Um resumo do texto A Pesquisa e a Ética de Maria Helena Villas Boas Concone.
A crise de paradigmas que começa na metade do século XX representa um período de transição. Houve uma perda da confiança epistemológica resultante da relativização de duas distinções: a distinção entre conhecimento científico e senso comum e a distinção entre natureza e ser humano. Segundo Boaventura Santos, haveria duas vertentes do modelo mecanicista nas ciências sociais: a vertente hegemônica segue os princípios das ciências naturais, enquanto a vertente minoritária reivindica autonomia das ciências sociais, com base no argumento de que a ação humana é radicalmente subjetiva. Esta segunda seria baseada na fenomenologia, mas ainda apresenta a distinção entre natureza e ser humano, o que significa a permanência de uma visão mecanicista da natureza.
O paradigma emergente seria caracterizado pela ausência de distinção entre ciências naturais e ciências sociais, pelo conhecimento ao mesmo tempo total e local, pela fragmentação em temas e não em disciplinas, pelo modo de conhecimento enquanto auto-conhecimento, e pela ideia de que o conhecimento científico tende a se tornar senso comum. Isso estaria expresso no modo como a antropologia passou a ser vista. Geertz afirmou que a antropologia não é uma ciência em busca de leis, mas um esforço em busca de sentido, que se aproxima mais da crítica literária.
Em meio a essa transição, as pesquisas qualitativas foram vistas como uma alternativa ao positivismo, o que significa que os métodos quantitativos passaram a ser associados ao positivismo, e por isso vistos como condenáveis.
Mas as técnicas quantitativas ainda têm sua importância, pois “permitem algum tipo de generalização quando apoiadas em amostragem estatisticamente significativa”. As técnicas qualitativas seriam exploratórias, servem para levantar questões e não pretendem alcançar resultados generalizáveis. O “jogo das intersubjetividades” parece estar mais presente na abordagem qualitativa, porém, excluir a utilidade do método quantitativo levaria a uma verdadeira postura positivista, no sentido de definir um método único para alcançar o conhecimento. Esta posição também seria contrária à ética da pesquisa.
É preciso reconhecer a diversidade das abordagens. Mas o roteiro de parecer do Comitê de Ética em Pesquisa parece restringir a validade da pesquisa a um modelo padrão, por meio dos numerosos itens que devem ser satisfeitos. Nesse sentido “as preocupações éticas praticamente se resumem ao que deve estar escrito no TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido) e o seu respectivo formato”. A questão do “risco real”, por exemplo, parece poder ser eliminado com o uso de frases corretas. Mas a análise dos riscos e benefícios de uma pesquisa é muito complexa, e pode envolver muitas questões.
Tomando o exemplo de uma pesquisa numa unidade pública de saúde sobre o conhecimento dos funcionários sobre os procedimentos e cuidados na conservação de vacinas, aparece um dilema ético: por um lado o resultado poderia implicar na demissão dos trabalhadores que contribuíram com a pesquisa, por outro a não realização da mesma implicaria numa indeterminação do nível de segurança dos serviços oferecidos à população. Dois direitos estariam em conflito. Investigações eticamente necessárias podem conflitar com outros códigos de ética.
A questão do anonimato em pesquisas qualitativas, por exemplo, é que esta seria relativa. Não haveria um modo de impossibilitar completamente a identificação de um participante com base em suas respostas, dado que seus companheiros poderiam reconhecer os autores dos depoimentos. Os conflitos de direitos também implicam em conflitos entre interesses coletivos e individuais, por exemplo.
Para atingir o ideal do “paradigma emergente” será preciso que os comitês de ética discutam essas questões e se preocupem menos com a formalização da pesquisa e mais com a ética propriamente dita.
Referência:
CONCONE, Maria Helena Villas Boas. A Pesquisa e a Ética. In: Iara Coelho Zito Guerriero; Maria Luiza Sandoval Schmidt; Fabio Zicker. (Org.). Ética nas Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na Saúde. São Paulo: Hucitec, 2008, p. 109-127.