A ideia de religião em Ernst Cassirer

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Um resumo do capítulo A ideia de religião, do livro A filosofia do Iluminismo de Ernst Cassirer.

Cassirer discorre neste capítulo contra a ideia de que o iluminismo se caracteriza essencialmente pelo ceticismo em relação à religião. Essa ideia pode estar presente na filosofia francesa do século XVIII, mas é um equívoco em relação ao pensamento alemão e inglês, por exemplo.

Voltaire não se voltou contra a fé, mas contra a superstição, entretanto a geração seguinte não se deteu nessas distinções. O enciclopedismo francês declara guerra aberta à religião, à sua validade, à sua pretensa verdade. Esta teria freado o progresso intelectual, não foi capaz de fundar uma verdadeira moral nem uma ordem política e social justa. Retiraria a força humana de tomar o destino em suas próprias mãos.

O deísmo é rejeitado por ser um meio-termo ambíguo. Extirpar de maneira absoluta toda e qualquer crença parece ser o único meio de libertar o homem dos preconceitos e da servidão, e abrir caminho para a verdadeira felicidade. Nenhuma conciliação é possível, é preciso escolher entre ciência e crença.

Mas, seria equivocado considerar o Século das Luzes como irreligioso ou hostil a toda crença. O século XVIII deposita seu maior esforço intelectual não na rejeição da fé, mas num novo ideal de fé. O que se espera é uma renovação da religião. Os problemas intelectuais estão como nunca misturados com os problemas religiosos. Por mais que se ataque as respostas dadas pela religião para as questões fundamentais, são essas mesmas questões que se impõem.

Portanto, não é para a dissolução da religião que os esforços se dirigem, principalmente na filosofia alemã, mas para sua fundamentação. Isto resulta em atitudes tanto negativas quanto positivas.

O dogma do pecado original e o problema da teodicéia

Já na Renascença havia a pretensão de uma renovação da religião, em vista de uma adesão ao mundo e afirmação do espírito. Assim se estabelece o deísmo universal como a teologia de inspiração humanista dos séculos XVI e XVII. Essa teologia tem raízes na ideia de que a essência do divino só é apreendida no conjunto das suas manifestações. Se todas as expressões do divino não expressam sua essência, cada uma delas é igualmente válida.

A reconciliação do homem com Deus passa a ser esperada no seio do trabalho e do desenvolvimento do espírito humano. A religião humanista foi oposta pela Reforma, mas ambas conferem um novo valor à vida terrena: a exigência de negação do mundo é substituída pela exigência de transformação do mundo. O conflito se expressa nas posições radicalmente opostas em relação ao pecado original. O humanismo tende a abrandar o rigor desse dogma, contra a doutrina agostiniana da corrupção radical da natureza humana e de sua incapacidade de se voltar por si mesmo ao divino. A reforma radicaliza o dogma do pecado original, aceitando que a natureza humana corrupta é agora a única e definitiva natureza humana, até que venha o julgamento e a nova criação.

Para o humanista Erasmo, a autonomia da vontade não havia sido totalmente corrompida pela queda original, o que segundo Lutero seria um erro, pois coloca o homem como independente da graça divina. Devia-se distinguir entre a potência divina e a humana, pois disso depende nosso autoconhecimento e o conhecimento de Deus. A religião humanista não poderia resistir ao ataque da fé reformada, mas abriu caminho para a teologia do iluminismo.

Semler, um dos mais influentes teólogos da época na Alemanha, vale-se diretamente de Erasmo no seu ataque contra a ortodoxia. O agostinismo deixa de ser atacado por suas conseqüências, passa a sê-lo em seu princípio.

No pensamento francês, o problema do pecado original é apresentado na obra Pensamentos de Pascal. A sua tese é a impotência radical da razão, que só pode chegar à verdade submetendo-se à fé. Mas Pascal não pretende pregar a necessidade dessa submissão, ele quer provar sua necessidade ao descrente. Para isso se serve da lógica analítica. Se o cético rejeita a doutrina do pecado original, entra em contradição com aquilo que é observável na existência humana: que o homem não é completo, mas divido entre o infinito e o nada. Assim, o desconhecido é explicação do conhecido. Ao tentar apreender a imanência, esta se converte em transcendência.

Para a filosofia do século XVIII, isso representava um grande desafio. Se o homem era transcendente em relação a si mesmo, a explicação natural do mundo estava prejudicada. Voltaire se voltou para a crítica de Pascal, mas não entra no centro religioso do seu pensamento. Recorre a um senso comum, que transforma as contradições da natureza humana em sua riqueza própria: a versatilidade e a diversidade humana. Isto era simplesmente tudo que o homem pode e deve ser.

