
Um ensaio sobre a possibilidade do diálogo num mundo fragmentado.
A pergunta parece estranha, mas é exatamente esta a pergunta que eu quero fazer: existem ainda condições para o diálogo entre diferentes grupos sociais ou estamos permanentemente presos em nossas próprias bolhas, incapazes de compreender as outras pessoas?
Dialogar significa pensar junto. O diálogo não é composto necessariamente de palavras, ele é uma correspondência entre o que acontece na cabeça de duas ou mais pessoas. Uma cooperação com um processo mental ocorrendo em mais de uma mente. As palavras apenas mediam esse processo; elas não são o diálogo. O diálogo começa a ficar interessante quando existe uma rede complexa de relações entre ideias entrando em conflito, reorganizando o sistema e produzindo uma conclusão comum. Essa é a beleza do diálogo. Achar que o diálogo acaba quando a discordância começa é negar o diálogo.
Suponha, porém, que cada afirmação sua que não concorde com a minha, na verdade, apenas confirme minha posição, ao invés de desafiá-la ou colocá-la em questão. Imagine que o que eu chamo de diálogo seja, na verdade, um sistema simples de qualificação, em que tudo que reafirma minhas crenças é necessariamente verdadeiro e válido, e tudo que as confronta é necessariamente falso e inválido.
Imagine que eu queira ter uma resposta pra tudo, para me proteger de qualquer possibilidade de estar errado, para nunca ter que entrar de fato num diálogo, mas simplesmente para afastar qualquer pensamento dissonante para longe de mim. Mas eu não consigo, algumas questões me deixam sem resposta, e isso me deixa muito frustrado, sou obrigado a apelar para a ofensa pessoal e desvio do assunto, o que acaba diminuindo minha credibilidade.
Agora imagine que alguém com uma boa capacidade retórica tenha criado um aplicativo que me dá todas as respostas que eu preciso para as questões que tendem a surgir numa conversa. Imagine que eu passe boa parte do meu tempo consumindo factoides sobre como responder certos questionamentos. Toda vez que alguém levanta uma questão que poderia comprometer minha coerência ou razoabilidade, eu apenas consulto esse aplicativo e encontro a resposta certa. Simples, não exige reflexão, só reprodução.
Nesse caso, se eu construo sistemas complexos de defesa para evitar qualquer reorganização do meu sistema de crenças, ainda é possível dizer que há um diálogo?
Os alicerces do diálogo foram ruídos pelo uso de mecanismos que evitam o confronto de ideias. A troca de mensagens pode parecer com um diálogo, mas na verdade é um conjunto de monólogos. Há apenas um pensamento, e ele não tem chance de mudar. Não busco mais pensar com a outra pessoa, mas contra ela, simplesmente reafirmando minha própria posição. Quando eu digo que algo é “só minha opinião” ou que “essa discussão é inútil”, é possível que eu esteja apenas fugindo do diálogo.
O diálogo necessariamente coloca as opiniões se seus participantes em risco. Se nós entramos numa conversa com o único objetivo de proteger nossas crenças, nós precisamos fugir do diálogo. O preço que se paga para evitar o conflito de ideias é o fim da possibilidade de diálogo. Evitar o conflito é um vício que se autoreforça. Quanto mais se evita, mais difícil não evitar. Até um ponto em que se torna impossível não evitar, por mais que você não queira.
Se eu não assumo responsabilidade pela justificação racional das posições que eu tomo, se eu delego essa responsabilidade para outros, eu entro num ciclo de reprodução automática do mesmo jogo de linguagem: evitar o diálogo, não deixar que o pensamento de outra pessoa tenha validade para mim, não arriscar uma mudança no meu sistema de crenças. Esconder meu pensamento numa caixinha que ninguém irá abrir, para que ele fique protegido, pra que eu não tenha que pensar algo DIFERENTE do que eu penso agora.