Uma reflexão sobre evolução e conhecimento.
Você acredita que tudo, inclusive o surgimento da vida, ocorre ao acaso, como o lançar de dados? Ou você acredita que tudo que acontece simplesmente “era pra ser assim”, como o martelo que foi feito para pregar pregos? Ou você acredita que algumas coisas ocorrem ao acaso (como terremotos) e outras “eram pra ser” (os martelos, por exemplo)? Caso escolha esta última opção, você escolheu a opção mais complicada. Quer ver só?
É que dizer que algumas coisas são resultado de ação “consciente” (planejada, voluntária, premeditada) e outras não nos obriga a definir o que é, onde e como começa essa tal “consciência”. Como é possível que ela exista? Afinal, como algo capaz de agir planejadamente surge num mundo em que tudo até então tinha acontecido pelo mero acaso?
Isso é tão complicado que muitos preferem simplificar e dizer que tudo é ao acaso e a consciência é uma ilusão. Ou então jogar a carta “Deus” e explicar que a consciência humana vem desse ser superior. Deus é uma resposta fácil. Mas sem Deus, parece que todo sentido é inventado, e portanto a vida não tem valor intrínseco. Ela pode ser apreciada porque o pôr-do-sol ou o formato das galáxias são coisas impressionantes, mas em si os fenômenos do universo são só um monte de partículas arranjadas numa ordem aleatória, incluindo a consciência humana.
Pela visão científica de mundo, sabemos que a evolução não tem finalidade, não há um ser dirigindo a evolução. Há apenas sobrevivência. Quando surge uma nova espécie, é porque pequenas mudanças aleatórias se acumularam. Se evoluímos para ter um cérebro capaz de pensar sobre o que estamos fazendo, ou mesmo pensar sobre o nosso próprio pensamento, isso aconteceu por pura coincidência, e permaneceu porque arranjamos alguma utilidade pra isso.
Todas as mudanças aleatórias que acontecem no nosso código genético são armazenadas num filete incrivelmente longo de proteínas que fica guardado no núcleo de cada célula do nosso corpo. Em cada célula do seu corpo está a informação necessária para construir seu corpo inteiro, mas não só isso. Você herda metade dos cromossomos da sua mãe e metade do seu pai. A maior parte dessa informação não é utilizada pelo seu corpo. Apenas 1% é utilizado, o resto está inativo. Nesse resto estão informações que vem desde nossos antepassados mais primitivos, desde antes de sermos mamíferos, enfim, desde o primeiro ser vivo.
Desse ponto de vista, a evolução acontece como se fosse um texto que vai sendo criado com palavras aleatórias. As palavras vão sendo jogadas e o texto vai aparecendo, mesmo que incoerente. Agora suponha que esse texto seja corrigido por uma professora de redação. Ela sublinha as mudanças que tornam o texto mais coerente e anota: “ficou bom, mantenha isso”, enquanto risca as que tornam o texto menos coerente e anota: “tire isso, não ficou bom”. Com algumas repetições, no fim desse processo você terá um texto razoavelmente coerente que não foi escrito por ninguém! Não é preciso escritora, só é preciso uma leitora capaz de identificar um texto coerente. A questão agora é: quem é que seleciona as mudanças da natureza? Quem decide o que fica e o que vai embora?
Perceba como esse processo se assemelha à criação de uma obra artística. A artista testa um monte de coisas, desiste do que não faz sentido; fica com o que faz sentido pra ela, e continua o processo até achar que está bom. Podemos conceber a natureza como uma artista criando a si mesma? Podemos conceber uma consciência inerente à natureza mesmo sem nenhuma concepção de divindade? Suponha, só por um momento, essa comparação entre o modo como a natureza evolui com o modo como se cria arte.
Pode parecer que dizer isso seria atribuir características humanas à natureza (antropomorfismo), mas calma. Afinal, se você diz que só humanos criam arte, voltamos aquele problema lá em cima: como é que se explica a origem de tal capacidade? Devemos realmente tratar a natureza como objeto inanimado, incapaz de escolher ou ter uma sensibilidade artística? Ou será que, talvez, esse processo que nós chamamos de “criação” é na verdade um resultado inevitável da mudança? Que a natureza está em constante mutação, isso é inegável. As coisas estão se movendo e o movimento de partículas dentro de você é suficiente para mudar a natureza das coisas. Talvez seja por isso que a arte é uma coisa tão poderosa. Não precisa concordar agora, apenas considere isso por um momento:
Imagine dez caixas de papelão, cada uma cheia de livros tratando de assuntos diferentes. Cada caixa tem um conteúdo totalmente diferente, e vai agradar pessoas diferentes. Agora imagine que você triture os livros de cada caixa num triturador, até virarem confete, e coloca esse confete nas caixas de novo. Você teria dez caixa iguais, todas elas cheias de papel picado que só vai servir pra jogar pra cima no carnaval.
