Jogos eletrônicos e modernidade: uma introdução

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Mihai Criste (1975-) The Kiss of Autumn

Um ensaio sobre jogos enquanto cultura.

Para Shakespeare, o mundo é um palco. Para os séculos que se seguiram, isso significou que a vida pode ser vista como uma narrativa, que pode conter momentos dramáticos ou cômicos, mas que no fim, diante da morte, nada significa (como diz Hamlet). A história humana seria um conjunto de narrativas confusamente entrecruzadas. Compreender o mundo significaria ser capaz de interpretar corretamente as narrativas que o compõem e dar sentido a elas como uma só história.

O nome em inglês para a peça de teatro é play. O termo play significava tanto o ato de brincar, de jogar, de tocar um instrumento musical ou interpretar um papel. É um ato que tinha uma duração de tempo definida, geralmente envolvia ou se direcionava para outras pessoas, e cuja experiência era necessariamente presencial, pois o acontecimento do play se perde no vazio do tempo que flui continua e inexoravelmente do passado para o futuro. Por isso, mesmo quando nos recordamos de uma música, queremos ouvi-la sendo executada novamente para ter novamente a mesma experiência.

Nós formulamos nossa identidade a partir de narrativas compartilhadas. Mas isso implica necessariamente numa construção coletiva, com início, desenvolvimento e fim definidos e coerentes entre si. O indivíduo não tem controle absoluto sobre isso, sendo apenas um participante. A existência dos personagens de uma história só faz sentido na medida em que suas ações têm um propósito para a história como um todo. A história individual só tem significado pela sua participação necessária na história universal. Essa, por sua vez, extrai seu sentido da sua finalidade teleológica, seu fim último, onde todos os conflitos se resolvem e se desenrola a trama. Assim era pensado o sentido da vida humana na história para Hegel, por exemplo.

Mas nas últimas décadas o conceito de narrativa parece estar sendo substituído por outro. Como o Coringa do filme Batman: Cavaleiro das Trevas, o indivíduo do mundo líquido-moderno (Bauman) acomoda múltiplas histórias sobre si mesmo, que podem se auto-excluir mutuamente. Ele não precisa se identificar com nenhuma delas em especial, mas pode usá-las de acordo com sua conveniência. Ele não é mais um simples personagem, mas sim um ator interpretando múltiplos personagens, vivendo uma vida performática, que pode se tornar esquizofrênica.

O indivíduo líquido-moderno, como a carta coringa do baralho, é um ser subdefinido, múltiplo, mutante, fluído… Sendo assim, a narrativa, confinada a um espaço e tempo com início e fim definidos, perde seu valor. O que ganha valor é aquilo que não começa nem acaba. Cuja história permanece aberta à interferência e à ressignificação. A mídia interativa trouxe essa uma nova compreensão para a textualidade, e também para a autocompreensão do homem. Sob o paradigma da hipertextualidade, a história humana não pode mais ser contada como uma narrativa no sentido tradicional. Ela agora transcende a narrativa textual, tornando-se interativa e dinâmica, fragmentada e particularizada. É um agregado de inumeráveis acontecimentos soltos, processualmente gerados [1] a partir da flutuação do acaso, que em larga escala formam padrões emergentes. As partículas às vezes se conectam e às vezes não. Portas para mundos completamente diferentes se abrem e se fecham com cada vez mais velocidade. Uma ordem emerge do caos, mas não pode dar nenhum significado ao todo, pois é uma ordem temporária. Só a transitoriedade é permanente. É preciso evoluir e evoluir significa mudar, transferir, combinar e reconfigurar.

O progresso no sentido pós-moderno implica em mobilidade, ainda que para nenhum lugar em específico. Isso quer dizer um caminhar sem destino, sem teleologia. É um mundo “para aqueles que nunca param; que estão sempre olhando, sempre aprendendo, sempre chegando” (trecho da propaganda do Diners Club). Ou seja, não há futuro escrito, ou antes, nós é que criamos o futuro no presente, porque “o mundo está em nossas mãos”, porque “é um mundo de infinitas possibilidades”, porque “estamos apenas de passagem”, e porque “você escolhe”. Isto pode explicar porque ludologistas como Aarseth, Juul, Eskelinen e Frasca se sentiram tão ameaçados pela abordagem narratológica dos jogos eletrônicos. Eles sentiram que havia ali uma intenção aprisionadora de uma visão ultrapassada, imperialista, colonialista [2].

De fato, os ludólogos tinham um novo conceito de play em mente. Abandonaram o conceito de algo que transcorre numa ordem estabelecida teleologicamente (em relação à finalidade) e seguiram para o conceito de algo que emerge da interação livre, no qual as regras não impõem previsibilidade. Um jogo de poucas possibilidades nos entendia facilmente. Por outro lado, se rejeita o papel de observador externo em preferência ao papel de jogador imerso. Ao conceito de imersão deve-se adicionar que o foco da história não é mais aquilo que envolve o personagem, mas é deslocado para o próprio jogador, sua participação ativa e a busca pelas novas possibilidades que se abrem diante dele. A ação ganha precedência sobre a trama. Por isso talvez se dê tanta vazão para os jogos de emergência, cujo play emerge das interações entre jogadores, como os jogos MMO (Massive Multiplayer Online). Estes jogos são compostos de pequenos jogos de progressão, as quests, que na verdade são ferramentas para a escalada de poder pessoal, sendo que sua narratividade pouco significa num quadro narrativo mais amplo. Tanto faz qual seja o sentido do que você está fazendo, o importa é quanto vale e qual a dificuldade. Este paradigma no design de jogos é equivalente à filosofia do “viver de momentos”. Nos jogos de RPG online, assim como no ideal expresso pelo Diners Club, a riqueza é medida em experiências.

