Resumo do capítulo IV do livro O discurso filosófico da modernidade, de Jürgen Habermas.
Hegel e seus discípulos não questionaram as conquistas da modernidade. A época moderna encontra-se sob o signo da liberdade subjetiva. Esta se realiza na sociedade como um espaço para a persecução de interesses próprios, assegurada pelo direito privado. Realiza-se no Estado como participação na formação da vontade política. Realiza-se na esfera privada como autonomia e auto-realização ética, e na esfera pública como processo de formação que se efetua pela apropriação da cultura tornada reflexiva. As figuras do espírito absoluto e objetivo assumiram uma estrutura na qual o espírito subjetivo pode emancipar-se da naturalidade das formas de vida tradicionais.
Essas mesmas autonomizações que abrem caminho à emancipação de dependências muito antigas serão experimentadas como alienação em relação à totalidade de um contexto de vida ético. No passado, a religião foi o selo inviolável posto sobre essa totalidade. As forças religiosas de integração social debilitaram-se em virtude de um processo de esclarecimento que, na medida em que não foi produzido arbitrariamente, tampouco pode ser cancelado.
O esclarecimento só pode ser corrigido por um esclarecimento radicalizado, por isso Hegel e seus discípulos precisam depositar sua esperança em uma dialética do esclarecimento, na qual a razão vale como um equivalente do poder unificador da religião. Hegel concebe a razão como autoconhecimento reconciliador de um espírito absoluto. A esquerda hegeliana concebe como apropriação liberadora das forças essenciais exteriorizadas produtivamente, mas inacessíveis. A direita hegeliana concebe como compensação rememorativa da dor provocada pelas cisões inevitáveis.
Os jovens hegelianos reclamam o direito profano de um presente que ainda aguarda a realização do pensamento filosófico. Modificam o conceito hegeliano de razão tal que, simultaneamente com a racionalidade da modernidade social, evidencia-se também a necessidade de sua compensação. Contra essa cultura compensatória, Nietzsche analisa a ausência de consequências de uma tradição cultural desacoplada da ação, e expulsa para a esfera da interioridade “o saber que, sem fome, é absorvido em desmedida, e mesmo contra a necessidade, já não atua mais como motivo transformador que impele para fora, mas permanece escondido em certo mundo interior caótico… E assim a formação moderna inteira é essencialmente interior – um manual de formação interior para os exteriormente bárbaros”.
Primeiro, a razão fora concebida como autoconhecimento reconciliador, depois como apropriação liberadora e, finalmente, como rememoração compensatória. Nietzsche tinha apenas a escolha de submeter mais uma vez a razão centralizada no sujeito a uma crítica imanente, ou abandonar por completo o programa. Renuncia a uma nova revisão do conceito de razão e despede a dialética do esclarecimento. Nietzsche utiliza o fio condutor da razão histórica para ao cabo descartá-la e fincar o pé no mito, o outro da razão.
A razão, apresentada na forma de uma religião cultural, não desenvolve mais nenhuma força sintetizadora, capaz de renovar o poder unificador da religião tradicional. A modernidade perde sua posição privilegiada; constitui apenas a última época de uma longínqua história da racionalização, iniciada com a dissolução da vida arcaica e a destruição do mito. A consciência moderna do tempo proíbe, no entanto, toda ideia de regressão, de retorno imediato às origens míticas. Essa atitude utópica, orientada para o Deus que está por vir, distingue o empreendimento de Nietzsche do apelo reacionário de “volta às origens”.
Enquanto o historicismo apresenta o mundo como exposição e transforma os contemporâneos, que o desfrutam, em espectadores entediados, somente o poder supra-histórico de uma arte que se consome na atualidade pode trazer a salvação para a “verdadeira necessidade e a miséria interna do homem moderno”. O jovem Nietzsche celebra Wagner como o “revolucionário da sociedade” e como aquele que sobreleva a cultura alexandrina. Como se sabe, mais tarde Nietzsche voltaria as costas com aversão ao mundo da ópera wagneriana. Desinteressa-se do romantismo e procura o dionisíaco.
Sob as condições modernas de uma reflexão levada ao extremo, é a arte, e não a filosofia, que vigia a chama daquela identidade absoluta que outrora se acendia nos cultos festivos das comunidades de fé religiosa. A arte, que recobra seu caráter público na forma de uma nova mitologia, não seria mais apenas organon, mas meta e futuro da filosofia. A diferença em relação a Hegel é evidente: não a razão especulativa, mas somente a poesia poderá substituir o poder unificador da religião, tão logo esteja publicamente em vigor na forma de uma nova mitologia.
