Resenha do livro Confiança e medo na cidade, de Zygmunt Bauman.
As áreas urbanas estão se reacomodando segundo uma dinâmica estrutural em que “a ação repressiva e as reivindicações comunitárias servem apenas para tornar mais suportável uma transformação que se processa fundamentalmente fora de qualquer controle”. A insegurança sentida é uma ameaça que não é necessariamente real, mas é capaz de gerar efeitos sociais deletérios. O crescente interesse por segurança é por si só um sintoma da cultura do medo. Por isso, “a insegurança moderna não deriva da perda de segurança”, mas de uma incômoda ausência de sensação de segurança. O medo do crime, por exemplo, causa a sensação de que falta segurança. Mas esta insegurança seria inerente à sociedade individualizada, que substituiu as comunidades pelo “dever individual de cuidar de si próprio e de fazer por si mesmo”.
Depois da supervalorização do indivíduo, temos a fragilidade e a vulnerabilidade do mesmo indivíduo, “agora desprovido da proteção que os antigos vínculos que lhe garantiam”. Cria-se o medo de ser inadequado. O Estado moderno foi obrigado a “tecer de novo a rede de proteção que a revolução moderna havia destruído”. No Estado social havia mais preocupação com a proteção do que com a redistribuição de riqueza.
A origem dos medos modernos seria a desregulamentação do controle estatal. A substituição da irmandade pela solidariedade representa a substituição de laços naturais, que não podem ser refeitos, por laços artificiais, que devem ser fortalecidos constantemente. Mas na pós-modernidade, mesmo as proteções artificiais da modernidade são desmanteladas. A solidariedade é substituída pela competição, onde “os indivíduos se sentem abandonados a si mesmos”. Os laços comunitários são corroídos, e o indivíduo se transforma num indivíduo de direito, sem que tenha alcançado necessariamente o status de indivíduo de fato. Na modernidade líquida, o maior medo passa a ser o da inadequação.
As pessoas que fazem parte das “classes perigosas” ou “subclasses” estão privadas de utilidade funcional. Mas aqueles que fazem parte das “novas classes perigosas” não estão apenas em excesso, eles se tornam permanentemente supérfluos. Não é a simples falta de espaço para acomodá-los, mas sua falta de atratividade para a cidade. Esses indivíduos não são apenas temporariamente excluídos ou imprestáveis, são não-assimiláveis. Mesmo reabilitados eles não despertariam o interesse de uma sociedade que não precisa deles. Esta é uma consequência da decomposição do Estado social.
Neste sentido, o termo “desempregado” adquire um novo significado. Ao invés de representar uma situação passageira e remediável, ou um desvio da regra, ela representa uma condição de superfluidade que condena o indivíduo à inatividade econômica permanente. Esta exclusão definitiva do trabalho é o resultado do progresso econômico, que investe em meios de realizar mais com menos força de trabalho, e a custos menores. Enfim, se o trabalhador não se torna indispensável, ele não será visto como alguém que contribui para a vida social. A diferença entre os supérfluos e os criminosos diminui. Os criminosos também não são mais vistos como pessoas que precisam ser reabilitadas para a vida social ou “socialmente recicladas”, mas “indivíduos que precisam ser impedidos de criar problemas e mantidos à distância da comunidade respeitosa das leis”. Trata-se de uma distância social e econômica.
O dejeto da nova extraterritorialidade são as “zonas fantasma”, ou espaços marginais, fora do alcance da visão, e também da possibilidade de vida social. Os vínculos entre dois mundos-de-vida (Lebenswelt) se rompem. O primeiro tem acesso às redes globais, e o segundo está condenado às redes locais, fragmentárias, tendo que confiar na própria identidade e permanecendo territorialmente circunscrito. Os outros podem permanecer temporariamente num determinado local, mas jamais pertencem a algum lugar específico [1]. A única coisa que querem da cidade é paz e liberdade para se dedicarem a seus interesses flutuantes. “A gente da cidade não se identifica com a terra que a alimenta, com a fonte de sua riqueza”. Não se interessam, portanto, pela cidade, ela não passa de um lugar insignificante em comparação com o ciberespaço, que é sua verdadeira morada.
