Deuses grandes surgiram depois da civilização, não antes

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O que veio primeiro – deuses que tudo vêem ou sociedades complexas? Deus Pai e Anjo, Guercino Giovan Francesco Barbieri via Wikimedia Commons

Tradução do texto Big gods came after the rise of civilisations, not before, finds study using huge historical database, feita por J. Carlos Horst e revisada por Janos Biro.

Estudo feito em um banco de dados históricos imenso descobre que deuses supremos surgiram após o surgimento das civilizações, não antes.

Harvey Whitehouse: Professor titular, Universidade de Oxford; Patrick E. Savage: Professor Associado em Estudos Ambientais e de Informação, Universidade Keio; Peter Turchin: Professor de Antropologia, Ecologia e Biologia Evolucionária e Matemática, Universidade de Connecticut; Pieter Francois: Professor Associado de Evolução Cultural, Universidade de Oxford.

20 de março de 2019

Quando se pensa em religião, provavelmente se pensa em um deus que recompensa os bons e pune os maus. Mas a ideia de um deus moralmente preocupado não é de forma alguma ‘universal’. Cientistas sociais já sabem há algum tempo que sociedades tradicionais em pequena escala – aquelas que os missionários costumam chamar de “pagãs” – vislumbravam um mundo espiritual que não ligava muito para a moralidade do comportamento humano. A preocupação era menos se os humanos estavam sendo bonzinhos uns com os outros, e mais se eles estavam cumprindo com as suas obrigações para com os espíritos e se demonstravam a devida deferência a eles.

Mas apesar disso, as religiões que nós conhecemos hoje, e a sua grande miríade de variantes, ou demandam uma crença em uma deidade onisciente punitiva, ou postulam algum tipo de mecanismo – como o ‘karma’ – que recompensa os virtuosos e pune os maus. Nos últimos anos, pesquisadores têm debatido como e porque essas religiões moralistas surgiram.

Agora, graças ao nosso novo e massivo banco dados de história mundial, conhecido como Seshat (o nome do deus egípcio da manutenção de registros) estamos começando a obter algumas respostas.

Olho no céu

Uma teoria popular era a de que deuses moralistas eram necessários para o surgimento de sociedades em larga escala. Sociedades menores, assim dizia este argumento, eram como aquários. Era quase impossível iniciar um comportamento antissocial sem ser pego e punido – seja por atos de violência coletiva, retaliação, ou danos de longo prazo à reputação e o risco de ostracismo. Mas enquanto as sociedades cresceram em número de participantes, e as interações entre pessoas basicamente estranhas umas às outras começou a aumentar; possíveis transgressores poderiam esperar não serem detectados sob o manto da ‘anonimidade’. Para a cooperação se manter possível sob estas condições, se tornou necessário algum tipo de sistema de vigilância.

E o que poderia ser melhor do que um ‘olho no céu’ sobrenatural – um deus que pode ver dentro das mentes das pessoas e determinar punições e recompensas de acordo. Acreditar em um deus assim poderia fazer com que as pessoas pensassem duas vezes antes de roubar, ou de quebrar acordos e juramentos, mesmo em interações relativamente anônimas. Talvez isso pudesse também aumentar a confiança entre mercadores. Se você acredita que eu acredito em uma deidade onisciente e moralista, você talvez fosse mais propenso a realizar negócios comigo do que com alguém cuja religiosidade é desconhecida para você. O simples ato de usar insígnias, como marcas no corpo ou joias decorativas que fizessem alusão de que você acredita em um deus destes, poderia ajudar pessoas ambiciosas a prosperar e adquirir popularidade enquanto as sociedades começavam a aumentar e se tornar mais complexas.

Mas os esforços iniciais de investigação da ligação entre religião e moralidade obtiveram resultados ambíguos. E enquanto a punição sobrenatural aparenta ter precedido o surgimento de chefes tribais entre povos das ilhas do Pacífico, na Eurasia os estudos sugeriram que a complexidade da sociedade surgiu primeiro, e os deuses moralistas vieram a seguir. Estes estudos regionais, porém, eram limitados no seu alcance e utilizavam métricas precárias tanto das religiões moralistas quanto da complexidade social.