Nas mãos de Schlegel, a nova mitologia transforma-se de uma expectativa fundamentada filosoficamente em uma esperança messiânica que ganha asas a partir de indícios históricos. Segundo Schelling, o que é intuído na arte é a razão objetivada, a irmanação do verdadeiro e do bom no belo. Schlegel insiste na autonomia do belo como separado do verdadeiro e do ético. Somente uma poesia autônoma, sem a razão teórica e prática, alcança os poderes míticos originários. Nesse contexto merece destaque o fato de que Dionísio, o deus conspirador do êxtase, da loucura e das metamorfoses incessantes, passa por uma surpreendente revalorização no primeiro romantismo.
O culto a Dionísio pode tornar-se atraente numa época em que o esclarecimento se extravia de si mesmo. Dionísio pôde, enquanto o deus que está por vir, atrair as esperanças de redenção. A nova mitologia deveria restituir uma solidariedade perdida, mas não rejeitar a emancipação do homem individualizado. O recurso a Dionísio devia tornar acessível apenas aquela dimensão da liberdade pública nas quais as promessas cristãs teriam de se cumprir, a fim de que o princípio da subjetividade, simultaneamente aprofundado e levado de modo autoritário à dominação por meio da Reforma e do Iluminismo, pudesse perder suas limitações.
Na maturidade, Nietzsche reconhece que Wagner permanece preso ao vínculo romântico entre o dionisíaco e o cristão. Wagner não dignifica em Dionísio o semideus que anula o princípio da individuação e faz valer o polimorfo contra a unidade do deus transcendente, a anomia contra o regulamento. Nietzsche foi um defensor da arte pela arte. A descrição de Dionísio seria para ele a intensificação do subjetivo até o pleno esquecimento de si. Só quando o sujeito se perde, vê-se atingido pelo choque do repentino, e, perdido de si, consome-se no instante; só livre da atividade e do pensamento sensato; surge o âmbito da aparência estética, que não encobre nem revela, não é fenômeno nem é essência, mas tão-somente superfície.
A arte permite o acesso ao dionisíaco somente ao preço do êxtase, da perda dos limites do indivíduo, da fusão com a natureza amorfa, tanto interior como exterior. Com Nietzsche, a crítica da modernidade renuncia, pela primeira vez, a reter seu conteúdo emancipador. Nietzsche invoca as experiências de auto-desvelamento, contrária à razão, e liberta a subjetividade de todas as limitações com respeito a fins, assim como de todos os imperativos da utilidade e da moral.
Já em O nascimento da tragédia, encontra-se, atrás da arte, a vida. O mundo só pode ser justificado enquanto fenômeno estético. O espírito criador se entrega ao gozo despreocupado do poder. A potência criadora é o núcleo estético da vontade de poder, que é também uma vontade de aparência. A arte pode ser considerada como genuína atividade metafísica, já que a própria vida se baseia na aparência, no engano. Não pode haver fenômenos ônticos ou morais. Para demonstrar isso, servem os projetos de uma teoria pragmática do conhecimento e de uma história natural da moral, que reduzem a diferença entre “verdadeiro” e “falso”, “bom” e “mau” às diferenças do que é útil à vida. Segundo essa análise, as pretensões de validade universais são pretensões subjetivas de poder.
A dominação niilista da razão é concebida como perversão da vontade de poder. A vontade de poder incorrupta é a versão metafísica do princípio dionisíaco. Nietzsche entroniza o paladar como o órgão do conhecimento do que está além do verdadeiro e do falso, do bem e do mal, e não reconhece a faculdade crítica de valoração. O estético é hipostasiado no outro da razão.
A crítica nietzschiana da modernidade prosseguiu por duas vias: A do cientista cético, que deseja desvelar a perversão da vontade de poder, a revolta das forças reativas e a origem da razão centrada no sujeito com métodos antropológicos, psicológicos e históricos. E a do crítico iniciado da metafísica, que reivindica um saber especial e persegue a origem da filosofia do sujeito até os começos pré-socráticos.
A meta que Nietzsche persegue com uma crítica totalizada da ideologia que se consome a si mesma é a meta que Heidegger quer atingir com uma destruição da metafísica ocidental, preparada de modo imanente. Heidegger quer transferir o acontecer dionisíaco do palco da mitologia renovada esteticamente para o palco da filosofia. O poetizar e o pensar remetem um ao outro. Agora é o Ser que se retirou do ente e prenuncia sua chegada indeterminada pela ausência feita perceptível e pela dor crescente da privação. O Ser pode suceder apenas como destino, para o qual os que necessitam dele eventualmente se abrem e mantêm-se à disposição. A crítica da razão de Heidegger fica longe da autonomia e próxima de uma entrega ao Ser que, supostamente, deixa para trás a oposição entre autonomia e heteronomia.
