Ética em BioShock

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Uma resenha filosófica de BioShock e BioShock Infinite (2007 e 2013), de Ken Levine. Contém spoilers.

O objetivo desse texto é examinar como a questão ética da liberdade individual é trabalhada em BioShock e BioShock Infinite. BioShock é um jogo de tiro em primeira pessoa que apresenta temas complexos, como a filosofia de Ayn Rand, filósofa russo-americana do século XX, fundadora da doutrina do Objetivismo (não confundir com objetivismo científico criticado pela fenomenologia). Tal doutrina tem implicações metafísicas, epistemológicas, éticas e políticas. A ética objetivista é baseada num individualismo radical, também chamado por Rand de “egoísmo virtuoso”, diretamente oposto ao altruísmo e ao coletivismo. Segundo essa doutrina, a sobrevivência do indivíduo é seu único padrão moral. Este nunca deve se sacrificar por outros, seu interesse individual deve sempre estar acima de todos os outros valores, de outro modo os excepcionais sempre serão penalizados, e isso atrasa o desenvolvimento da humanidade como um todo. O único sistema social consistente com essa moralidade seria, segundo Rand, o capitalismo laissez-faire, onde o Estado tem um papel mínimo e não interfere na vida individual nem nos negócios. A liberdade individual estaria relacionada diretamente à liberdade econômica.

Rapture, a cidade submarina fictícia de BioShock, foi construída com base nesses ideais. O nome se refere a um termo cristão do século XIX: arrebatamento, que seria o dia em que Deus resgataria os salvos da Terra. Rapture é uma sociedade ateísta: “Sem deuses e sem reis, apenas o homem”, o que é consistente com o ateísmo de Ayn Rand. O fundador de Rapture, Andrew Ryan (cujo nome é uma referência a Ayn Rand) cita Eclesiastes em certo momento, chamando a Bíblia de “livro das mentiras”. É possível ouvir vários inimigos citando frases como, “eu observo todos os seus mandamentos”. A religião é colocada como um dos fatores que levaram à decadência da cidade, pois a religião depende do altruísmo.

A utopia construída por Ryan fracassa basicamente por causa da influência de um oportunista chamado Frank Fontaine, que explora o altruísmo dos outros para um fim egoísta. Fontaine abre um orfanato para meninas com a intenção de providenciar crianças para experimentos genéticos que produzem substâncias que causam alterações genéticas, concedendo superpoderes. Ele então vende esse produto no mercado, já que não há qualquer regulação comercial ou limite ético em Rapture, porém a substância tem efeitos negativos no corpo e na mente: gera dependência e leva à insanidade.

Usando um discurso de “beneficiador dos pobres”, Fontaine incita a população contra Ryan. Ryan percebe que Fontaine é uma ameaça a tudo que ele construiu, e começa a empregar métodos cada vez mais drásticos para impedi-lo, sacrificando gradualmente as liberdades civis dos cidadãos de Rapture em nome da sobrevivência da cidade.

Ryan professa a crença na “grande corrente da indústria”, uma espécie de “mão invisível do mercado”, impulsionada pelos esforços individuais de cada pessoa, direcionada somente pelo interesse individual e pelas leis de mercado, sem qualquer interferência. Ryan se recusa a regular qualquer tipo de produto, acreditando que o mercado produzirá harmonia espontaneamente, mas começa a duvidar disso quando uma escalada de violência leva a uma guerra civil e uma aparentemente inevitável decadência da cidade. Por fim, Ryan emprega todos os meios para derrotar Fontaine, chegando a mandar matar Fontaine, e por fim até mesmo tentando destruir a cidade que ele construiu para impedir que ela caia nas mãos de outros.

Fontaine financia um experimento genético de controle da mente, criando um “assassino remoto”, geneticamente condicionado a obedecer qualquer ordem que seja dita com as palavras-chave corretas. Esse assassino remoto, que não possui liberdade de escolha, é próprio protagonista do jogo, chamado Jack, o que levanta uma série de questões sobre a ilusão de agência.

Esta questão foi abordada por vários críticos e por alguns autores acadêmicos. O professor do Centro de Pesquisa em Jogos de Computador da Universidade de Copenhagen, Miguel Sicart (2011), cita BioShock em seu livro “The Ethics of Computer Games” (A ética dos jogos de computador) e Robert Jackson (2014), PhD em filosofia pela Universidade de Lancaster escreveu um livro inteiro sobre o assunto, chamado “BioShock: Decision, Forced Choice and Propaganda” (BioShock: decisão, escolha forçada e propaganda). O centro da questão é a agência do indivíduo, sua capacidade de escolher, como base para a moralidade. É possível agir moralmente sem liberdade de escolha?

Andrew Ryan pergunta: “Qual a diferença entre um homem e um escravo? Um homem escolhe, um escravo obedece”. Privado de sua liberdade de escolha, o protagonista é apenas um escravo. Quando confrontado, Ryan escolhe morrer para provar que seu ideal de liberdade é superior ao altruísmo do protagonista. A moral parece ser que nossa tendência ao altruísmo, e a manipulação que isso possibilita, sempre irá condenar as utopias liberais ao fracasso.

