Um ensaio sobre sistemas de controle atuais, baseado no vídeo acima.
O vídeo que serviu de referência para este ensaio foi escrito por Rebekah Sinclair, professora de estudos étnicos do departamento de filosofia da Universidade de Oregon, nos EUA. Segundo Sinclair, há dois momentos distintos da “crítica ao sistema” na cultura de mídia massificada:
- O personagem é inicialmente absorvido pelo sistema, mas consegue escapar e tem alguma esperança de viver fora do sistema. Exemplo: Tempos modernos (1936).
- Ao tentar escapar do sistema, o personagem é cooptado por ele. Exemplo: 15 milhões de méritos (episódio 2 da 1ª temporada de Black Mirror, 2011).
Levando isso em consideração, eu pergunto: Como se deu a ascensão e queda da ideia de que o sistema pode ser derrotado?
O primeiro ponto é: Mas afinal, o que é o “sistema”?
O sistema, na linguagem sendo usada aqui, pode ser entendido como “sistema de trabalho”, ou ainda, condições de trabalho. É por isso que Sinclair começa analisando o fordismo. O primeiro momento é marcado pelo trabalho repetitivo e desumanizador e apontava para a busca pela autenticidade.
Clube da luta (1999) atualiza a crítica às condições de trabalho para o período pós-guerra, em que o trabalho repetitivo na fábrica dá lugar a um cotidiano repetitivo, tanto no ambiente de trabalho quanto no tempo livre, graças ao consumismo.
Citando a obra sociológica de Eve Chiapello e Luc Boltanski, O novo espírito do capitalismo, Sinclair associa a crítica de Tempos modernos e Clube da luta ao conceito de “crítica artística”. Trata-se de uma crítica que se foca nos aspectos subjetivos do trabalho: como o trabalho mecaniza e degrada o espírito humano, por exemplo.
O espírito do capitalismo (Weber, 1904) é o discurso que convence as pessoas a aceitarem as condições econômicas do capitalismo, por mais degradantes que sejam. O discurso que prevaleceu no capitalismo moderno era o da “ética ascética”, ou seja: sacrificar-se pelo trabalho é um dever moral, pois o trabalho é a fonte da dignidade humana. Este espírito se enfraqueceu nos países desenvolvidos na segunda metade do século XX, o que é observável na mudança de discurso dos livros de teoria da administração: as pessoas já não estavam convencidas do valor dignificador do trabalho, precisavam de um discurso motivacional.
Para continuar engajando pessoas, o espírito do capitalismo foi atualizado. O novo discurso valoriza a autonomia, a liberdade e a criatividade ao invés do simples compromisso moral. Ao invés de reprimir sua frustração com o trabalho, você pode agora expressar essa frustração, desde que “artisticamente”, ou seja, sem que isso interfira na sua produtividade. Uma fantasia de escape do sistema é vendida como forma de manter as pessoas no sistema, dando uma vazão segura e controlada às suas frustrações.
O segundo ponto é: O que acontece quando a crítica artística se volta sobre si mesma, ou seja, quando fazemos uma crítica da crítica?
Embora a crítica da crítica ao sistema já estivesse presente no cinema americano em Network (1976), ela se torna realmente uma tendência de consumo após 11/09/01. A catarse utópica, o espetáculo de ver a destruição “artística” do sistema, é substituída por uma catarse distópica, na qual emoções como a raiva e o medo são trabalhadas a partir de narrativas onde a vitória do sistema é inevitável. Chega de finais felizes, é mais realista reconhecer que o sistema sempre vence no final.
Esta mudança nas narrativas combina com a mudança de “afeto dominante” na fase atual do capitalismo. Segundo uma publicação do grupo de estudos do Coletivo CrimethInc, “cada fase do capitalismo tem seu próprio afeto dominante. (…) Os movimentos de resistência contemporâneos nasceram nos anos 60, em resposta ao afeto dominante do tédio. (…) O capitalismo absorveu boa parte do tédio na sociedade de consumo. (…) No capitalismo contemporâneo, o afeto dominante é a ansiedade”. E a catarse distópica busca justamente absorver a ansiedade, transformar sua contestação em produto, assim como assimilou a contestação do tédio.