A crítica da razão de Bataille segue outra direção. Não se aproxima da força dionisíaca pela via recalcada de uma auto-superação, mas pela abordagem diretamente descritiva e analítica dos fenômenos da auto-transgressão e da auto-extinção do sujeito que age segundo a racionalidade com respeito a fins. São as linhas básicas de uma vontade de poder orgíaca que interessam a Bataille. Porém, em Bataille, os elementos heterogêneos expulsos não aparecem na figura de um destino apocalíptico evocado misticamente.
Heidegger investiga os conceitos ontológicos fundamentais da filosofia da consciência, a fim de expor a vontade de controle técnico sobre os processos objetivados como impulso que domina o pensamento desde Descartes até Nietzsche. Bataille investiga aqueles imperativos da economia e da eficiência aos quais o trabalho e o consumo se submetem sempre com maior exclusividade, para reter no produtivismo industrial uma tendência à autodestruição, inerente a todas as sociedade modernas.
Como a crítica totalizada da razão abandonou a esperança de uma dialética do esclarecimento, Heidegger e Bataille recorrem, com Nietzsche, aos primórdios arcaicos, aquém dos começos da história ocidental, a fim de reencontrar os vestígios do dionisíaco. Enquanto a razão é determinada pelo controle e valorização, o seu outro pode ser caracterizado apenas negativamente como o incontrolável e não-valorizável.
Heidegger, ao interpretar a razão como consciência de si, concebe o niilismo como expressão de um apoderamento técnico do mundo, desencadeado de forma totalitária. Bataille, ao interpretar a razão como trabalho, concebe o niilismo como conseqüência de uma coerção para a acumulação, autonomizada de forma totalitária. Heidegger ontologizou a arte e apostou tudo em um movimento de pensamento destrutivamente libertador que deve superar a metafísica a partir de si mesma. Bataille permanece fiel a uma experiência estética fundamental e não falsificada do dionisíaco, explorando um domínio fenomênico no qual a razão centrada no sujeito pode-se espelhar no outro. Persegue o projeto de uma análise científica do sagrado e de uma economia geral que deve explicar o processo histórico universal de racionalização e a possibilidade de uma última inversão.
Assim, cai no mesmo dilema de Nietzsche: a teoria do poder não pode satisfazer a exigência de objetividade científica e, ao mesmo tempo, cumprir o programa de uma crítica total (e auto-referencial) da razão, o que afeta também a verdade dos enunciados científicos.
Referência:
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. Capítulo IV: Entrada na pós-modernidade: Nietzsche como ponto de inflexão.
Fala janos tudo bem? Eu não sei de vc mas achei esse livro muito ruim. Ou talvez buscando fundamentar melhor isso ele me parce no mínimo muito dogmático. O que eu entendi é que não há analises de texto das principais teses das obras de Heidegger (E desde quando Ser e Tempo é uma leitura de Nietzsche? Segundo Habermas quais são as principais teses dessa obra?), de Foucault, Derrida,Adorno…. É muito mais um acerto de contas mas cujos critérios são… as teses do próprio Habermas !!! (Foucault por exemplo, só pode ter utilizado o conceito de razão conforme Habermas entende de modo que não deveria ter criticado a razão pois isso seria ”contradição performativa” ; a critica de Adorno sobre a identidade não visa uma teoria da comunicação, algum autor -desconfio que Foucault -não realiza uma analise da ”falsa consciência” ).
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Concordo com sua crítica. Habermas é cheio de problemas. Detesto especialmente o conceito de “contradição performativa”, que é inclusive muito utilizado por ancaps. Mas, pelo menos do meu ponto de vista, não é um livro ruim, no sentido de que não é muito pior que outros livros muito lidos por aí. Tem coisas interessantes, e isso é basicamente o máximo que eu posso dizer de qualquer outro autor. Mesmo o autor mais próximo da minha linha de pensamento é ruim. Pra achar um autor bom, é preciso idolatrá-lo. Eu costumo a aproveitar a crítica de diversos autores uns aos outros. Praticamente todo autor que falou coisas interessantes é muito ruim. Porque pra ser bom, ou tem que defender o que a gente acredita (que no meu caso é muito difícil porque tenho ideias muito incomuns), ou não defender nada, ser só um bom professor.
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