De acordo com esse raciocínio, a única esperança para quem está fora das redes globais seriam as questões locais. Mas há uma “estreita interação entre as pressões globalizantes e o modo como as identidades locais são negociadas, modeladas e remodeladas”. Global e local co-existem, pois as localidades são “construções dinâmicas”. Estes aspectos só são separados “por razões de clareza”. “Os poderes reais que criam as condições nas quais todos nós atuamos flutuam no espaço global, enquanto as instituições políticas permanecem, de certo modo, ‘em terra’, são ‘locais’”. Há uma falta de política no ciberespaço extraterritorial, que é o campo do jogo de poder, enquanto a política tende a permanecer local. As questões locais parecem ser as únicas tangíveis, e tendemos a considerar que nada pode ser feitos pelas questões supralocais.
As situações que se originam no plano global só se tornam políticas no plano local. A crise ambiental, a comercialização da saúde e mesmo o terrorismo, para citar alguns exemplos, só se tornam questões políticas quando algo acontece nas proximidades da cidade. “As cidades se transformaram em depósitos de problemas causados pela globalização”, com a tarefa de resolver localmente esses problemas globais. As pessoas sem defesa diante do “vórtice global” são também “mais fracas na hora de decidir sobre os sentidos e as identidades locais”. O caos do “espaço de fluxos” acaba indo para algum local vizinho, cercando a comunidade de perigos. A política local está sobrecarregada e inoperante. A própria globalização tornou inadequados os meios para lidar com seus problemas.
Isso não preocupa o “operador global”, porque quando algo o incomoda, ele pode sempre mudar de lugar. Isso não significa que a elite global possa desconsiderar o local onde vive e trabalha quando se trata de buscar pelo “sentido e identidade”. “Como operadores globais, podem girar pelo ciberespaço. Mas como seres humanos, estão confinados de manhã à noite no espaço físico em que atuam”. Pois é nos lugares que se forma a experiência humana. Este confronto entre global e local “aciona e orienta a dinâmica da cidade na modernidade líquida”.
A cidade pode ser caracterizada como “um espaço em que os estrangeiros existem e se movem em estrito contato”. As intenções do estrangeiro são imprevisíveis, ele é a variável desconhecida, e por isso causa desconforto. São Paulo é um exemplo notável de cidade feita de muros, onde os que têm condições moram em condomínios que estão fisicamente dentro da cidade, mas social e idealmente fora. O que é dentro para um é fora para outro. Os moradores de condomínio estão fora da vida urbana, num gueto voluntário, nos quais os moradores dos guetos involuntários não podem entrar.
As cidades, feitas para proteger as pessoas do perigo, paradoxalmente se tornaram os lugares mais associados ao perigo. “A incerteza do futuro, a fragilidade da posição social e a insegurança da existência (…) tendem a convergir para objetivos mais próximos e a assumir a forma de questões referentes à segurança pessoal”. Neste ponto, a arquitetura e a urbanística contribuem para construir maneiras de proibir o acesso aos objetos desse medo. Para isso, criam-se espaços inatingíveis, que não podem ser confortavelmente ocupados, ou que não podem ser usados sem se estar sendo observado. Esta desintegração da vida comunitária leva à mixofobia (medo de se misturar).
A mixofobia é o impulso de se isolar em ilhas de identidade e de semelhança. Isso também significaria medo de sofrer. A comunidade de iguais gera uma sensação de segurança semelhante à de uma apólice de seguro. Quanto mais ineficaz, mais ela se reforça. A vivência dessas comunidades isoladas destrói a convivência. Mas a experiência urbana é ambivalente. Ela atrai e afasta os mesmos aspectos. Sua variedade desorientadora é a fonte do medo, e também do seu poder de sedução. Assim, a cidade induz tanto à mixofobia quanto à mixofilia. Essas tendências existem não apenas em cada cidade, mas em cada cidadão. A arte de extrair benefícios da variedade é sua mais importante habilidade.
Os arquitetos e planejadores urbanos poderiam contribuir com o aumento da mixofilia ao invés da mixofobia. Condomínios fechados não são a solução, mas uma das causas do problema. Seria preciso a difusão de espaços públicos abertos, convidativos, acolhedores, que todo tipo de cidadão teria vontade de frequentar assiduamente e compartilhar voluntariamente e de bom grado. O ideal seria permitir a “fusão de horizontes”, pois a experiência compartilhada depende do espaço compartilhado.
Notas:
[1] Neste sentido, é interessante uma cena do filme Amor sem escalas (Up in the air), onde o personagem, que acumulou 10 milhões de milhas em viagens de avião, ao ser perguntado “De onde você é?”, responde simplesmente “Daqui”, ou seja, de lugar nenhum.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2007.
Uma consideração sobre “Cultura do medo”