Mas se a filosofia das luzes rejeita o pecado original, deve explicar de forma clara e distinta qual a origem do mal. Para Voltaire, o mal moral seria inegável, mas necessário, pois sem ele estaríamos condenados à imobilidade. Mesmo no Cândido, a crítica ao otimismo não é defesa do pessimismo. O mundo deve seguir seu curso, e a felicidade consiste em lutar contra ele.

Em Leibniz, a questão de saber o que predomina na existência humana, dor ou prazer, se resolve no cálculo das sensações, atribuindo valores quantitativos aos fenômenos psíquicos. Isso ofereceria uma prescrição para se alcançar o “bem supremo”, que é a maior soma de felicidade possível. É Shaftesbury, por meio de uma filosofia estética, que responde a esta questão dizendo que na contemplação pura, livre de “interesse”, o homem é ele mesmo, e participa da felicidade suprema. Assim, subvertem-se os valores da teodiceia. Mostra-se porque o cálculo dos bens e dos males fica aquém deste problema. A justificação da existência não está na esfera do prazer e da dor, mas na do livre esboço interior, que revela a divindade do homem.

Rousseau eleva este problema acima da existência individual e situa-a na existência social. Ao invés da exigência de felicidade, o valor da existência humana deveria ser medida pelo critério do direito e da justiça social. Rousseau reduz a nada todos os bens que o homem adquire no decorrer de sua história, pois que o alienam do seu sentido autêntico. Nisso, ele concorda com Pascal. Nenhuma simpatia natural une os homens entre si. Ambos descrevem o estado do homem como de degradação. Porém, para Rousseau, a ideia de pecado original já não tem valor, por isso ele entrou em conflito com a igreja. Para ele, a distinção entre o homem da natureza e o homem da cultura explica a degradação do homem sem que ele seja radicalmente mau. O mal ocorre por força do desenvolvimento empírico do próprio homem, por isso a solução também não está além deste mundo. O novo sujeito de imputabilidade passa a ser a sociedade, não o indivíduo. A sociedade ideal é aquela em que cada um obedece somente à vontade geral que reconhece como sua. A emancipação não vem de Deus. A sociedade criou o mal, e é ela que deve acabar com ele.

No campo das ciências morais, ocorre o mesmo processo de “secularização” que ocorreu no campo das ciências da natureza. A física, a história e o direito não esperam mais que a ideia de Deus as ratifique e legitime. O sentido da relação foi mudado, agora são essas que devem ratificar e legitimar a ideia de Deus. O que até então justificava agora exige justificação. Assim se consumou a ruptura com o dogma do pecado original. A ideia de que sem a graça divina o homem é incapaz de exercer o bem e a verdade é rechaçada sem hesitação. O embate entre Lutero e Erasmo agora favorece o segundo. Para Hegel, ao reconciliar-se com o Humanismo, o protestantismo se converte em religião da liberdade.

A ideia de tolerância e a fundação da “religião natural”

A filosofia iluminista tem como princípio geral que o pior obstáculo ao conhecimento não é a ignorância, mas a falsificação dos critérios, quando tentamos fixar o resultado antes da investigação. O inimigo da ciência não é a dúvida, mas o dogma. O dogma é a ignorância imposta como verdade. Assim, o que se opõe à fé não é a incredulidade, mas a superstição. A ciência e a fé enfrentam um inimigo comum.

Bayle adota essa posição, defendendo um critério rígido pelo qual julgar a verdade da fé. Ele não combate o ateísmo, mas a idolatria. A ignorância estaria mais próxima da verdade que o preconceito. O iluminismo reassume o princípio cartesiano de só pronunciar julgamentos alicerçados em ideias claras e distintas. A verdadeira descrença não se manifesta na dúvida, esta exprime prudência. A fé cega é aquela que nega não o conteúdo, mas a forma do conhecimento.

No lugar do pathos religioso, surge um ethos religioso. A religião não é algo a que se está submetido, mas que emerge da ação. O homem não deve ser dominado pela religião, mas deve criá-la a partir de sua liberdade interior. A teologia do iluminismo adere ao partido de uma religião única, dissimulada sob a diversidade dos ritos e conflitos de representação e de opinião. Separa-se o âmago da religião e da moralidade das representações particulares da fé.

Segundo Bayle, sua apologia da liberdade religiosa propõe-se a um fim universal, e nenhuma autoridade religiosa tem o direito de recorrer a uma convicção religiosa particular. Se o testemunho das Escrituras contradiz a consciência moral, é a segunda que deve ser mantida. Eis o princípio da crítica ética da Bíblia.

