Uma resposta ao texto “Por que animais são necessários à ciência?”, de Heitor Rosa, diretor da faculdade de medicina da UFG. Publicado originalmente em 2008 na revista eletrônica Pensata Animal. Atualmente disponível no blog Contato Animal.
É certo que a ética é necessária à ciência, mas que tipo de ética e para qual tipo de ciência? Sabemos que uma prática não se justifica apenas por ser “necessária para o avanço da ciência” ou mesmo sancionada por comitês de regulamentação. É preciso perguntar, para além da metodologia, que tipo de ciência nós queremos e podemos aceitar.
Para os gregos antigos, matar escravos era imoral, condenável até mesmo com a morte. Para eles, escravos eram propriedade, mas não podiam ser desperdiçados, pois a manutenção da sociedade dependia deles. Seria um desperdício fazê-los sofrer sem um bom motivo. Não tenho a pretensão de comparar aqueles que foram escravizados aos animais, mas o ponto é que os benefícios de um sistema escravista, sejam eles quais foram, não o justificam.
O fato de que cientistas são pessoas sérias e cultas também não justifica nada. Donos de escravos também eram pessoas cultas para sua época, também tinham uma “formação ética impecável” e eram bastante religiosos. O fato é que, ao defender que animais não devem ser usados em experimentos, questionamos valores centrais de nossa sociedade. Estes valores também determinam o que será considerado aceitável ou não.
Não se trata de um conflito entre cientistas e leigos, como o diretor tentou fazer parecer. Aqueles que se opõem à experimentação animal não são leigos, mas biólogos, médicos, filósofos e pesquisadores. Mais do que um problema metodológico, é preciso ir além da reprodução técnica para compreender o problema.
Esta questão realmente envolve mitos e sentimentos. Um desses mitos é expresso pelo próprio diretor, quando ele sugere que nenhum preço é alto demais para o avanço da medicina. O argumento central daqueles que defendem os testes em animais é que o fim do uso de animais significa o fim dos testes necessários para produção de medicamentos, o que causaria a morte de pessoas. Eles reduzem o argumento à ideia de que defender a vida dos animais produz a morte de pessoas, como se situação fosse realmente essa: ou nós ou eles.
Quando uma pessoa diz que é justificável usar não-humanos porque de outra forma teríamos que usar humanos, ela está usando uma falsa bifurcação. Por acaso o que o diretor seria realmente a favor do uso de seres humanos como cobaias, se não fosse mais possível usar outras espécies? Se o uso de cobaias é tão imprescindível assim à ciência, então é isso que ele estaria afirmando. Mas o que está oculto em seu discurso é que o uso de animais se justifica pelo simples fato de que animais não são pessoas, e podem ser usados sem que isso implique nas questões éticas do homicídio. As questões tratadas pelo comitê de ética na pesquisa são de ordem metodológica, visam meramente o cumprimento de procedimentos padrão para a experimentação, e não entram na questão ética do uso de animais.
Em resumo, que ciência é essa que necessita do uso de cobaias? Precisamos mesmo deste tipo de ciência, que trata seres vivos como recursos para pesquisa, como meios para atingir um fim? A ética do uso de animais só poderá ser discutida quando questões éticas complexas entrarem em jogo. Por exemplo: É justificável matar uma pessoa para salvar outras? Quanto dano é justificável para se obter certo benefício? Quem deve decidir isso?
Reescrevi esse texto para relembrar essa questão, e demonstrar minha admiração pelas pessoas que, questionando os discursos vigentes, não se submeteram a práticas especistas e lutaram pelo fim da experimentação animal, muitas vezes colocando sua carreira em risco.