Peneirando a história

Seshat está mudando esse cenário. Esforços para construir este banco de dados surgiram a praticamente uma década, atraindo a contribuição de mais de 100 acadêmicos e um custo de milhões de libras. O banco de dados usa uma amostra das sociedades históricas do mundo, atingindo uma série temporal de até dez mil anos atrás, analisando centenas de variáveis relacionadas à complexidade social, religião, guerra e militarismo, agricultura e outros aspectos da sociedade e cultura humana que variam no tempo e no espaço. Agora que o banco de dados está finalmente pronto para análise, somos levados a testar uma longa lista de teorias sobre a história global.

Uma das primeiras perguntas que estamos testando é se as deidades preocupadas com a moralidade levaram à ascensão das sociedades complexas. Foram analisados os dados de 414 sociedades de trinta regiões do planeta, utilizando-se de 51 medidas de complexidade social, e quatro medidas de imposição sobrenatural de normas morais para chegar ao âmago da questão. A nova pesquisa que acabou de ser publicada na Nature revelou que os deuses moralistas vieram muito depois do que muitas pessoas imaginavam, justamente após os aumentos mais bruscos da complexidade social na história mundial. Em outras palavras, os deuses que se importavam se éramos bons ou maus não levaram ao início da ascensão das civilizações – eles vieram depois.

Como parte da nossa pesquisa, criamos um mapa de onde os ‘deuses supremos’ apareceram ao redor do mundo. Nele o tamanho do círculo representa o tamanho da sociedade: quanto maior o círculo, maior o tamanho e complexidade da mesma. Os números no círculo representam quantos milhares de anos atrás se tem a primeira evidência da crença em deuses moralistas. Por exemplo, o Imperador Ashoka adotou o budismo 2.300 anos atrás depois de já ter estabelecido um império grande e complexo no Sudeste Asiático, conhecido como o Império Máuria.

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A distribuição global e a idade das crenças em deuses moralizantes mostram que deuses grandes aparecem em sociedades grandes. Whitehouse, Francois Savage et al. Nature., fornecido pelo autor, tradução nossa

As análises estatísticas mostraram que a crença em punição sobrenatural tende a aparecer apenas quando as sociedades fazem a transição de simples para complexas, mais ou menos quando a sua população total ultrapassa um milhão de indivíduos.

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A complexidade social tende a aumentar mais rapidamente antes do aparecimento de deuses moralizantes, não depois. Whitehouse, Francois Savage et al. Nature., Fornecido pelo autor, tradução nossa

Agora estamos olhando para outros fatores que podem ter levado à ascensão das primeiras grandes civilizações. Por exemplo, os dados do Seshat sugerem que rituais coletivos diários ou semanais – equivalentes ao que temos hoje como as missas de domingo ou as jumu’ah das sextas-feiras – aparecem logo no início do aumento da complexidade social, e ainda estamos analisando os seus impactos posteriores.

Se a função original dos deuses moralizantes na história mundial foi a de manter coalizões frágeis e etnicamente diversas, o que poderia significar para as nossas sociedades hoje o declínio na crença em tais deidades? Será que a secularização moderna poderia, por exemplo, contribuir para desatar os esforços de cooperação regional – como a União Europeia? Se a crença em deuses supremos diminuir, como isso vai impactar na cooperação entre grupos étnicos com relação a questões como imigração, militarismo, ou o avanço da xenofobia? Será que a função destes deuses pode simplesmente ser substituída por outras formas de vigilância?

Mesmo que Seshat não venha a providenciar respostas fáceis para todas estas questões, ela pode providenciar um meio mais confiável de estimar as probabilidades dos nossos diferentes futuros.

Autor: Janos Biro

Você não existe, e eu também não.

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