O protagonista aparentemente é recompensado por sacrificar benefícios pessoais para salvar crianças, mas ele também é recompensado por matar e roubar. E ele é, segundo Ryan, um “parasita”, um indivíduo que, aproveitando-se da liberdade irrestrita, age contra as condições sociais da liberdade, apropriando-se do trabalho alheio. Fontaine diz isso explicitamente: “não é preciso plantar para colher os frutos”. Com a ajuda involuntária do protagonista, Fontaine efetivamente toma o lugar de Ryan de modo ilegítimo, do mesmo modo com que o jogador adquire poder pegando tudo que encontra pela frente. Não há nada que o jogador possa fazer para mudar o destino de Jack, o que está representado nas correntes tatuadas no seu pulso.

O único elemento que parece contradizer isso é a escolha de matar ou não as meninas afetadas pelas mutações, chamadas de “pequenas irmãs”. A cientista responsável por criá-las, acaba se compadecendo delas, e decide salvá-las. Ela pede que o protagonista ajude-as ao invés de tratá-las como fonte de recursos. A decisão parece ter algum efeito sobre a jogabilidade, uma vez que matando as crianças o jogador adquire o dobro de poder do que simplesmente salvando-as. Mas a relevância dessa escolha é diminuída pelo fato de que o jogador recebe uma compensação posterior. No fim, pode ser até vantajoso resgatar as crianças ao invés de matá-las.

Se Jack é capaz de fazer escolhas reais, entre matar crianças para adquirir vantagem imediata ou salvá-las, então ele não é plenamente escravo. Fontaine tenta convencer o jogador de que não há problema em matar as pequenas irmãs porque elas já não são humanas. Essa escolha ainda seria moral se ele estiver certo? Segundo a ética objetivista, seria errado matar as pequenas irmãs? O “egoísmo virtuoso” de Ayn Rand não parece defender tal posição. Se o jogador escolhe matar sequer uma vez, o final sugere que Rapture se torna uma superpotência mundial por meio do poderio bélico. No outro final, Rapture é abandonada, as crianças vivem vidas normais, e Jack é recompensado pelo carinho delas, que o tratam como um pai. Nenhuma dessas escolhas feriria o principio de agir segundo seus próprios interesses. O problema, porém, é que se Jack é um escravo, ele não pode agir segundo seus interesses. A liberdade de salvar ou matar, a escolha entre compaixão e poder, é real ou seria apenas uma ilusão?

Alguns poderiam afirmar que essa liberdade é ilusória e que o jogo trabalha com a ideia de que nossas escolhas também são ilusórias. Independente do que o jogador escolha, Jack não estaria fazendo uma escolha livre. Por que Fontaine não usa o controle da mente para forçá-lo a matar as crianças? Talvez ele esteja testando Jack. De qualquer modo Jack não estaria fazendo uma escolha racional e livre. Sua escolha parece ser irrelevante nesse sentido.

Já em Bioshock Infinite, que finaliza a série, nós somos apresentados à teoria dos multiversos ou realidades paralelas. Ao invés de uma cidade no fundo do mar, temos uma cidade nas nuvens, Columbia, que é uma sociedade fundada por um profeta, Zachary Comstock , sob os princípios do moralismo cristão, da supremacia branca e do excepcionalismo americano. O profeta Zachary Comstock é uma alusão a Anthony Comstock, político americano que foi um famoso defensor do moralismo político, da censura de obras ofensivas e da proibição do aborto. Em seus discursos, Anthony Comstock atacou principalmente a autora anarquista Emma Goldman. Por isso, o jogador é constantemente chamado de anarquista. No lugar de Emma Goldman, o jogo apresenta Daisy Fitzroy, uma mulher negra que lidera a revolução em Columbia.

O personagem principal, Booker Dewitt, é contratado para resgatar uma garota chamada Elizabeth. Dois momentos centrais do jogo dizem respeito à reação de Elizabeth ao ver Dewitt matando pessoas. Na primeira vez ela foge e acusa Dewitt de ser um monstro, o que inevitavelmente se reflete na postura do próprio jogador. Ao jogar este tipo de jogo, nos acostumamos a matar dezenas ou centenas de inimigos para cumprir nosso objetivo, geralmente usando armas de fogo. BioShock complica um pouco mais as coisas, colocando inimigos de ambos os sexos para serem mortos. Mas a narrativa parece condenar a violência da jogabilidade, o que coloca o próprio jogador numa situação delicada, como na cena da morte de Andrew Ryan.