O principal fator é a agência do jogador, a capacidade de fazer escolhas interativas, e não de se identificar com o que é apresentado, como fazemos com a narrativa mitológica, por exemplo. O personagem do jogo é aquilo que o jogador faz dele. O jogador toma posse do personagem. O conceito de avatar(aquilo que representa o jogador no mundo do jogo) é o de uma casca vazia, onde o jogador imprime sua interpretação do papel (role, em inglês). Mas é preciso também lembrar que os jogos só precisam fazer o jogador acreditar que tem algum controle, ainda que boa parte dessa liberdade seja uma ilusão provocada por uma estrutura ramificada e complexa, cheia de conexões tecidas entre diferentes bifurcações. O jogador experimenta a sensação de agência, ainda que no fundo ele reproduza um itinerário previsto pelo autor, com um currículo de habilidades específicas que são necessárias para finalizar o jogo.

Huizinga separou os jogos das atividades sérias. O prazer proporcionado pelos “estímulos condicionados” do jogo pode ser estragado se o jogador parar para teorizar sobre o conteúdo do jogo. O jogador, diferente de um leitor, não pode se deter nesse tipo de análise enquanto joga. Ele separa a atividade de jogar e de pensar sobre o que está jogando, porque o jogo, na maioria das vezes, impõe um ritmo que impede essa reflexão, exigindo concentração total. O jogo não é mais representação de um estado de coisas no mundo, como uma narração, mas sim uma simulação. Não é algo que descreve acontecimentos sendo vistos retrospectivamente, mas algo que acontece “em tempo real”, como uma experiência vivida numa realidade virtual.

Uma narrativa expressa um caminho único, ainda que não linear, onde a influência do passado sobre o presente e do presente sobre o futuro é inequívoca. No ideal de jogo “free form” (sem forma), essa relação existe na medida da conveniência ou da coincidência. O que está sendo criado perde significância diante do próprio ato de criar. Ou, como na teoria dos jogos, o que passa a ser importante é saber como maximizar ganhos e minimizar perdas quantificáveis. Um bom jogador se define pela capacidade de alcançar o estado de vitória com o mínimo de erro, e não pela capacidade de extrair algo para si daquela experiência, lendo a narrativa fictícia como analogia ou metáfora para sua vida real.

O jogo, para os ludólogos, deve obedecer ao imperativo da pluralização: ele não pode ser uma coisa só. O jogador também é estimulado a não se contentar com uma só experiência, mas a experimentar múltiplas facetas do jogo. Os jogos de interações livres não possuem enredo, só regras, e funcionam na base do improviso (on the fly). As regras podem mudar no decorrer do jogo, e frequentemente mudam antes que o jogador possa se habituar demais a elas.

Na atividade lúdica, o tempo transcorre num ritmo próprio. Os minutos podem ser dilatados ou comprimidos, dependendo da perspectiva e do envolvimento do jogador. Um MMO pode apresentar uma cadeia infindável de eventos sem pausa, o que pode estar por trás do fato de que jogadores passem tanto tempo jogando sem parar. Qualquer que seja o resultado, os jogos que usam geração aleatória podem sempre ser jogados novamente, sendo que cada partida é uma experiência única, sem retorno, ou ainda, num eterno retorno. O importante não é tudo que aconteceu, porque poderia não ter acontecido, mas sim tudo que ainda pode acontecer. Idealmente, a interatividade aumenta na medida em que os elementos deixam de ser estáveis e se tornam dinâmicos.

Talvez a semelhança mais interessante entre os jogos e a modernidade está expressa na afirmação de Aarseth, quando este diz que os jogos eletrônicos não são sobre o Outro, mas sobre o Eu. O que interessa nos jogos eletrônicos é a exploração de um mundo (gameworld), e não a exploração das relações interpessoais. As entidades que aparecem nos jogos possuem um valor funcional em relação ao jogador, e não são necessariamente portadores de emoções que representam características da psicologia humana. Nos jogos, as pessoas são realmente coisas. São objetos que podem ser úteis ou não. Você não tem que ouvir ao dramático pedido do Rei. Você pode apertar um botão e pular direto para a ação. Pouco importa se o que você está salvando é a princesa ou uma caixa vazia, é apenas uma desculpa para vencer um desafio. O conteúdo é secundário em relação à função.

Da narrativa entrecruzada para a narrativa subjetiva. Da história coletiva para a história individual. Do play teleológico para o play autopoiético (que cria a si mesmo). Em todas essas transições, importantes para os atuais teóricos do game studies, está impresso um caráter da modernidade.

Notas:

[1] Criados a partir de seu próprio processo, geralmente usando combinações aleatórias de elementos ao invés do planejamento prévio.

[2] Como exprime Jan Simons, num artigo para o periódico Game Studies de agosto de 2007, Narrative, Games, and Theory. http://gamestudies.org/0701/articles/simons

Autor: Janos Biro

Filosofista, anarquista, bicicleteiro, tradutor, zineiro e joguista.

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