Se a essência da religião só se realiza na ação, aí reside sua universalidade. Toda representação particular é finita, só a religião natural, que não teve início, não terá fim. A verdade da religião natural está para a religião revelada como o testemunho de primeira pessoa está para o testemunho de terceira pessoa. As provas teóricas da existência de Deus perdem todo o interesse.

A mesma tendência se manifesta no deísmo inglês. Ele é um sistema intelectual que quer banir os mistérios, os milagres e os segredos da religião, a fim de colocá-la sob a luz clara do saber. Assim, fica excluída a transcendência absoluta dos objetos da fé religiosa. Estes devem ser presentes de alguma forma, representados por um fenômeno. O conteúdo é inacessível a certo modo de entendimento, mas não, de forma geral, a todas as possibilidades de entendimento.

Em Cristianity as old as the Creation (1730), Tidal se desfaz do dogma da graça eletiva para afirmar que Deus deve necessariamente se revelar igualmente a todos. A lei cristã seria a reproclamação da lei natural. A religião consistiria em reconhecer nos nossos deveres os mandamentos de Deus. Isso mudava a ordem moral do intelectualismo para a razão prática. O deísmo moral toma o lugar do deísmo construtivo.

Mesmo onde a ortodoxia conservava a fé na revelação, se impunha a necessidade de um método demonstrativo. A ideia de revelação permanece, mas ela apenas confirma e sanciona as verdades evidentes para a razão. A prova empírica tende a procurar seus fundamentos em certezas íntimas, e não em fatos históricos. A autoridade da razão teórica é recusada pelo apelo à subjetividade como princípio autêntico de toda certeza religiosa. O racionalismo teológico chega a intimar o conteúdo da fé a comparecer perante o tribunal da razão, e a negar a necessidade da revelação como fonte específica de conhecimento. Na Inglaterra, Samuel Clarke deduz o conteúdo inteiro da fé cristã a partir de princípios universais.

É Hume que quebra o predomínio do deísmo, questionando a ideia de natureza humana e o princípio da causalidade. Na história natural da religião, Hume afirma que não foi o pensamento nem a vontade moral que deu forma às primeiras representações religiosas, mas sim o medo e a esperança. Não existe fundamento racional ou ético para a religião, seu fundamento é antropológico. A superstição seria a verdadeira raiz da ideia de Deus. A superstição apenas se torna mais elaborada com o tempo. Assim, o ceticismo cai tanto sobre a religião natural quanto sobre a religião revelada. Mas o método adotado por Hume não é característico do século XVIII. Este século tinha confiança demais na razão, por isso ele permaneceu um caso isolado.

Religião e história

O iluminismo tenta conciliar o espírito histórico e o espírito racional para fornecer um novo ideal de conhecimento religioso. A primeira tarefa seria determinar o conteúdo de verdade da Bíblia, o que implicava num rompimento deliberado com o princípio da inspiração verbal, que a Reforma jamais contestara. Richard Simon examina a autenticidade dos diversos livros da Bíblia, mas é Espinoza que fundamenta filosoficamente a crítica bíblica. O monismo de Espinoza se recusa a admitir que a Bíblia seja distinta da ordem natural. Ele pretende interpretar não o ser a partir da Bíblia, mas a Bíblia como parte do ser. O método de interpretação histórica penetrou até o cerne do sistema teológico.

Os autores da Bíblia, excluídos do domínio da verdade filosófica, não falam em nome de Deus, mas em nome próprio. Deus só deve ser procurado no universal e necessário. O milagre, como ruptura da lei natural, seria uma contradição com o decreto de Deus.

Lessing representa uma virada na história das ideias do século XVIII. Ele adere à universalidade da ideia de natureza, de Espinoza: Deus é uma potência intramundana. A religião, segundo Lessing, não pertence absolutamente à esfera do eterno e necessário nem à esfera do contingente e temporal. Ela é a união de ambas. Manifestação do infinito no finito. Lessing acaba substituindo a concepção analítica da razão pela concepção sintética, a visão estática pela visão dinâmica, e por isso já se situa no limiar do iluminismo.

Cassirer conclui que o problema da história, que se apresentara à filosofia do iluminismo como um problema religioso, se desenvolveu no interior dela para abrir as portas para uma nova visão histórica, baseada na observação concreta dos fenômenos históricos.

Referência:

CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Ed. da UNICAMP, 1992.

Autor: Janos Biro

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