Um ensaio sobre o conceito de tradição em Giddens.
Segundo o sociólogo Anthony Giddens, estamos vivendo numa sociedade destradicionalizada. Isso significa, em resumo, que as tradições já não têm o espaço que tinham nas sociedades pré-modernas. Essa afirmação é importante para diferenciar a maneira com que os valores éticos eram tratados em sociedades arcaicas, e como são tratados agora.
Enquanto criação humana, um sistema de valores éticos deve ser histórico. A ética propagada na modernidade aparentemente se opõe ao que não provém do homem ou da razão empírica. A modernidade foi marcada pelos pressupostos humanistas de emancipação do homem. A ética protestante, analisada por Max Weber, prezava o acúmulo e a redenção humana na história, e por isso sua relação com o espírito do capitalismo.
Talvez possamos falar de uma ética globalizada, uma ética propagada por um modo de vida capitalista que se globalizou. Se há algo quase consensual hoje, é a relativização e a individualização dos valores. O efeito mais visível disso é a intolerância em relação a pessoas com valores distintos, produzindo uma ética perfeccionista, contrária a uma ética do perdão.
A ética do perdão aponta para um modelo que não pretende inflacionar a culpa e o medo em relação ao erro, mas precisamente o oposto. A culpa e o medo se dissolvem no ato do perdão. Porém, as religiões que cresceram na modernidade parecem ter se adaptado à ética da sociedade moderna.
Esse fenômeno talvez possa ser compreendido não como a perda de toda e qualquer ética, mas como a gradual substituição da ética que tem por base a tradição por uma ética que tem por base as concepções modernas. É este novo modelo ético que tem se globalizado, em grande parte graças à revolução burguesa e ao capitalismo.
Feuerbach estava certo ao dizer que o homem projeta para Deus o seu próprio ego hipostasiado. Schopenhauer estava certo ao dizer que o mundo é vontade e a representação do homem. E Nietzsche estava correto em dizer que Deus morreu para o super-homem. Todos eles estão falando do homem moderno. A modernidade substituiu a fé pela razão do homem emancipado, e posteriormente pela conveniência.
A modernização é aquilo que dissolve a tradição. Que valores nós estamos querendo preservar, em última instância? E que valores nós realmente estamos preservando, com nossas ações?
Dizemos que a modernidade também resgata os valores tradicionais. Não, ela não pode fazer isso sem resgatar as condições humanas próprias para o florescimento desses valores, e isso é impossível. Não há retorno da tradição, há apenas substituição por um equivalente pós-tradicional. O tapete pode ser feito com os mesmos materiais rústicos e técnicas antigas, a cerimônia pode ser realizada com as mesmas palavras e movimentos. Mas o sentido é totalmente diferente. Não é possível realizar os mesmos rituais se não somos mais as mesmas pessoas.
O conservadorismo não pode manter as instituições e os valores do passado. Não pode salvar a família, a religião e a pátria. O que ele pode fazer é nos dar um substituto moderno, porque o conservadorismo é moderno. Ele é fruto da xenofobia: do medo do diferente e da tendência de culpar o estranho pela crise que foi instaurada no interior da própria sociedade tradicional. É a civilização, em seu avanço inevitável, que tornou a tradição insustentável. Uma vez que compreendemos a ética tradicional como algo a ser preservado pela ação humana, e a qualquer custo, ela já não é tradicional, mas sim moderna. É uma criação nossa, ainda que seja uma tentativa de recriação inspirada em algo que achamos que existiu antes.
Referência:
GIDDENS, A. Risco, confiança e reflexividade. In: BECK, U.; GIDDENS, A.; LASH, S. Modernização Reflexiva. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997.