Uma resenha sobre o jogo The Neverhood (1996), de Doug TenNapel, Mark Lorenzen.
The Neverhood é jogo de aventura de “apontar e clicar” sem inventário ou diálogos, feito com animação de massinha e trilha sonora original.
Antes de tudo, se você planeja jogar essa maravilhosa obra de arte interativa, pare de ler agora. Tire um dia para jogar até o final, e depois leia a resenha.
O jogo começa quando você acorda, sem nenhuma pista sobre seu passado: você não sabe quem é, onde você está e porque está aqui. Você se depara com um mundo habitado, mas não encontra outros habitantes, apenas mensagens de um tal de Willie. Pelas cartas, você descobre seu próprio nome, Klayman, e algumas dicas sobre o que fazer.
No decorrer do jogo você vai explorando esse mundo, procurando por informação, mas para isso precisa resolver alguns desafios, que geralmente são jogos de memória.
Logo no início você precisa montar um “H”, que é a primeira letra de Hoborg, para ter acesso a um terminal onde você pode assistir as mensagens que já encontrou. Elas são gravações de Willie, um ser que parece ser muito bobo, mas que diz coisas impressionantes, como: “Estes discos são tudo que sobrou da história verdadeira, (…) uma vez que você conheça essa verdade, você vai saber o que fazer”.
Despois de encontrar todas as mensagens, você saberá que Hoborg criou este mundo, e que sua intenção com isto era benigna. O primeiro ser que ele criou foi Klogg. Mas Klogg invejou a coroa de Hoborg, que era a única coisa que ele não podia ter. Klogg roubou a coroa de Hoborg, declarando-se governante do mundo, e assim transformando-se num ser estranho, e fazendo Hoborg entrar num sono eterno. Klogg então transformou o mundo, dividindo-o em duas partes incomunicáveis, que devem ser reunidas por Klayman para que se possa terminar o jogo. A última parte fala sobre seu próprio nascimento. Você foi criado da última semente que estava nas mãos de Hoborg. Portanto, quando Willie fala de “verdade”, ele está se referindo ao conhecimento a respeito do passado, desde a criação do mundo até sua própria origem, passando pela “queda”.
Note que o jogador não precisa realmente dessas informações para terminar o jogo. Mas a ideia é que nós precisamos desse conhecimento para saber o que fazer em relação a uma escolha moral que é apresentada no final do jogo. Nós precisamos dessa sabedoria para poder responder à seguinte questão: pode uma criatura exercer domínio sobre a criação?
A importância da história é representada pelo grande muro de recordações. É um muro de 38 telas de tamanho. Sendo que o personagem não corre, leva uns bons minutos para percorrer. No muro estão escritas as Crônicas de Neverhood, um texto que leva um bom tempo para se ler inteiro, e conta a história da criação e da vida dos primeiros seres daquele mundo, num estilo parecido com o da Bíblia. Imagine parar para ler cerca de 40 páginas de texto quando o que você quer é se divertir com um jogo de computador… Mas eu creio que os criadores do jogo não fizeram isso à toa. O texto é longo, mas ele é a tradição preservada daquele mundo, e explica muitas coisas que você encontra pelo jogo. No final do muro você encontra a mensagem que dá acesso à sua própria história.
Um detalhe interessante é a sala que contém estátuas de vários personagens cujas histórias são contadas no muro. A única maneira de entrar na sala é usando uma máquina que diminui o seu tamanho. Diminuir o tamanho para ter acesso a esta sala não parece ser algo ao acaso. É uma metáfora para a humildade. Outro detalhe é que só há uma maneira de morrer neste jogo: pulando num ralo. O ralo tem três avisos: “Não pule”, “É perigoso” e “Morte certa”. Mesmo assim sei que a maioria das pessoas que joga pela primeira vez pula no ralo para ver o que acontece. Isto também não parece ser ao acaso.
Quando você chega até o castelo de Klogg, este o recebe bem, dizendo “Tudo isso que você está vendo é meu”, que é uma distorção do que Hoborg disse a ele. Ele então diz: “E eu quero que você governe este mundo. Basta colocar essa coroa na sua cabeça”. Neste momento, você tem duas opções: clicar na sua própria cabeça, ou clicar na cabeça de Hoborg, que está sentado no trono, no fundo. A segunda opção é significativamente menos visível.
Esta é a escolha entre ser o governante do mundo no lugar do criador, ou deixar o criador ser o único governante do mundo. Se você escolhe usar a coroa, você se torna exatamente como Klogg. Se você escolhe Hoborg, Klayman enfrenta uma série de obstáculos colocados por Klogg, mas no final consegue devolver a coroa, acordando Hoborg de seu longo sono. Klogg então decide matar Hoborg atacando pelas costas, um o símbolo para a traição, mas ao tentar fazer isso ele se autodestrói.
Nuncanidade (uma tradução livre de Neverhood) parece ser a negação de duas alianças: a paternidade (fatherhood) e a fraternidade (brotherhood).
De certa forma, nós vivemos em Neverhood. E nossa escolha, entre ser o governante do mundo ou não, depende do conhecimento de nossa história verdadeira.