O outro momento central é quando a própria Elizabeth é obrigada a matar Fitzroy para salvar um menino. Ela se tranca numa sala, e só sai depois de cortar o próprio cabelo, o que representa o quanto aquela ação a transforma em outra pessoa. Nesse momento, Elizabeth faz a pergunta central do jogo: “Como se lava as coisas que você fez?” O questionamento central é sobre a redenção de uma má ação, a mesma questão central que impulsiona o pensamento religioso: como nascer de novo?

Dewitt é um personagem carregado de culpa. Ele matou índios na batalha de Wounded Knee, e vendeu a própria filha para pagar suas dívidas. Ele procurou a religião como forma de redenção, mas não aceitou o batismo. A decisão pelo batismo é uma decisão no sentido mais radical do termo. É a decisão de morrer e nascer de novo, apagar o passado, zerar as dívidas. Mas a teoria dos multiversos complica esta decisão, porque nela cada escolha que fazemos cria um universo paralelo que continua existindo. Se numa realidade você escolhe se converter, na outra você não escolheu, o que significa que o resultado de seus erros do passado continua existindo, assim como as consequências dos seus pecados. Em último grau nossas más ações não podem ser redimidas.

No momento final, Dewitt e Elizabeth descobrem que a sua história se repete em infinitos universos. Alguns elementos são constantes, e outros são variáveis, mas é a mesma história ocorrendo infinitas vezes: “há sempre um farol, há sempre um homem, há sempre uma cidade”. O único modo de impedir essas realidades de continuarem acontecendo é matar Comstock antes que ele nasça, já que ele é a causa de tudo. Dewitt está determinado a fazer isso, antes de perceber que isso significa sacrificar a si mesmo.

Pois Comstock é a versão de Dewitt que se converteu, que escolheu o batismo logo depois de Wounded Knee. Os infinitos universos que se desdobram a partir de uma única escolha sua convergem sempre no mesmo final trágico, pois Comstock descobriu como viajar entre os múltiplos universos. Elizabeth é a filha que Dewitt vendeu, e o comprador foi Comstock, que precisava de um herdeiro, mas não pode ter filhos. Como Elizabeth diz, não acaba só porque Comstock está morto, só irá acabar quando ele nunca tiver nascido. Pois ele sempre pode voltar no tempo e sequestrar outras versões da Elizabeth, que acabam realizando seu objetivo de dominação global.

Comstock só pode deixar de existir se a escolha de Dewitt nunca for feita. É por isso que Elizabeth precisa afogá-lo antes que ele faça a escolha. Eles voltam no tempo e ele aceita a própria morte porque compreende que, como o personagem do primeiro BioShock, ele está preso numa corrente de ações que não tem o poder de parar. Não importa o que ele escolha, o final é sempre trágico. Sua única escolha é deixar de viver, assim como a única forma do jogador impedir a tragédia é se negar a jogar.

A própria Elizabeth se torna a protagonista atormentada pela culpa e em busca de redenção, e essa redenção só é encontrada no sacrifício. Elizabeth provoca a própria morte para possibilitar o final bom do primeiro BioShock, em que Jack salva as crianças de Rapture.

Salvar garotas representa uma ação intrinsecamente boa, e os personagens chegam às últimas consequências para realiza-la. Como Elizabeth descobre, ela também não era livre. Ela foi forçada a matar Fitzroy para proteger um menino. Fitzroy, por sua vez, não tinha a intenção de matar uma criança, ela simplesmente finge fazê-lo para que Elizabeth possa se transformar numa pessoa capaz de matar, de outro modo ela jamais poderia matar Dewitt para impedir que ele se torne Comstock. Todos os heróis dessa história sacrificaram sua vida para salvar crianças inocentes.

Rapture e Columbia representam dois aspectos da nossa sociedade. Ambas colaboram entre si e ambas resultam no sofrimento de inocentes. Como Elizabeth conclui, essas cidades são movidas pelo uso de inocentes, mas nelas não há espaço para a infância, ou seja, para a autenticidade. O mal é aquilo que impede vida autêntica de ser realizada, e mesmo a liberdade individual parece ser um preço pequeno a se pagar para impedir que a inocência se perca. Pois a perda da inocência parece ser resultado inevitável da liberdade. Só podemos salvar a inocência de outras pessoas, e ao custo de nossa própria vida, pois em nossa liberdade nós sempre acabamos prejudicando outras pessoas, colocando em risco a inocência delas.

A conclusão fica aberta à interpretação. Há espaço para considerar tanto o egoísmo virtuoso quanto o altruísmo. Mas o autor parece sugerir que estamos presos num universo onde ambas as coisas tendem a complicar uma à outra. Não se pode quebrar esse ciclo, o que se pode é no máximo lutar contra ele, o que ao mesmo tempo provoca seu movimento e dá sentido às nossas ações. A liberdade individual estaria assim encerrada num jogo dialético em que sua autorrealização é ao mesmo tempo sua autocondenação e sua autorredenção. O preço da escolha é, em outras palavras, aprisionar-se na escolha.

Autor: Janos Biro

Escritor e tradutor focado em filosofia, anarquia e crítica à civilização.

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