Em outra palavras, quando o sistema exaure suas possibilidades de vender determinado produto, ele vende a crítica ao produto. Os Simpsons (1989), por exemplo, vende a crítica ao modo de vida americano que era exaltado pelas produções americanas. Quando a demanda por rebelião simulada contra o sistema se satura, cria-se a demanda pela crítica à rebelião simulada. O episódio 7 da 3ª temporada de Rick and Morty (2013) resume essa ideia: a indústria que vendia a fantasia de uma vida simples fora do sistema passa a vender a fantasia de rebelião contra a indústria que vende a fantasia de vida simples.
Será que a única opção é fazer a crítica da crítica da crítica? E quando isso acaba? E se nesse processo as alternativas ao sistema estiverem sendo ainda mais descreditadas que o próprio sistema? E se revoltas contra o sistema forem criadas pelo próprio sistema, na tentativa de manter as pessoas sob controle? E se passamos de consumidores passivos de uma fantasia de liberdade, para consumidores passivos de uma fantasia de revolta, para PRODUTORES de um novo discurso de conformidade ao sistema, baseado no “realismo” do sem saída, da inutilidade de resistir?
No seu clássico romance distópico, 1984, George Orwell (1949) sugere que o livro proibido que denuncia todas as mentiras e formas de controle do sistema é na verdade uma armadilha criada pelo próprio sistema para atrair dissidentes e levá-los até a sala 101, onde são torturados e condicionados até que não tenham mais condições psicológicas de se revoltar, e passem a AMAR SINCERAMENTE o Grande Irmão.
The Matrix (1999), de modo semelhante, sugere que a profecia do “escolhido”, o suposto salvador da humanidade, é na verdade uma narrativa criada pelo sistema para manter as máquinas no controle. Embora pareça que essas ideias conduzam ao niilismo, esse “niilismo artístico” é apenas mais um produto, e como tal apenas reproduz os valores do sistema.
Expresso do amanhã (2013) segue esta fórmula distópica à risca, mas sugere que existe uma saída por meio do colapso do sistema. Assim como Marx (1845) criticava os filósofos que apenas pensavam o mundo ao invés de transformá-lo, alguns radicais pensam que tentar transformar o mundo pelos moldes da esquerda não vai mudar nada e que a única saída é realmente destruir o mundo, ou pelo menos explodir as coisas e pular para fora do trem. Num mundo em que ideias revolucionárias são apenas combustível para o crescente mercado de consumo liderado por empresas como YouTube e Netflix, explodir o trem vai se tornando uma ideia mais atraente.
A terceira alternativa seria a lenta e gradual construção de condições para o diálogo e o pensamento crítico, ou seja, a educação.
E isso nos leva ao terceiro ponto: A educação ainda é possível?
A crença na possibilidade de resistir ao sistema varia junto com a crença na possibilidade de educar uma nova geração que supere a ignorância e a conformidade da atual. A crise epistemológica; ética; cultural; política; comunicacional e afetiva se torna então um obstáculo à mudança social tão concreto e desafiador quanto o aparato bélico e a desigualdade econômica. Nesta crise, a criatividade já não é vista como agente de mudança, mas como um entrave para a sobrevivência, como podemos ver na série de comédia Décimo andar (2016).
Com todas as fichas caindo inevitavelmente na caixinha da educação, outra pergunta deve ser feita: somos ainda capazes de aprender uns com os outros? Esta pergunta ressoa uma reflexão que eu fiz recentemente: Existe diálogo? Ou as pessoas perderam realmente o interesse na construção coletiva do conhecimento, preferindo simplesmente a circulação rápida de respostas fáceis e informações simples?
Conclusão
Na passagem dos dois momentos de crítica ao sistema, o que vemos não é a criação de uma nova forma de resistência, mas a criação de uma nova forma de conformidade ativa. As pessoas comuns são convidadas a participar ativamente, como co-produtoras e não somente consumidoras, de um discurso de conformidade e inevitabilidade da adaptação ao sistema. Esta é a principal arma do sistema atual.
Se ainda houver alguma resistência ao sistema, ela não virá de tal sistema híbrido, que combina a produção não-material via internet com a produção material do nosso sistema econômico. Agora, mais do que nunca, a revolução não será googleada.

Uma consideração sobre “É possível resistir ao sistema?”