muitas vezes o que está além da questão de classe, sem a desconsiderar, é jogado fora junto com o que está aquém da questão de classe, como o individualismo liberal. A luta simbólica pela validade das teorias tradicionais também é uma luta pela identidade do homem moderno. Podemos proceder nessa hipótese e apresentar uma série de evidências que nos nos levam a essa conclusão, mas o faremos em outra ocasião.

Referências:

BUTLER, Judith. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. cadernos pagu, n. 11, p. 11-42, 1998.

DE OLIVEIRA, Pedro Paulo. A construção social da masculinidade. Editora UFMG, 2004.

SAYÃO, Deborah Thomé. Corpo, poder e dominação: um diálogo com Michelle Perrot e Pierre Bourdieu. Perspectiva, v. 21, n. 1, p. 121-149, 2003.

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 460-482, 2001.

Autor: Janos Biro

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