Percebe o que aconteceu? O que antes eram coisas diferentes, agora são coisas iguais. Por que as coisas ficam mais iguais na medida em que as trituramos? Porque o que diferencia um diamante de um grafite de lapiseira não é o material que são feitos, são ambos moléculas de carbono. O que diferencia as coisas é o “arranjo”, a organização das partes. Quando as coisas se desorganizam elas perdem informação. Porque no fundo somos todos feitos do mesmo tipo de partículas, o que nos diferencia é como essas partículas estão organizadas, ou seja, a informação acumulada na conexão entre as partes.
Se o universo era só poeira cósmica e agora se organiza na forma de estrelas, nebulosas, cometas e planetas, e dentro desses planetas, diferentes elementos, minerais, vegetais, animais e diversas espécies de seres vivos, isso significa que houve acúmulo de informação. Quando as coisas mudam de lugar, elas acabam se encaixando, isso é, há uma criação e organização espontânea de estruturas. Mesmo que tudo isso tenha sido aleatório, ainda assim é um processo de “aprendizagem”. Ordem foi sendo criada a partir do caos, a informação foi surgindo a partir do movimento errático de partículas que acabam se juntando aqui e ali. Chamemos esse processo de “cognição”.
Tudo é cognição. Tudo é informação indo e vindo. Se acumulando e se perdendo. Não há nada de especial na cognição. Ela é o efeito natural de coisas mudando de lugar. Para haver cognição, basta haver movimento. Este não é o conceito usual de cognição, estamos criando um novo conceito, dando um novo sentido para ele. E com esse conceito, podemos dizer: o pensamento existe desde que existe movimento. Ou ainda, o pensamento é movimento. Alguns filósofos se aproximaram dessa conclusão, mas vamos seguir adiante mais um pouco.
Não há nada de especial no nosso cérebro. Ele faz o que qualquer caixa cheia de coisas dentro faz quando está num caminhão de mudança passando por uma estrada esburacada: processa informação. O universo processa informação. Seu estômago processa informação. Seu coração processa informação. Tudo que muda e se move processa informação. A única diferença é o tipo desse processamento.
Em outras palavras, tudo pensa, e tudo tem uma consciência. Então os dados, quando caem na mesa, não estão fazendo algo absolutamente diferente de você quando decide comprar um carro. Coisas estão se movendo e se chocando com uma condição material, o que as faz reagir segundo sua estrutura. “Essa é uma visão determinista demais”, você pode dizer, “Não deixa espaço para liberdade humana”. E você estaria correto em dizer isso, mas peço que acompanhe esse raciocínio só mais um pouco.
A nossa mente é uma imitação do universo, ela é composta de um número incrivelmente grande de partes que se conectam e se desconectam muito rápido, com pequenos impulsos elétricos. Isso permite que criemos muita ordem e muito caos. Podemos ver padrões em tudo, e podemos desmontar tudo com a mente e misturar partes e criar coisas novas e absurdas com nossa imaginação. Nada disso é especial, é o que sempre ocorreu no universo, só que numa versão condensada. Nós acumulamos informação e criamos coisas porque temos um órgão que funciona basicamente como a natureza que o criou. Não há nada de mágico nisso, os padrões sempre se repetem, é inevitável.
Como então, podemos dizer que nosso movimento é “voluntário” e o movimento de uma planta, enquanto cresce, é “involuntário”? Dizemos que as plantas não se movem para onde querem porque elas são lentas. Mas é só uma questão de tempo. Assim como um espinho é um modo de dizer: não encoste em mim. Se a diferença é a velocidade, não somos tão complexos quanto pensamos, só somos apressados. O importante não é quanta coisa passa, mas quanta coisa fica. E o mundo está muito mais repleto de informação que nós não criamos. Em grande parte, nossas invenções são imitações da natureza.
Concluindo, a cognição humana surge em continuidade com o processo cognitivo da natureza, não como algo distinto. A natureza constrói conhecimento. Nós usamos o que conseguimos aprender com ela. Mas há muito que não sabemos. A floresta é mais sábia que nós. Nosso corpo muitas vezes é mais sábio que nossa cultura. Estamos sempre pensando em conjunto.
Referências:
GARCIA, Agnaldo. Cognição e evolução: a contribuição de Konrad Lorenz. Ciênc. cogn., Rio de Janeiro, v. 4, p. 89-100, mar. 2005. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-58212005000100010&lng=pt&nrm=iso>
ZUANON, Átima Clemente Alves. Instinto, etologia e a teoria de Konrad Lorenz. Ciênc. educ. (Bauru), Bauru, v. 13, n. 3, p. 337-349, Dec. 2007. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-73132007000300005&lng=en&nrm=iso>
Agora que li esse texto! Muito bom, Janos!
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Nossa!!! Muito bem escrito e realmente e acordo com a lógica.
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